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Erotico-->29. CLÉBER FOGE DE CASA -- 03/02/2003 - 08:02 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Quando Cléber desceu da ambulância, nos braços de dois enfermeiros, já estava cercado pela pivetada da região. Reconheceu os amigos da “trempe”, que chamavam por ele no coro que se estabeleceu. Estava sendo recebido como verdadeiro herói.

Todavia, se alguém esperava ver os tocos que sobraram abaixo dos joelhos, deve ter-se desiludido, porque as calças compridas escondiam as pernas de madeira e os sapatos disfarçavam a ausência dos pés.

Veio a cadeira de rodas e as muletas foram colocadas ao lado, enquanto muita gente se aproximava para uma palavra de ânimo e de conforto. Muitos sabiam da desencarnação do bandido que o ferira e vinham satisfazer-lhe o espírito de vingança, afirmando que fora bem feito, que Deus encontrara o meio de fazer justiça.

Estranhamente, tais palavras não repercutiam na sensibilidade do rapaz, muito mais interessado em abraçar os velhos amigos e o pessoal da família.

Antunes havia levado Gaspar, que esperava a vez ao lado das irmãs e da mãe, junto à porta da casa. Deodato é que fazia a recepção dos vizinhos e recebia um ou outro presente, quase sempre de fundo religioso: um terço, a imagem de um santo, uma gravura, calças e camisas em bom estado e até dinheiro dos mais próximos, que conheciam a necessidade da compra das pernas mecânicas. O bairro se solidarizava, principalmente por saber que o casal havia feito as pazes e que havia devolvido o teto aos filhos.

Quando amainou o tumulto, Antunes fez sinal que desejava falar:

— Pessoal, em nome da família de Cléber, agradeço a ajuda e a compreensão de todos. Mas muito mais eles irão precisar daqui pra frente, não só em bens materiais mas em apoio fraterno, em nome de Jesus Cristo. Agora, Cléber precisa entrar mas eu sei que irá agradecer a cada um de vocês nos próximos dias.

Quando Cléber foi sendo levado para dentro, agarrou os dois colegas mais chegados e pediu a eles que voltassem no dia seguinte de manhã.

Gaspar tinha lágrimas nos olhos, o que não ocorria com as meninas, novas demais para entenderem direito aquele drama. Maria tremia de emoção e de medo de ser recriminada por ter desleixado as visitas. Além do mais, a barriga se mostrava teimosamente proeminente, impossível de ser disfarçada.

Cléber fez menção de querer apanhar as muletas, mas o pai o impediu:

— Fique um pouco mais na cadeira, porque o pessoal pode derrubar você.

Sábia previsão. Se estivesse de pé, teria levado forte encontrão de Gaspar, que se atirou para diante dele, assim que o viu próximo da porta. Não disseram palavra, mas Cléber muito se admirou da visível emoção do mais novo. As meninas, entretanto, se refugiaram atrás das saias da mãe que levava a mais nova no colo.

Foi quando Cléber notou a presença de uma jovenzinha que procurava pôr ordem nos sentimentos das duas mais velhas. Mas não teve tempo de decifrar o mistério. Logo a mãe o abraçou, em lágrimas, pedindo perdão:

— Meu filho, perdoa a tua mãe por não ter dado...

As expressões se perdiam nos soluços.

Deodato também estava constrangido. Não fora Antunes, que determinava isto e mais aquilo, teria ajoelhado ali mesmo na rua, para rogar perdão ao filho.

Nenhuma das atitudes, contudo, comoviam o rapaz, que foi levado para dentro meio aos trancos, já que havia dois degraus dando acesso ao interior da casa.

Na sala, sobre a cômoda que fazia papel de despensa e de guarda-louça, imperava o aparelho de televisão, esquecido ligado, lançando as notas repetidas e cansativas de promoção de saldos, em tantas vezes...

Cléber não se conteve e gritou:

— Desliguem esse aparelho!

Foi atendido na hora, mas sobre todo o povo caiu pesado silêncio, no ambiente de dor.



Na manhã seguinte, compareceram os amigos convocados.

— Me tirem daqui, porque não estou agüentando mais.

— Que aconteceu?

— Não aconteceu nada. Só que eu quis que a televisão ficasse desligada e todo o mundo virou a cara pra mim. Meu pai me levou pra fora e conversou um pouco. Minha mãe ficou com as outras, deixando o aparelho ligado bem baixinho. Quando entrei, foi uma choradeira só. Preferia ficar no hospital. Pelo menos lá tinha sossego.

— Que é que vamos fazer?

— Vamos dar uma volta por aí. Me levem pra casa de minha tia. Não fica longe. Eu quero ver como é que está. Se der certo, fico lá.

— Como vamos entrar?

— A chave está comigo. Peguei na gaveta.

Enquanto o carrinho ia sendo empurrado em meio aos buracos da via em terra batida, Cléber ia revelando o plano que levara tempo vinha imaginando:

— Preciso ganhar dinheiro pra comprar as pernas mecânicas, senão vou passar o resto da minha vida dependendo dos outros. Eu acho que as pessoas vão ficar sentidas ao me verem sem pernas. Vocês me levam pra uma rua movimentada e ficam de longe vigiando, guardando a cadeira. Eu ponho as muletas do lado e arrumo uns arames e outros apetrechos pra fazer artesanato, como se estivesse trabalhando. Vou deixar as pernas bem à vista. Aposto que vamos faturar muito dinheiro. Vai sobrar pra vocês também.

— Bem bolado, disse o amigo mais falante, mas se tiver algum dono do ponto, você vai se estrepar.

— Já pensei em tudo. Se vierem me achacar, eu combino um preço justo que eu posso pagar. Com o tempo, a gente pega jeito e as coisas vão melhorar.

— E aquele soldado que está sempre por aí?

— Vocês ficam de olho nele. Se aparecer, me avisam. Podem deixar que eu me viro. Aquele cara é muito ingênuo. Pensa que pode salvar o mundo. Vocês viram a televisão que ele arrumou? Pois, na hora certa, passo ela nos cobres e faço mais algum. Quem é que vai me impedir? Arrumo outro aparelho de segunda mão e todos vão ficar contentes. Como é que vocês estão se virando?

— Meu pai não pode mais comigo. Depois que fiquei mais graúdo, ele não me pega mais. Quando fica muito bravo, eu fujo. Aí minha mãe vem atrás de mim e, tudo bem, as coisas ficam esquecidas.

Cléber estava curioso para saber o que eles estavam fazendo para arrumar dinheiro. Queria saber o que estavam fumando, se cigarro ou se maconha.

— Baseado, meu irmão, que é muito mais gostoso.

— Nunca experimentei. Mas vocês estão viciados?

— Eu não estou. Fumo um ou dois por semana e fico na minha.

O outro resolveu intervir:

— Mentira! Você fuma tanto quanto eu: sempre que tem. O diabo é que custa caro e a gente tem de se virar na praça, enfiando a mão nas calças...

— Viraram trombadinhas...

— É isso aí.

— Prestem atenção. Eu não tenho nada com o vício de vocês. Mas não posso entrar nessa, porque os remédios são perigosos. O médico me explicou. Se vocês me ajudarem, eu prometo que vão receber bem mais do que estão conseguindo. Tem alguém disposto a ficar comigo na casa de minha tia?

Um disse que sim. O outro achou perigoso:

— Ele pode ir porque não tem pai. O velho vai me buscar assim que ficar sabendo onde eu morar. É melhor vocês ficarem mais sossegados. Juliano ajuda você nas necessidades. Pelo menos até ficar mais forte.

— Eu estou bem forte.

— Mas não consegue se mexer sozinho.

— Consigo, com as muletas.

— Dá pra fugir da polícia?

Cléber percebeu que o “handicap” para as esmolas era a desvantagem para a fuga. Mas não se deu por vencido:

— Já estamos chegando. Vamos ver como estão as coisas no barraco. Se precisar de arrumação, eu acho que até minha mãe é capaz de vir dar um jeito. Eu sou um peso muito grande pra ela carregar.

O lugar estava péssimo. Uma fedentina. Tinham entrado e levado tudo que pudesse ser vendido ou aproveitado. Não havia uma panela, um prato, uma cadeira. A cama, toda arrebentada. Nenhuma peça de roupa. Os fios elétricos, arrancados. Até as paredes teriam sido levadas, se o dono do barraco não tivesse espantado os intrusos.

— Será que minha mãe está sabendo como está isto daqui?

Chegou um sujeito gritando:

— Pra fora daqui todos vocês.

Os dois que podiam correram. Cléber lá ficou, apalermado, esperando um safanão. Não contava com a comiseração que seu estado produzia no espírito das pessoas.

Ao ver a cadeira de rodas, o recém chegado amainou:

— Que é que vocês estão querendo?

— A minha tia morava aqui. Depois foi minha mãe. Eu entrei com a chave dela, apesar da fechadura quebrada. Quem é você?

— Eu sou o dono do barraco. Só não aluguei pra outro porque o aluguel está pago por dois meses. A tua mãe não vai voltar mais?

— E onde você pôs as coisas dela?

— Eu não peguei nada. Entraram e levaram. Aqui não se pode deixar nada abandonado. Em dois dias, limpam tudo.

— Quer dizer que vai ficar por isso mesmo?

— Vai você atrás dos gatunos. Chama a polícia.

— Pois eu vou ficar morando aqui. Eu e meus amigos. Vou colocar tudo em ordem e vou chamar meu pai e o amigo dele, o Guarda Antunes. Você conhece?

— Já andou por aqui.

— Então, fica sabendo que estou assumindo as contas, quando chegar o dia.



Meia hora depois, punham em prática o plano da mendicância. Em uma hora de exposição aos olhos do povo, os tocos de pernas arrecadaram mais de dois salários mínimos. A féria excedia a qualquer expectativa. Com medo de chamarem a atenção dos policiais e dos malandros donos dos pontos, mudaram de local a cada hora. No final do dia, contaram o dinheiro e estabeleceram as quotas de cada um. Os vinte por cento oferecidos por Cléber superavam de muito tudo o que os menores transgressores conseguiam arrecadar com os furtos. E acharam justo que o aleijado ficasse com sessenta por cento. Afinal, era quem iria arcar com todas as despesas.

Aquela noite, Cléber passou fora de casa, mal acomodado sobre um colchão que compraram em depósito de móveis velhos e de produtos de origem suspeita.

Maria e Deodato acionaram Antunes para as buscas, mas jamais iriam imaginar que o garoto estivesse tão próximo. Foi uma noite de cão. De manhã, bem cedo, voltavam os três empurrando a cadeira, com história prontinha na ponta da língua para iludir os familiares.

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