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Ensaios-->Brasília, o lugar das ilusões -- 07/08/2012 - 09:58 (Félix Maier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

O lugar das ilusões - Brasília e os paradoxos do desenvolvimentismo

 

http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-64451991000100011&script=sci_arttext

Marcelo Coelho

O sociólogo escreve regularmente na Folha de S. Paulo

A análise e a caracterização do "desenvolvimentismo" dos anos 50 - incidindo, preferencialmente, sobre os discursos de Juscelino Kubitschek ou as teorias do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) - tendem a ver a construção de Brasília como simples "conseqüência", "simbolização" ou "coroamento" do clima de euforia e das postulações propagandísticas que marcaram o período. Uma interpretação desse tipo não dá conta, entretanto, da multiplicidade de imagens, intenções e idéias que se associaram ao empreendimento. A transferência da capital foi vista como epopéia civilizatória, ato de conquista e posse da terra; mas ao mesmo tempo como "vingança do sertão", revolta contra o cosmopolitismo do Rio de Janeiro. Foi símbolo da cidade do século XXI, e ao mesmo tempo evocação das bandeiras e realização de um projeto secular. O rompimento com o passado era forma de reconciliação entre regiões isoladas no tempo e no espaço; apresentava-se como instrumento da modernização e da racionalidade administrativa, mas também como retorno às raízes culturais da nação, redescoberta do "verdadeiro Brasil". Cidade planejada, foi objeto de celebrações quanto, à... capacidade de improvisação e de criatividade espontânea dos brasileiros; erigi-la foi ato de heroísmo e de vontade; foi também um. milagre, algo que se fizesse por encanto. Fascinou por ser "racionalista" e por ser "barroca"; o plano ortogonal de Lúcio Costa acolheu as curvas de Niemeyer.

Símbolo de um progresso futuro, a ser conquistado através de um processo de desenvolvimento e de sacrifícios, nem por isto poderia ser adiada. A ruptura agônica com a rotina se faria num ato instantâneo, na leve superposição de uma estrutura arquitetônica sobre o espaço vazio. A grande ação de um governo mimetizaria, pela capacidade de empreendimento revelada, uma obra de livre iniciativa; o espírito do desenvolvimento, ao qual o país precisava converter-se, já se refletiria numa realidade de múltiplas realizações, das quais Brasília seria tanto um atestado quanto um prenúncio. Era apontada como sintoma de que o Brasil havia mudado - e, a rigor, supérflua como esforço de demonstração—; mas também como apelo a que todos se conscientizassem da necessidade de mudança - e, portanto, imprescindível aos esforços de desenvolvimento: obra real, concreta, e ato de discurso.

A identificação destes paradoxos1 dá motivo a uma consideração de ordem mais genérica, que conduz à reavaliação de algumas análises sobre o período, e a uma tentativa mais específica, não diríamos de explicação - entendida sob uma ótica causal - mas de compreensão do caráter das formulações a respeito de Brasília.

A primeira ordem de preocupações nos leva a pôr em dúvida a caracterização do desenvolvimentismo, ou das formulações a ele relacionadas, como uma ideologia que decorresse automaticamente da conquista de uma hegemonia por parte da burguesia industrial. Uma ideologia não é uma conseqüência orgânica, inevitável, de qualquer movimento que se produza no campo da infra-estrutura, algo que fosse secretado biologicamente pelo cérebro - ainda mais se se trata, numa curiosa forma de metafisicizar o materialismo, do cérebro de um sujeito coletivo e indeterminado. É este ponto de vista que parece orientar, em algumas análises de ideologia, o intuito de depreender, sob ó aparente "interesse geral" das formulações enunciadas, um interesse particular a que, num esforço de mistificação, numa ignorância ou falta de visão ida realidade, coubesse encobrir numa vasta tarefa de justificação. Não é todavia estranha ao marxismo a tese de que determinada ideologia, determinada classe social que a profira, ascende e se torna hegemônica na exata medida em que, não apenas devido a suas postulações íntimas e à habilidade em encobri-las, passa a representar de fato o interesse geral da sociedade; ao menos, no caso das revoluções burguesas clássicas, é inegável que, por mais particulares que fossem os interesses em jogo, as representações ideológicas que os "encobriam" tinham um conteúdo de progresso real, tanto para a sociedade como para o conhecimento humano; o liberalismo do século XVIII não era apenas uma forma, contingente mas industriosamente articulada, de mascarar interesses individuais sob a película da generalidade: foi construído num embate necessário, porém específico e submetido a regras próprias de cientificidade e de racionalidade, contra as representações e idéias que, novamente não apenas instrumentos de dominação, faziam sentido para uma sociedade já em vias de dissolver-se2 Não é necessário dizer que, nesse esforço de ruptura, evidenciava o predomínio do particular que, desde o início, trazia em si um foco de irracionalidade e de encobrimento. Mas um espaço infinito separa a concepção de uma ideologia formada numa luta contra o passado, expressão de - não evitemos a desuetude desta terminologia - uma classe na vanguarda do desenvolvimento histórico, da elaboração casual, supérflua na bonomia de seu esforço de convencimento, de uma capa contingente de apelos aos interesses gerais, que valesse oferecer às classes dominadas como um elixir de entorpecimento e submissão.

Se a ideologia burguesa clássica surge num momento de confronto, e deriva daí seu potencial liberalizador, um problema mais complexo se coloca nos casos em que, como o do período que estudamos, o conflito entre os setores arcaicos e progressistas da sociedade não se verifica. Postular a "necessidade" de uma ideologia assume, então, a característica melancólica de uma referência saudosista às grandes revoluções da Europa Ocidental; o drama do ISEB foi precisamente o de defrontar-se com a especificidade de uma revolução burguesa brasileira entendendo-a sob o signo de uma "falta", de uma "ausência"; a ausência de confronto - com o setor exportador, com o capital estrangeiro - foi vista como uma ausência de ideologia; e a esta lacuna tratou de responder. Natural, então, que fossem frequentes na sua produção os apelos à criação de uma ideologia que, de certa forma, "precedesse", oferecesse um instrumental de convencimento, uma racionália ao desenvolvimento econômico. Uma ideologia "pre-clara", na caracterização de Caio Navarro de Toledo3 - e basta citar, como exemplo, a sentença de Roland Corbisier: "Não haverá desenvolvimento sem a formulação prévia de uma ideologia do desenvolvimento nacional"4. Não é suficiente, contudo, identificar o que havia de "ideológico" nas proposições do ISEB, e "assinalar que a Instituição - coincidindo com aquilo que era substancial nas ideologias oficiais e dominantes — nunca deixou de postular o desenvolvimento econômico brasileiro sob moldes estritamente capitalistas"5 Cai-se facilmente, nesse gênero de discussões, no risco de fazer a mera citação de uma frase "estratégica" das elaborações desenvolvimentistas substituir o esforço de análise. Neste caso, bastaria lembrar uma fórmula contundente de Guerreiro Ramos para esclarecer, sem meio-termo, o caráter "ideológico" de seu pensamento: "Podemos afirmar que devem ser considerados como adversos aos objetivos nacionais todos os fatores internos que contribuam para a formação de pressões psicossociais, políticas, ideológicas, institucionais e econômicas, tendentes a debilitar o capitalismo brasileiro"6. Uma considerável dose de paciência, de sofisticação e de azedume será necessária, então, para fazer uma análise que diga mais do que o que já foi dito; termina-se, na crítica ao autoritarismo, ao conservadorismo, ao pró-capitalismo do ISEB, anulando as diferenças que pudesse ter com o pensamento de seus adversários políticos — que o extinguiram nos primeiros dias após o golpe de 64.

Não é minha intenção estudar o ISEB — muito menos fazer sua apologia -, mas sim apontar para a insuficiência de uma interpretação que, reduzindo-se a ver numa elaboração ideológica a justificação de um projeto de classe, termina desarmada quando a vê, sem maiores rodeios, explicitar-se a si mesma. São comuns os exemplos de como a análise de alguns comentadores cede à tentação de, não só identificar um esforço propagandístico nas formulações mais genéricas do desenvolvimentismo, mas também lembrar que, "além do mais", o governo Juscelino transferiu a capital, superpondo, assim, uma camada nova de justificação a tudo o que já fora dito.

Não seria de bom senso, obviamente, negar o aspecto mistificador da construção de Brasília. Evidenciá-lo7, entretanto, não é suficiente para dar conta das particularidades e contradições específicas do projeto, como as que enumerávamos há pouco. Fosse o caso de desprezá-las, em favor de um aspecto propagandístico fundamental, valeria lembrar a crítica de Adorno, que cabe bastante bem nos exemplos de análise citados: "Quando se substitui a ideologia pelo ucasse de uma aprovada mundivisão, até a crítica ideológica deve ceder lugar à simples análise do cut bono8".

É o que faz, furtando-se a traçar esquemas de reconstrução ideológica - de que o exemplo maior é o livro de Miriam Limoeiro Cardoso, Ideologia do desenvolvimento. Brasil, JK-JQ9 -, a análise de José William Vesentini sobre a construção de Brasília10. O aspecto simbólico do empreendimento é lembrado ("a nova capital seria o & 39;símbolo& 39; e a síntese da negação do subdesenvolvimento& 39;", p. 23); o governo JK é identificado ao "projeto político da burguesia industrial" (p. 126), e os argumentos a favor da nova capital, "mesmo tendo sido engendrados num período em que, bem ou mal, houve a vigência de determinadas liberdades democráticas, (...) de fato apontam para a emergência de um Estado autoritário, fortemente centralizado e distante dos reclamos populares, para um Estado planejador, que concentra recursos em escala gigantesca, que acelere a industrialização (...) e o Estado da geopolíticas encontrou em Brasília a sua capital ideal (...) é a capital do isolamento dos governantes, da & 39;segurança nacional& 39; entendida como segurança do Estado forte e autoritário (pp. 137-139).

Vesentini enfatiza, com abundância de documentação, os pontos de contato ente o projeto mudancista e as preocupações relatadas à idéia de "segurança nacional"; são frequentes no período, com feito, os raciocínios de que a sede do governo não poderia ficar exposta aos perigos de uma massa urbana descontente, assim como o raciocínio de cunho geopolítico, no que tange à integração territorial do país. É inegável o quanto identificações desse tipo têm de convincente, e mesmo de verdadeiro, numa perspectiva ex post. Nem por isto a idéia de enfocar Brasília sob o ângulo do autoritarismo pps-64 deixa de ser parcial; é como se a rigor não fizesse diferença o fato de ter sido construída durante o governo JK e não durante o regime militar. O interesse, sem dúvida relevante do ponto de vista crítico e político, em ressaltar este aspecto da obra, termina, contudo, por fugir à preocupação historiográfica.

É natural, então, que Vesentini termine por inscrever Brasília dentro de um projeto unívoco de dominação burguesa, expresso numa versão de desenvolvimentismo sobre a qual Míriam Limoeiro Cardoso dá a última palavra:

"(Juscelino) deseja é criar uma aspiração nova dirigida para o aumento da prosperidade. Ou melhor, o que ele pretende é generalizar esta aspiração como uma necessidade. Para tanto, se apoia, antes de tudo, na imagem de um futuro promissor que o país deverá encontrar por destino. (...) Com isto, a ideologia comprova sua capacidade imensa de controle social. Transforma o objetivo de um grupo social restrito (...) em aspiração coletiva, em motivação nacional (...) o presidente Kubitschek, como a expressão mais completa do desenvolvimentismo no Brasil da década de 1950, é sem dúvida e antes de tudo um homem da ordem (...) para a ideologia do desenvolvimentismo, portanto, o clima de tolerância política não lhe é em nada essencial. A ordem, sim, esta o é. No desenvolvimentismo encontram justificação, assim, medidas de caráter autoritário quando o desenvolvimento e a segurança o exigirem"11.

Todo o jogo das ambiguidades envolvidas no projeto, a circunstância "impressionante" de que setores "progressistas" e, bem ou mal, aliados do poder depois de 64 - a começar pelo próprio Juscelino — tenham-no protagonizado, vêem-se deste modo minimizados em interpretações desse gênero. Um trecho da análise de Miriam Limoeiro Cardoso parece, entretanto, inadvertidamente roçar no enfoque que gostaríamos de evidenciar neste trabalho; importa esclarecer que é a própria ambiguidade de sua formulação que a faz digna de nota:

"O que me parece mais interessante ressaltar é a racionalização universalizante que o desenvolvimentismo produz, com uma dupla função: preservar a ordem, ao mesmo tempo em que, representando os objetivos e os interesses das forças sociais emergentes e em ascensão - a fração de classe dominante que está implantando a sua hegemonia - os propõe como objetivos e interesses de toda a coletividade."12

A visão de uma ideologia que generalizasse interesses particulares "em ascensão", apresentando-os como se fossem de toda a coletividade, a rigor não se coaduna com a de uma ideologia cujo fim fosse, antes de tudo, manter a ordem. Quando se trata disto - preservar o que já havia sido conquistado - o aspecto puramente mistificador e propagandístico, a renúncia a qualquer pretensão de ruptura, é o que predomina. A dificuldade das análises que vimos examinando tem sido precisamente a de insistir sobre o aspecto manipulatório e conservador de uma ideologia enunciada por uma força social em ascensão; o modelo de um procedimento consentâneo às revoluções burguesas clássicas tem de se aplicar, assim, a uma situação evidentemente "não revolucionária" - e o efeito da crítica termina sendo o de desqualificar, como mistificações, como termos desprovidos de qualquer vocação intrínseca para a verdade, idéias como "desenvolvimento" ou "progresso". Trata-se destes termos — "progresso", "bem-estar social" - no período juscelinista como se este fosse, na verdade, o do declínio da ideologia burguesa no capitalismo avançado, uma simples fraseologia a celebrar a existência das coisas como são; e, num segundo paradoxo, explica-se o fato de serem invocados por um processo de conquista de hegemonia, de generalização de interesses particulares tornando-se válidos para o conjunto da sociedade, como se estivesse em curso uma ruptura que de fato não houve. Seria o caso de utilizar, na caracterização deste gênero de análises, o lema juscelinista de que não cabe tentar resolver os problemas da adolescência com remédios adequados para a época da senectude...

Seria a caso de entender o discurso desenvolvimentista sob uma ótica diversa, que possa dar conta com mais precisão de todas as ambiguidades que, nas formulações a respeito de Brasília, expressam-se com especial evidência. É exatamente o convívio entre o tema da "ordem" e o da "revolução" que dá à revolução burguesa no Brasil um caráter específico, e à ideologia que o cercou uma semelhança maior com a ideologia "alemã", para lembrar Marx, do que com a ideologia burguesa clássica. Trata-se de entendê-la mais sob o signo de uma "carência", de uma "insatisfação", de uma tentativa de expressar tensões, resolvendo-as no plano imaginário13 do que sob o signo de um instrumento intelectual dotado de eficácia própria dentro do projeto de rompimento com uma realidade que obstaculizasse o desenvolvimento econômico. Não é por acaso, com efeito, que salta aos olhos, nas formulações desenvolvimentistas no projeto de transferência da capital em particular, a ênfase quase frenética na importância de uma "mudança, de mentalidades", da "conversão ao desenvolvimento", das idéias-força, dos impulsos determinados de vontade, da "mística", da "catequese", da luta contra os "pessimistas" e os "céticos". O predomínio de um apelo às mentalidades, a convicção de que é no plano das idéias que a batalha será ganha - o ISEB e Brasília são os dois momentos fundamentais dessa estratégia - faz lembrar, com mais pertinência, não o.. instrumental ideológico das grandes revoluções, mas a atitude daqueles que "consideravam as representações, os pensamentos, os conceitos - em um palavra, os produtos da consciência por eles tornada autônoma — como os verdadeiros grilhões dos homens"14.

Não prolonguemos para as fronteiras da improbabilidade este paralelo. É fundamental insistir em que a ascensão da burguesia industrial no período JK foi um fato patente; a necessidade de enfatizar o papel das mentalidades, das idéias, nesse processo é que caracteriza a ideologia que o acompanhou. A tese da precedência de uma ideologia do desenvolvimento sobre o processo de desenvolvimento, tão lembrada pelo ISEB e pelo próprio Juscelino, é que parece responder a uma necessidade de compensão simbólica pelo fato de ter-se dado sem ruptura. Quanto a esta circunstância, bastante explorada na bibliografia, caberiam alguns comentários capazes de dar conta dos paradoxos identificados nos elogios - e também nas críticas à mudança da capital.

Uma característica que não foi suficientemente notada nas análises sobre a conjunção de interesses que viabilizou o governo Kubitschek é a de que a conciliação entre setores exportadores, industriais e proletariado urbano comporta uma assimetria temporal. Movemo-nos, aqui, num terreno bastante especulativo, mas a que cumpre não esquivar. Vale lembrar a caracterização dada por Francisco de Oliveira ao pacto de classes então vigente:

"Inaugura-se um longo período de convivência entre políticas aparentemente contraditórias, que de um lado penalizam a produção para exportação mas procuram manter a capacidade de importação do sistema - dado que são as produções agropecuárias as únicas que geram divisas - e de outro dirigem-se inquestionavelmente no sentido de beneficiar a empresa industrial motora da nova expansão. Seu sentido mais profundo é o de mudar definitivamente a estrutura de poder, passando as novas classes burguesas industriais à posição de hegemonia. No entanto, o processo se dá sob condições externas geralmente adversas - mesmo quando os preços de exportação estão em alta - e, portanto, um dos seus requisitos estruturais é o de manter as condições de reprodução das atividades agrícolas, não excluindo, portanto, totalmente, as classes proprietárias rurais nem da estrutura de poder nem dos ganhos da expansão do sistema. Como contrapartida, a legislação trabalhista não afetará as relações de produção agrária, preservando um modo de "acumulação primitiva" extremamente adequado para a expansão global.15 " (p. 40)

Um aspecto interessante a depreender dessa análise, sob o ponto de vista formal, é que se caracteriza um pacto de classes não exatamente pelo que possa ter de "convivência", de aliança "voluntária", de "troca" de benefícios ou interesses, mas por uma "coexistência", não no sentido de uma dualidade, mas de uma necessária separação, do ponto de vista político. Trata-se de uma conjunção de interesses, sem dúvida, mas que se mantêm - para usar uma analogia matemática - discretos. O setor exportador é preservado de uma transformação; a legislação trabalhista deixa intocados seus padrões de acumulação; é como se estivesse à parte do foco dinâmico da economia; esta separação não exclui, é certo, a submissão à lógica global do sistema. Não deixa de haver, entretanto, uma assimetria neste pacto onde, de um lado, a principal vantagem reside em que tudo fique como está, e, de outro, numa constante expansão econômica. Num caso, o poder de Estado atende a interesses na medida mesma em que não age, em que interrompe seu raio de ação, sem estender ao campo a legislação trabalhista ou sem tocar na estrutura agrária. No outro, o interesse de classe é atendido diretamente, sob a forma de transferência de renda de um setor para outro, de estímulos à industrialização, de investimentos, etc.

A esta assimetria, a esta delimitação entre atividade/passividade do Estado, a esta circunscrição espacial do poder político, soma-se outra, para cuja caracterização podemos recorrer a um texto de Celso Lafer:

"De fato, as massas mobilizadas reivindicavam uma ampliação de oportunidades de emprego, objetivo esse que era visto como compatível com as parcelas da elite ligadas à expansão industrial e não era visto como incompatível com as parcelas da elite ligadas ao setor exportador, dada a existência da fronteira agrícola"16.

Uma segunda assimetria pode ser intuída deste texto, e diz respeito ao pacto entre o setor industrial e o proletariado urbano. A política desenvolvimentista, ao mesmo tempo em que assegura vantagens imediatas ao setor industrial, assegurava ao proletariado vantagens que se desdobram, ou se estendem, ao longo do tempo: pode-se discutir, por certo, economicamente até que ponto a política salarial do período assegurou ganhos reais aos trabalhadores urbanos; parece-nos mais fundamental identificar as possibilidades de elevação do padrão de vida numa perspectiva de mais longo prazo, que não é de modo algum abstrata ou hipotética, mas se manifesta, na avaliação subjetiva e cotidiana de cada indivíduo, numa realidade de ascensão social o imigrante nordestino, filho de lavradores, operário numa fábrica em São Paulo, com a perspectiva de ter um filho com formação secundária ou universitária, para recorrer a um cliché; ou, para citar Francisco Weffort:

"é muito provável que o crescimento do emprego urbano, e particularmente do emprego industrial, nos últimos decênios, tenha resultado em aplicação das possibilidades de consumo pelo simples efeito da mobilidade que a acompanha (p. 153). Toda política populista paga um preço pela adesão popular, qualquer que seja a amplitude de sua capacidade de mobilização. Ela deve assumir no plano político responsabilidades com a democratização do Estado e no plano econômico um compromisso com a expansão das possibilidades de consumo, o que impõe no mínimo uma política de crescimento do emprego. Em outras palavras, ela deve ser capaz pelo menos de garantir a preservação e a intensificação do ritmo de desenvolvimento econômico e social que anteriormente propiciaram o surgimento das classes populares e que agora mantêm a vigência das alianças populistas"17.

Para os fins de nossa análise, interessa ressaltar uma decorrência específica deste raciocínio: a legitimidade obtida por uma política de desenvolvimento econômico comporta uma assimetria temporal — aos ganhos imediatos, constantes, do capitalista industrial, contrapõe-se um histórico de ascensão social e uma perspectiva de benefícios futuros, um percurso de progresso "geracional", por assim dizer, nas classes populares.

O pacto entre burguesia industrial, burguesia agrária e proletariado urbano vigente durante o período Kubitschek se dá, assim, sob uma circunstância peculiar, inerente ao fato de que, como mostra Francisco de Oliveira, não se dá "uma ruptura total do sistema", "em todos os níveis e em todos os planos"18, como ocorreu na revolução burguesa clássica. É um pacto que comporta uma cisão, por assim dizer, no espaço e no tempo; não se trata de uma simples repartição do poder e de benefícios entre grupos sociais num estado de simultaneidade e de articulação orgânica, mas de uma situação cuja própria lógica global pressupõe uma dispersão em "faixas próprias" de interesse. Num pólo de espaço, a preservação dos poderes da oligarquia rural: num gradiente de tempo, a mobilidade vivida e prometida para as classes populares. A política de "conciliação" do governo Kubitschek não deve sua eficácia básica, assim, a um esforço de vasto entendimento social, a uma composição tecida pelo Estado, mas a um quadro de relativa — dizemos relativa porque, evidentemente, a repartição de renda entre os três setores não deixava de ser conflituosa e problemática - indiferença mútua, descompasso, superposição discreta entre seus participantes. Numa situação em que não se configurava uma mudança total da sociedade, e ao mesmo tempo se dava uma transição de hegemonia, o próprio "todo social", e o papel do Estado em representá-lo, torna-se, não explícita e classicamente contraditório, mas antes de tudo paradoxal: a composição de classe só é possível, na verdade, não porque tivesse havido um amálgama de interesses, uma fusão de conveniências, mas exatamente pelo fato de que ocorria uma desarticulação básica de ritmos e de demandas sociais entre as partes envolvidas: um Estado assim constituído, assim "composto", via seu papel tripartir-se numa manutenção simultânea de passado, presente e futuro; na passividade de uma preservação, na instrumentalidade de um estímulo econômico concreto, na exacerbação e uma expectativa. À medida que este "todo", este "conjunto da sociedade" se encontra cindido - isto é, em que as classes sociais não se defrontam por si mesmas em suas contradições, ou em movimentos referidos a uma transformação ou mesmo a uma conservação total da sociedade, mas coexistem como que "malgré elles-mêmes" -, o papel do Estado ganha uma autonomia especial. Não se trata de uma elaboração automática, reflexo de uma ascensão conflituosa da classe burguesa, mas também não é um fenômeno gratuito — já que, a despeito da dissimetria e da desintegração temporal verificada, a sociedade como um todo existe (são suas constrições e movimentos econômicos concretos que produzem essa desintegração). A atuação do Estado se torna tão necessária como problemática, no plano econômico e no ideológico; terá de ser reconhecido por uma sociedade cujos componentes, a rigor sem a reconhecer enquanto uma realidade amalgamada em si, têm no Estado um representante de todos e de ninguém, ou melhor, desse "si mesmo" que é o reflexo de uma integridade nacional; existente, mas não reconhecida Não é o caso de retomar, a este propósito, a perpétua "crise de identidade nacional" que perpassa as preocupações de tantos ideólogos da cultura, seja os que a lamentam, seja os que a identificam ou procuram resolvê-la: a construção de Brasília seria um capítulo menor nessa temática.

A atuação econômica do Estado merece, primeiramente, ser comentada. À medida que a aceleração do desenvolvimento industrial no período JK dependeu, basicamente, de dois fatores o financiamento de obras de infra-estrutura através do recurso a emissões e o recurso ao capital externo — pode-se notar a introdução de um novo fator de tensão temporal na política desenvolvimentista. De um lado, o recurso a emissões monetárias representa um adiantamento no ritmo dos investimentos, ao mesmo tempo em que representa uma preservação de interesses, uma recusa do Estado em ferir os que poderiam ser atingidos por uma reforma fiscal:

"Aplicando a análise de Hirschman sobre a inflação no Chile ao caso brasileiro, a inflação ofereceu uma forma quase milagrosa de contemporizar uma situação em que duas ou mais partes (elite e massa) evitaram um curso de confronto jogando um jogo sofisticado, em geral não-violento, em que todos obtiveram falsas vitórias"19

Enquanto propiciava, a curto prazo, uma situação de crescimento econômico capaz de sustentar os interesses da burguesia industrial e mesmo do proletariado urbano - já que trazia consigo um aumento das oportunidades de emprego capaz de contrabalançar, até certo ponto, a perda de poder aquisitivo -, iria implicar um prejuízo sem qualquer compensação, em termos de perspectiva futura, nos setores sociais afastados do processo de mobilidade a que nos referíamos acima (rentiers, profissionais liberais, funcionários públicos, militares e, de um modo geral, os membros da "classe média estabelecida", isto é, aqueles, cujo padrão de vida não se alterara ou não conhecia perspectivas de melhorar no futuro). Pode-se identificar nesses setores o público preferencial da oposição ao governo Kubitschek; uma indicação para o estudo das bases sociais do udenismo seria o de levar em conta, assim, não a sua localização estática, sincrônica, na sociedade, mas a de sua posição relativa, geracional, ao longo do tempo.

O recurso aos capitais externos significa, por seu lado, uma outra forma de adiantamento no processo de crescimento econômico. Nos dois casos, o processo de industrialização, de ampliação da infra-estrutura, conhece um movimento que tende à instantaneidade. Não só o Estado joga com a manutenção do passado, o benefício presente e a perspectiva de melhoria futura, mas também traz esse futuro para dentro do presente - a indústria estrangeira que se instala, pronta, no país, o crédito governamental que se obtém, para investimentos, desde já, são uma queima de etapas, um curto-circuito na composição temporal acima descrita: o Estado adianta o tempo, e todavia assegura sua imobilidade nas zonas rurais; acelera o desenvolvimento, e todavia continua a acenar com uma perspectiva de bem-estar a ser concretizada pelas gerações futuras.

É possível então elucidar, a partir das considerações feitas aqui, as principais ambiguidades identificadas nas formulações a respeito de Brasília. É evidente que não se trata de explicar as causas do empreendimento - as motivações subjetivas dos que dele participaram, os interesses imediatos a que respondeu, no plano da construção ou dos negócios do governo, caberiam numa pesquisa historiográfica - nem de discutir a racionalidade intrínseca do projeto, mas de entender de que modo, através das discussões e interpretações suscitadas pela obra, pode-se obter uma indicação das tensões e ambiguidades sociais experimentadas no momento histórico em que foi construída.

O fundamental a ser notado é o quanto as ambiguidades de que o "símbolo" Brasília se reveste são tributárias de uma situação em que a representação do "todo social" não era atribuída ao Estado pela sociedade, mas rigorosamente o inverso: numa especulação, o que parece ocorrer é que a imagem de um "todo" coeso, orgânico, sincrônico, era atribuída à sociedade pelo Estado. Não se quer com isto dizer que o Estado fosse sujeito independente das forças que o constituíam; simplesmente, as forças que o constituíam estavam como que superpostas, sem se tocarem entre si numa mesma temporalidade; a função de representar e manter um todo constituído exigia, portanto, um "tour de force" ideológico, no qual o Estado é duplamente ilusório: no que representa, de fato, os interesses "gerais" da sociedade e no que representa os interesses gerais "da sociedade". Tratava-se de um Estado que era tão semelhante à burguesia industrial em sua própria atividade "empresarial", que ela própria não poderia reconhecer-se nele - e que então se afasta simbolicamente do foco das pressões a que atende em sua atividade -é o caso das críticas de Gudin ao "Estado empreendedor"; um Estado tão ligado às raízes de um poder agrário, que se omite de representá-lo, exceto pelo fato de não agir sobre ele, preservando-o como uma origem que era impossível renegar, e da qual se aproxima simbolicamente, no espaço, para distanciar-se dela no tempo; um Estado tão comprometido com o crescimento econômico futuro, tão dependente desta promessa para a sua legitimação política que busca prefigurá-lo, simbolicamente, no presente.

A construção de Brasília surge, assim, como um esforço imaginário de unificação, de fusão no espaço e no tempo. A conjunção de passado, presente e futuro numa única realidade, num único símbolo; a conciliação entre litoral e interior; a con versão do Brasil a si mesmo; o reencontro com a nacionalidade; a homogeneização de um país cindido no espaço, inconsciente a si mesmo, a declaração, o ato de fala que consiste em inaugurar como uma nova era aquilo que já existe, funcionariam como expressão da busca de uma totalidade social, de uma hegemonia de classe que se estendesse por toda a sociedade, e a unificasse num só tempo subjetivo, mas num processo que não é o da ruptura, mas o da conquista, da tomada de posse, da aquisição do progresso com algo externo, não constituído internamente; e da conservação do arcaico como algo absorvido, digerido internamente, não rompido no que tivesse de particular, de contraditório com a realidade a ser instituída.

Como um ato de Estado, a transferência da capital representaria uma tomada de consciência, não de uma classe que ascendesse com um projeto próprio e essencialmente conflitivo de representação geral da sociedade, mas sim como uma tomada de consciência essencialmente reiterativa da sociedade em seu todo, tal como já era, mas tal como não estava constituída. Uma frase de Guerreiro Ramos pode ser lembrada aqui, na inextricável mistura que contém de verdade e de ilusão: "O Estado pode preceder a sociedade, exercendo, enquanto esta não se forma, o papel de sujeito do acontecer histórico-social, tal como ocorreu no Brasil (...)" A realidade contemporânea, entretanto, "é completamente outra", já que "estamos vivendo o momento em que se tornou real a sociedade brasileira"20. Seria difícil contradizer a tese de que a sociedade brasileira sempre foi real; o básico a notar é o fato de essa "realidade" precisar, para Guerreiro Ramos, estar associada a uma autoconsciência, a uma opção subjetiva; o mais paradoxal é que esta autoconsciência precise, para o ISEB, ser produzida, num último esforço de precedência, pelo Estado; e que este ato de última subjetividade revele a própria contradição de toda a esperança desenvolvimentista, de todo o esforço compensatório de operar "nas mentalidades" uma revolução, ao traduzir-se, através de uma. grande hipótese da subjetividade e do futuro, num objeto imediato: Brasília.

 

 

1 Foram analisados em "Brasília e a Ideologia do Desenvolvimento", dissertação de mestrado em Sociologia defendida pelo autor em-1989 na FFLCH da USP cujas conclusõ         [ Links ]es são retomadas neste artigo.
2 MARX, K. e ENGELS, F. A ideologia alemã (Feurbach). São Paulo, Livraria Editora Ciências Humanas, 1982 p. 74.         [ Links ]
3 ISEB: Fábrica de ideologias. São Paulo, Ática, 1978, cap.1.         [ Links ] Ver também FRANCO Maria Sylyia C, "O Tempo das Ilusões", in: CHAUÍ, M. Ideologia e mobilização popular, São Paulo/Rio, Cedec/Paz e Terra, 1976.         [ Links ]
4 Apud TOLEDO, op. cit., p. 37.
5 Ibid., p. 181.
6 RAMOS, Guerreiro. Ideologias e Segurança Nacional. Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Cultura, 1957 p. 46.         [ Links ]
7 Como o faz Hermes Aquino Teixeira em O outro lado de Brasília. Brasília, UnB, mimeo, 1982.         [ Links ]
8 ADORNO, T. e HORKHEIMER, M. Temas básicos de sociologia. São Paulo, Cultrix, 1978. p. 192.         [ Links ]
9 CARDOSO, Miriam Limoeiro. Ideologia do desenvolvimento. Brasil, JK-JQ, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978.         [ Links ]
10 VESENTINI, José William. A capital da geopolítica. São Paulo, Ática, 1986.         [ Links ]
11 Apud VESENTINI, José Wíllíam, op. cit., pp. 131-132.
12 CARDOSO, Miriam Limoeiro, op. cit., p. 414.
13 Recorremos à distinção elaborada por Geertz, C. "A ideologia como sistema cultural". In A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, Zahar, 1978. pp. 171 e 55.         [ Links ]
14 MARX, K. e ENGELS, F., op. cit., p. 27. Marx e Engels referem-se aos jovens hegelianos.
15 OLIVEIRA, Francisco. Crítica da razão dualista. Petrópolis, Vozes/Cebrap, 1981, 4ª. ed. p. 40.         [ Links ]
16 LAFER, Celso. The planning process and the political system in Brazil. A study of Kubitschek& 39;s Target Plan, 1956-1961. Ithaca, Cornell University, mimeo., 1970. pp. 36-37.         [ Links ]
17 WEFFORT, Francisco. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978. p. 163.         [ Links ]
18 OLIVEIRA, Francisco, op. cit., p. 39.
19 LAFER; Celso, op. cít., p. 215.
20 RAMOS, Guerreiro. Condições sociais do poder nacional. Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Cultura, 1957. pp. 23-24.         [ Links ]

 

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