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Ensaios-->Memórias Reveladas - Coronel Juvêncio Saldanha Lemos -- 08/03/2012 - 17:05 (Félix Maier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Nosso amigo, o Cel Juvêncio Saldanha Lemos, está ultimando a preparação de um livro intitulado "Memórias". Nas páginas 223 a 234, ele relembra o período em que serviu no CIE. Nas suas palavras, com as quais de resto concordo integralmente,  ...tendo em vista o contexto militar atual, pré "Comissão da Verdade", e tendo em vista  as informações que constam dessas "Memórias" no período considerado, eu pensei em que talvez seja interessante divulgar esse extrato para a nossa  rede de correspondentes de E-Mails, para que relembrem (a maioria) ou tomem conhecimento (também a maioria, parece...) como  as coisas aconteceram realmente.
Assim sendo e com a concordância do autor, remeto anexo o texto em questão.
Caso algum dos destinatários deseje fazer alguma observação que venha a enriquecer ou, eventualmente, corrigir a matéria exposta, solicito que entre em contato comigo para fornecer-lhe o endereço eletrônico do Lemos.
A todos, uma boa e proveitosa leitura.
Osmar José de Barros Ribeiro (OJBR)

 

MEMÓRIAS

Coronel Juvêncio Saldanha Lemos

(Extraído do livro "Memórias", pg. 223 a 234, a ser lançado em breve)

O CIE era chefiado por um general-de-brigada oriundo da Cavalaria. Um sujeito sério, enérgico, reservado e, como tive a oportunidade de comprovar por experiência pessoal, muito justo e equilibrado. Desses tipos que não se deixam emprenhar pelos ouvidos. Conduzia e controlava todas as atividades do Centro com rédea curta, ainda que sem sair da sua sala. O homem certo no lugar certo.

O subchefe era um experiente coronel, já meu conhecido – seu filho havia sido meu cadete na AMAN – e com o qual sempre me dei muito bem. Um tipo calmo, paciencioso, muito dedicado ao serviço. Exigente sem ser antipático.

A estrutura funcional do CIE era muito técnica, muito lógica, genuinamente nacional e de comprovada eficiência. O Centro dividia-se em Seções – Informações, Contra-Informações, Operações, Logística etc. Eram sete ou oito, não lembro bem, todas chefiadas por coronéis.

Conforme a boa doutrina de segurança das Informações, tais Seções eram estanques entre si, ou seja, não havia qualquer ligação horizontal entre elas. Seguia-se a risca o clássico jargão desse tipo de atividade:- “Nem todos podem saber tudo e nem tudo pode ser do conhecimento de todos.” Assim, eu conhecia as pessoas que trabalhavam nas diversas Seções, mas desconhecia as suas organizações e atribuições. E nem queria conhecer.

Tirante os “velhos” coronéis, a maioria dos oficiais do CIE haviam sido meus contemporâneos – na AMAN, EsAO ou EsCEME. Todos formidáveis companheiros, oficiais de escol já calejados na profissão, o que tornava o ambiente de trabalho muito fraterno, de incondicional confiança mútua, de inabalável camaradagem sedimentada pelo tempo. Mas não se comentavam assuntos de serviço, nem mesmo incidentalmente, nas descontraídas conversas durante as refeições, nas “peladas” de futebol, nas diárias viagens do micro-ônibus no roteiro Asa Norte – SMU - Asa Norte, nos encontros familiares de fins de semana. A discrição, que é uma virtude militar por excelência, era cultivada ao extremo – e nem poderia deixar de assim o ser – pelo pessoal do CIE. Cada oficial recebia tarefas do e reportava-se diretamente ao seu coronel Chefe de Seção e ninguém tinha que saber no quê ele estava sendo empregado. Era assim que a coisa funcionava e funcionava muito bem.

“Vê lá aonde tu vais te meter, cara. Cuidado!”

Essa foi a recomendação de despedida que recebi de um amigo  do peito, lá em Resende.        

Compreensível essa sua sincera preocupação. O CIE era visto com reservas, quando não temor, dentro e fora da Força. Essa postura era injusta e preconceituosa, devida certamente à falta de informações – ou informações distorcidas, o que é muito pior – relativas à vigorosa atuação do CIE nos chamados “Anos de Chumbo”. Que já haviam acabado havia muito tempo.

Vamos recordar esse tempo, ainda que sumariamente. É a minha limitada e modesta contribuição para o conhecimento desse histórico período vivido pela nossa Pátria.

Já antes fiz diversas referências àqueles tempos. Mas penso que  ainda cabem algumas considerações complementares, que capacitem os meus pacientes leitores a melhor entender as burlescas realidades de hoje que lhes são conseqüentes.

Procuro ser política e ideologicamente isento nesta curta explanação. Inclusive, a maior parte das informações que ora transmito foi colhida nos livros e depoimentos de figuras da esquerda que foram ativas participantes desses acontecimentos, tristes acontecimentos, mas que fazem parte da nossa História nacional, tais como João Amazonas, Jacob Gorender, Giocondo Dias, Carlos Mariguella, Gregório Bezerra, Gabeira, Sirkys, Tavares, Aarão Reis, Paz e dezenas de outros. Como também já disse antes, a literatura sobre a matéria é abundante e de fácil obtenção.

É pacífico que a “guerra fria” chegou para valer na América com a tomada do poder em Cuba pelos guerrilheiros de Fidel Castro, em 1959. Que, sinceros, não tardaram em confessarem-se comunistas.

A ilha se tornou o entreposto que a URSS precisava para fustigar os EUA em seu próprio quintal. Assim, em troca de sustentação política, econômica e militar, Cuba recebeu e abraçou a missão estratégica de exportar a sua revolução marxista-leninista para os vizinhos americanos, mesmo os mais distantes.  Com isso, acabou-se a paz na região, cuja seqüela mais visível foi um longo período de excepcionalidade governamental em todos os países da área americana central e do sul. Uma reação extremada, mas cabível, à agressão que sofreram. Por incrível que possa parecer, tudo mudou nessa parte do mundo em razão de uma revolução de opereta em uma minúscula ilha. Nunca nada mais foi como antes. Ponto para os soviéticos.

O caso brasileiro foi emblemático. Após a porretada de 1935, os nossos patéticos comunistas estavam recolhidos. Sua única atividade era escrever muito para poucos leitores. Nenhuma ação prática, que eles não eram bestas. A partir de 1960, no entanto, com o suporte dos cubanos e a liberdade de ação cada vez mais assegurada por um pleno e  sadio regime democrático, tomaram alento. Passaram a trabalhar ostensivamente e nos moldes da veneranda agitprop (agitação e propaganda) soviética, atividade essa muito facilitada na messe do Terceiro Mundo, tanto pela simpatia que gozava a Revolução Cubana, como pela antipatia ao chamado “imperialismo norte-americano”, ambos esses sentimentos gerais e até mesmo justos.  

Todavia, e para a nossa sorte, o time esquerdista é um saco de gatos. Alguém até já disse que os comunistas só são unidos na cadeia... São facções, linhas, escolas, frentes etc., que não acaba mais. E que se hostilizam funcionalmente, ainda que o objetivo final seja sempre o mesmo: adonar-se do poder para implantar o regime comunista. Como se isso fosse uma grande coisa.

Não é difícil identificar claramente dois segmentos bem distintos da guerra revolucionária marxista tentados por aqui.

Um foi o da chamada “Teoria do Foco Guerrilheiro”, invenção de Che Guevara e Regis Debray. Como diz o nome, trata-se de criar um núcleo combatente básico, pequeno mas eficiente, assentado em região de difícil  acesso. Tal grupo crescerá aos poucos, como um câncer, até atingir os setores vitais da administração estatal. Na prática, tal teoria comprovou-se um desastre. No Brasil, foi tentada na serra do Caparaó, no estado de Minas Gerais. A Polícia Militar mineira acabou à tapa com a ridícula aventura. Também foi tentada na Bolívia, comandada pessoalmente por Che Guevara, que pagou com a vida o devaneio. Debray conseguiu fugir, mandou às favas as idéias marxistas e hoje é deputado no Parlamento Europeu.

Outro foi o da “Teoria da Ação Popular”, chamada de AP, dogmática, cerebral, quase científica. Exigia a paciência oriental de seu inspirador Mao Tse Tung. Seus adeptos acreditavam que a vitória revolucionária seria alcançada ao fim de três etapas:

            - a primeira, reivindicatória, através dos conhecidos e bem orquestrados movimentos de massa, desarmados mas intimidatórios, como as greves, ocupações, invasões e badernas populares;

            - a segunda, política, caracterizada pelo início de ações armadas tipo guerrilha, para minar a confiança da população nas autoridades;

            - a terceira, ideológica, com a formação de um Exército Popular de Libertação, no modelo chinês. Isso chegou a ser experimentado na província de Tucumán, na Argentina e provocou uma mortandade sem nenhum resultado prático.

Essa “Ação Popular” mascarou-se de início como um “socialismo cristão” e conseguiu a adesão de setores da Igreja Católica, liderados por um tal padre Vaz e pelo incensado Betinho, um sociólogo diabético que tornou-se aidético devido a uma infeliz transfusão de sangue e disso veio a falecer. Muito mais importante que a desses dois, foi a adesão da Ordem Dominicana em São Paulo.

Note-se: tudo isso antes de 1964! Logo, não foi uma reação ao regime autoritário dos militares, como dizem.

A AP cresceu, ficou forte e passou a exercer uma deletéria influência na vida política da nação. E não é absurdo reconhecer que, já em 1963, os objetivos da primeira etapa (“Reivindicatória”) estavam conquistados. Ante o pasmo da nação, o país era uma agitação só e muito bem orquestrada: no sul, o MASTER (atual MST) de Leonel Brizola; no centro, a UNE de José Serra; no nordeste, as “Ligas Camponesas” de Francisco Julião; e por todo o país, a CGT de Dante Pelacani. Nada era por acaso.

Embriagada pelo sucesso e protegida escandalosamente pelo governo irresponsável do presidente João Goulart, a esquerda sentiu-se forte o suficiente para enfrentar o mais poderoso entrave institucional à sua plena tomada do poder: as Forças Armadas. O processo escolhido para tanto foi novamente o soviético: politizar os quadros subalternos e atiçá-los contra os superiores, acabando com a disciplina e conseqüentemente com a operacionalidade da tropa.

O ambiente nos quartéis ficou tenso. Houve um levante de sargentos da FAB na Base Aérea de Brasília, sufocado pelo Exército com energia e algumas mortes. Logo em seguida, começou a falência disciplinar na Marinha. Em uma Assembléia de Marinheiros rebelados e que ocuparam a sede do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro – a tropa de Fuzileiros Navais despachada para subjugá-los aderiu à rebelião! – os oradores pregaram abertamente o fechamento do Congresso para acelerar as tais “reformas de base”. Era a ostensiva marcha para um clássico golpe de estado.

Foi essa conduta destrambelhada dos nossos esquerdistas, no governo e fora dele, que produziu o vitorioso movimento militar de 31 de março de 1964 e o regime autoritário que se seguiu. Antes que a esculhambação chegasse ao Exército, os generais agiram, respaldados pela população.Foi um contragolpe preventivo, se é que é possível imaginar isso. Luiz Carlos Prestes, o eterno e lendário secretário-geral do PCB e que já tão perto via a conquista do poder, culpou essa agressão aos militares pela derrocada total da sua revolução:- “Uma provocação, uma inversão de toda a hierarquia que facilitou o golpe.”

A Esquerda brasileira foi desmantelada em 1964. Restou-lhe buscar refúgio e orientação fora do território nacional, onde o Movimento Comunista Internacional continuava forte, ativo e muito pretensioso. Entre 1964 e 1966, muitos dos seus quadros foram mandados fazer cursos políticos e de guerrilhas na China e em Cuba.

No ano de 1966, um espalhafatoso evento de Cuba – a “Conferência Tricontinental de Havana” – pariu dois anos depois a “Organização Latino-Americana de Solidariedade – OLAS”, que traçou objetivamente os rumos e metas para a guerra subversiva nos países ao sul dos Estados Unidos. Os fanatizados marxistas-leninistas sul-americanos arregaçaram as mangas e partiram para a ação e o número de viúvas e órfãos que disso resultou é algo assombroso.          

Coincidência ou não, e eu repito que não acredito em coincidências, nesse mesmo ano de 1968 realizou-se na Colômbia o “Conselho Episcopal Latino-Americano – CELAM”, no qual os bispos da área discutiram as interpretações a dar às revolucionárias (no bom sentido) conclusões do Concílio Vaticano II. Possivelmente por ingenuidade e despreparo político dos bispos, o documento final elaborado pela CELAM apresentou 16 teses de cunho escandalosamente marxistas, de onde se originou a famigerada “Teologia da Libertação”, logo adotada com ardoroso entusiasmo pelos padres e freiras tupiniquins.

Nada de bom poderia vir daí. Como não veio.

Diz um antigo provérbio que Deus só tem dúvidas em três assuntos: o grau de pobreza dos franciscanos, a real intenção dos jesuítas e a teologia dos dominicanos.

Talvez isso explique a inacreditável aproximação de um grupo de frades dominicanos paulistas com a antes falada “Ação Popular – AP”, que já havia alterado o nome para “Ação Popular Marxista Leninista – APML”. Com a adesão dos franciscanos, passou a chamar-se “Agrupamento Comunista de São Paulo – AC/SP”. Em seguida, nova mudança de denominação: “Ação Libertadora Nacional – ALN”, sob a presidência de Carlos Marighella, o famoso comunista autor da celebrada bíblia do terrorismo subversivo: “Mini-manual da Guerrilha Urbana”.

A ponte entre o foragido Mariguella, que vivia na clandestinidade, e os piedosos frades dominicanos foi feita por um ex-repórter da “Folha de São Paulo”, de nome Carlos Alberto Libanio Christo, que em 1966 atendera a um chamamento divino e ingressara na Ordem, adotando o nome de Frei Beto. Este cândido frade pelo menos teve a coragem de externar por escrito o seu fanatismo ideológico, pois em seu livro “Nos Bastidores do Socialismo”, p. 404, declarou:-” Quero deixar bem claro que admito a pena de morte em uma única exceção: no  decorrer da guerra de guerrilhas.”

Os dominicanos tomaram a iniciativa de oferecer um mosteiro que mantinham em Conceição do Araguaia, na rodovia Belém – Brasília, para servir de base de apoio para a instalação e operação de um foco de guerrilha rural naquela região. E foi assim que começou no Brasil Central a tão falada “Guerrilha do Araguaia”. É extremamente doloroso saber que a Ordem Dominicana tem as suas batinas salpicadas de sangue brasileiro. Indelevelmente.

O núcleo diretivo da ALN era em São Paulo e por isso foi naquele estado que a luta armada eclodiu com maior intensidade.

A ALN era uma organização sanguinária. Um dos seus líderes era um assassino paranóico, Carlos Lamarca, a quem já anteriormente me referi. Dela participaram Dilma Roussef (atual presidente da República), Aloysio Nunes Ferreira e Franklin Martins (ministros de Estado do governo anterior) e Fernando Gabeira (deputado federal) dentre outros figurões da atualidade.  

Bem, foi só em dezembro de 1968, quando essa inaudita atividade subversiva já havia promovido mais de 300 violentas ações de guerrilha urbana – assaltos a bancos, sabotagens no serviço público, roubos de explosivos e armas, ataques a prédios policiais, atentados a quartéis, seqüestro de três diplomatas estrangeiros, assassinatos, justiçamentos etc. – do que resultara a inaceitável cifra de 66 mortos (20 PMs, 7 militares, 7 policiais civis, 10 vigilantes bancários e 22 civis absolutamente inocentes) que o governo brasileiro decidiu reagir como devia. E para tanto foi editado o tão famoso Ato Institucional nº 5 – AI/5.  Com isso, as forças de segurança do Estado puderam enfrentar à altura os agentes da subversão.

Foi uma guerra, como qualquer outra guerra. Em poucos meses, os “aparelhos” subversivos foram desmantelados e a célula dos dominicanos, no bairro Perdizes, na capital paulista, desativada. Os frades, interrogados sabe lá Deus como, denunciaram e atraíram Marighella para uma emboscada  montada pelo  DOPS. Ele reagiu à prisão e foi morto. Antes de morrer, baleou mortalmente uma policial, bela mulher.

Foi o início do fim da  luta armada subversiva no país.    

Em resumo, foi no ano de 1968 que alguns poucos e extremados setores da esquerda brasileira – cuja organização havia sido desmantelada quatro anos antes e de forma até muito civilizada – optou pela luta armada contra o Regime Militar. Como vimos antes, a conjuntura internacional favorecia tal opção.

Nada a ver com uma patriótica e admirável revolta visando à restauração do estado plenamente democrático no país. Não. O seu objetivo final, ignóbil por natureza e hoje confessado sem vergonha nem arrependimento, era o de implantar no Brasil um regime comunista, similar aos então vigentes na URSS, China, Cuba ou Albânia, conforme a linha ideológica da facção considerada (RAN, VPR, VAR-Palmares, COLINA, POLOP, MORENA, MR-8, PCBR, POC e lá sei eu mais o quê).  Em suma, pretendiam trocar uma ditadura de direita por uma ditadura de esquerda. Decididamente, não era uma causa nobre.

Bem, qualquer um, em qualquer tempo e lugar, que ouse pegar em armas para contestar um governo estabelecido, independente da justiça dessa decisão, deve estar consciente das responsabilidades e conseqüências que dela necessariamente advirão. Para começar, enfrentarão uma reação governamental violentíssima e a guerra que se seguirá, como qualquer guerra para valer, não terá regras nem limites, não comportando outro interesse que não seja a vitória final. A História Universal ensina isto.

No Brasil não se fugiu a essa fatalidade.

A esquerda armada impôs as armas e os métodos para o duelo e o governo aceitou. Foi um jogo sujo, mas... que fazer?

Não cabe no escopo destas Memórias um maior aprofundamento nas barbaridades conduzidas pela esquerda brasileira em sua luta armada. Selecionei apenas seis de suas ações “político-revolucionárias”, para que se faça um simples juízo do que aqueles tarados fizeram:

 1) um “Tribunal Revolucionário” ordenou a execução do major boliviano Gary Prado, comandante da  tropa que um ano  antes havia liquidado Che Guevara, lá  na  Bolívia, e que no momento estava cursando a nossa EsCEME, no  Rio de Janeiro, como aluno estrangeiro convidado.

 A execução foi marcada para o dia 01/07/1968. Os sanguinários executores, por incompetentes, não conseguiram diferenciar os uniformes dos oficiais estrangeiros e confundiram o baixote e moreno major boliviano com o alto e loiro major alemão Edward Ernest Tito Otto Maximilian Von Westernhagen, também aluno da EsCEME.

 O pobre major Edward foi seguido desde que saiu da Escola e, tão logo surgiu a oportunidade, assassinado com um tiro na nuca, morrendo na hora sem saber por quê.

 Os justiceiros trapalhões só se deram conta da estupidez cometida quando abriram a pasta do major e apenas encontraram escritos em alemão;

 2) outro “Tribunal Revolucionário” condenou à morte o capitão norte-americano Charles Rodney Chandler, um jovem veterano da Guerra do Vietnam, já desmobilizado e que, como bolsista, estava cursando a Fundação Álvares Penteado, em São Paulo, SP.

No dia 12/10/1968, o capitão Chandler foi friamente executado a tiros, na frente de sua esposa Joan e filhos – Jeffrey (quatro anos) e Todd (três anos) - quando saía de casa no bairro Sumaré, na capital paulista, desarmado.

Sobre o cadáver os assassinos lançaram panfletos com um manifesto, cujos três últimos itens diziam:

“3) O único caminho para a revolução no Brasil é a luta armada.

  4) A luta armada é o caminho de todo revolucionário no Brasil.

  5) Criar um, dois, três, vários Vietnames.”

3) em 1969, em uma cinematográfica operação, a VPR seqüestrou o embaixador norte americano Charles B. Elbrick, exigindo em troca da sua liberdade que o governo libertasse alguns presos políticos e os enviasse ao México. No local do seqüestro, os subversivos deixaram panfletos:- “ Na verdade, o  rapto do embaixador é apenas mais um ato de guerra revolucionária que avança a cada dia e que este ano iniciará a sua etapa de guerrilha rural.”

 4) no dia 10/05/1970, o jovem 2º Tenente da Polícia Militar de São Paulo Alberto Mendes Júnior, que havia sido aprisionado por um grupo guerrilheiro da VPR liderado por Carlos Lamarca na região do Vale da Ribeira, foi manietado e jogado  em um buraco. Em seguida foi morto a coronhadas na cabeça, sob o pretexto de que um tiro denunciaria a posição do grupo, que estava se evadindo da área.

Em “Comunicado ao Povo Brasileiro”, a VPR difundiu:-” O tenente Mendes foi condenado e morreu a coronhadas de fuzil, e assim o foi, sendo depois enterrado.”

5) No dia 15 de abril de 1971, o industrial dinamarquês Henning Albert Boilesen, havia já quase trinta anos radicado no Brasil, foi estupidamente executado pela VPR na Alameda Casa Branca, em São Paulo, SP. Era acusado de financiar os órgãos policiais de repressão aos subversivos. No  local da execução, foram deixados panfletos com os seguintes dizeres:- “ Como ele, existem muitos outros e sabemos quem são. Todos terão o mesmo fim, não importa quanto tempo demore; o que importa é  que todos eles sentirão o peso da Justiça Revolucionária. OLHO POR OLHO, DENTE POR DENTE.”

6) para abrilhantar  as comemorações do Sesquicentenário da Independência, aportou no Rio de Janeiro a fragata inglesa HMS “Triumph”.

Um dos seus tripulantes, o marinheiro David A. Cuthberg, 19 anos, durante um sonhado passeio turístico pela cidade, foi metralhado por terroristas brasileiros. A sua escolha para a inominável execução foi totalmente aleatória. Não fosse ele, seria outro.

 Sobre o cadáver foram lançados panfletos, denunciando que ele representava um país imperialista. E a justificativa da subversão para esse horrendo homicídio foi o de que o fato seria publicado pela imprensa inglesa, o que chamaria atenção para a luta comunista no Brasil. A dor causada à mãe desse menino não foi levada em conta   

Tenho a certeza de que Satanás estava presente nestes seis casos que pincei. E que mesmo ele chorou uma ácida lágrima pelos inocentes que neles sucumbiram.

Todos os executores dessas atrocidades foram identificados. Uns pagaram, outros estão por aí. Em todo o caso, acho que o leitor já tem condições de enfrentar as três perguntas que faço:

1º) quem declarou a guerra?

2º) quem definiu as armas e os métodos dessa guerra?

3º) dá para ter clemência com esse tipo de gente?

Como vimos antes, em parte do ano 1970 e todo o ano de 1971 eu estive morando no Rio de Janeiro. Tive então oportunidade de observar um evidente sentimento de alívio por parte da população cada vez que um desses terroristas era neutralizado. Recordo que na estação ferroviária da Central do Brasil havia diversos cartazes com as fotos de terroristas procurados, assim tipo faroeste. E quando acontecia de algum deles “cair”, os próprios passageiros faziam um “X” sobre a foto, escrevendo por cima “faturado”, “já era”, coisas assim.

Na verdade, a invulgar violência e a inacreditável crueldade como os esquerdistas desencadearam as suas ações, algumas até espetaculares, produziram um quadro totalmente estranho à cultura brasileira, provocando a natural repulsa da população. E com isso, a guerra já estava antecipadamente ganha pelo governo.  Seria apenas uma questão de tempo e paciência. E técnica, muita técnica.

Para aqueles que tiverem interesse em estudar este assunto, já existe uma farta literatura disponível, produzida tanto pelos vencedores como pelos vencidos. Sugiro particularmente a leitura de três livros: “A Verdade Sufocada”, do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, já na 7ª edição, “Orvil” (livro ao contrário), matéria organizada e editada parece que pelo Exército; e o último livro do lendário comunista Jacob Gorender.

Imagino que só daqui a uns 50 anos, quando a distância temporal dessa guerra interna dos anos 1968/1974 e o completo desaparecimento da geração nela envolvida permitir o seu estudo isento e imparcial, há de se reconhecer o real valor do pessoal que nela combateu.

Surpreendidos de início, os órgãos de segurança do Estado demoraram alguns meses a reagir. Era um tipo de guerra inédito no Brasil. Não tínhamos nem experiência nem doutrina para enfrentá-la. Os manuais estrangeiros disponíveis, traduzidos às pressas, comprovaram-se inaplicáveis às nossas peculiaridades nacionais. Mas algo tinha que ser feito e o foi.

O primeiro passo foi separar a ação subversiva dos assuntos rotineiros da Segurança Pública. Com isso, começou uma natural especialização nos quadros destacados para combater os subversivos, ainda subordinados às suas respectivas corporações, que compreensivelmente sempre se mostravam muito ciosas na preservação de suas competências e jurisdições.

Sem demora constatou-se que isso causava uma enorme dispersão de esforços na busca do objetivo comum, que era acabar com a ação armada comunista. Por exemplo: seqüestro de pessoas era com a Polícia Civil; assaltos a Bancos, com a Polícia Militar; atentados com explosivos, com os Bombeiros; ataques a quartéis, com o Exército; seqüestro de aviões, com a Aeronáutica. E assim por diante.

Para tentar superar esse problema, foi feita uma experiência no estado de São Paulo: centralizar toda a atividade antiterrorista sob uma direção única, a chamada “Operação Bandeirantes” (OBAN).

Os resultados da OBAN foram tão imediatos e positivos que ela serviu de base para a formulação de um esboço de doutrina nacional para o combate à subversão. Que posta em prática, comprovou-se um sucesso.

Coincidindo com os Grandes Comandos de Área foram criados os chamados “Centros de Operações de Defesa Interna” (CODI), desvinculando a atividade normal do Exército das ações voltadas especificamente ao combate à subversão. Muito pouca gente sabe disso. Talvez nem 1% do Exército tenha sido empregado diretamente na guerra anticomunista nesses tão badalados “Anos de Chumbo”.

Os CODI centralizavam e coordenavam as ações do aparato do Estado na luta contra a esquerda armada, apenas. Como não se tratava de conduzir operações militares convencionais – nada de pelotões, companhias, batalhões – mas sim operações de Inteligência, que exigem outro modelo de combatente, havia orgânico em cada CODI um “Destacamento de Operações de Informações” (DOI), que se encarregava do pesado e perigosíssimo trabalho de buscar as informações que levariam à identificação e neutralização do inimigo interno em armas. Os DOI, particularmente o de São Paulo, cumpriram essa missão com invulgar coragem, dedicação e patriotismo. Sobre esses combatentes, assim se expressou o Ministro do Exército, em Ordem do Dia:- “Estaremos sempre solidários com aqueles que, na hora da agressão e da adversidade, cumpriram o duro dever de se oporem à agitadores e terroristas de armas na mão, para que a Nação não fosse levada à anarquia.”

De fato, com essa organização genuinamente nacional, o nosso Brasil – para pasmo de todo o mundo, até do 1º Mundo – com um mínimo de recursos e de perdas humanas acabou com a contestação armada esquerdista em todo o seu território, tanto no ambiente urbano como no rural. E isso ficou atravessado na garganta de muita gente.

Não é má vontade com os padres – que não tenho – mas deve ser dito que em São Paulo a derrocada da atividade armada comunista começou quando o CODI destruiu as bases de apoio à subversão montadas nos mosteiros dominicanos.

Os militares sempre mantiveram os assuntos relativos a essa guerra interna sob classificação sigilosa. Havia e há razões para tanto. Contudo, isso produziu inconvenientes. O pior deles foi que por muito tempo somente as versões da derrotada esquerda vinham a público.

A maioria dessas versões é falsa, fantasiosa ou pura e simplesmente mentirosa. Visam embaralhar o errado com o certo. Começa que apresenta todos os subversivos como heróis e isso não é verdade. Houve a ocorrência de muitos, mas muitos mesmo, casos de desertores, delatores e desprezíveis traidores. Por exemplo, um dos seus mais graduados líderes em São Paulo, precisando de dinheiro para o casamento da filha, não hesitou em se passar para o lado da repressão, mediante paga. Os arquivos do CODI estufaram com a documentação obtida. E certamente heróis não foram os diversos “justiçados” pela própria subversão.

Na luta armada propriamente dita, alguns até que podem merecer algum valor. Mas a maioria não lutou bem, por covardia, despreparo militar ou desmotivação moral. E por isso eu insisto: a liderança comunista da época tem que ser responsabilizada historicamente por haver despachado para a guerra uma gente totalmente despreparada - os tais cursos de guerrilha em Cuba eram uma pândega! – para o que teria pela frente. Por favor, não me venham culpar o Exército pelo que aconteceu no Araguaia.

Queixa-se também a esquerda que seus combatentes “caídos” foram torturados nos “porões da ditadura”. Bem, isso é matéria ultra sensível e que choca qualquer militar. Algo inadmissível em um quartel regular. Coisa mesmo difícil de acreditar. E neste aspecto pesa contra os reclamantes a recomendação de um histórico a aclamado comunista brasileiro, por nome Mario Lago:-“ Quando sair da cadeia, diga que foi torturado. Sempre.”

Eu indaguei a respeito, particularmente, a um ex-integrante do DOI de São Paulo. Ele respondeu que na esmagadora maioria dos casos bastava dar um tapa na cara do comunista que ele/ela contava tudo, mais até do que se pretendia saber. Nenhum demérito nisso; é o comportamento que se espera de qualquer pessoa normal naquela situação. Mas que em alguns casos, envolvendo um pessoal mais fanático e endurecido, era preciso um procedimento interrogatório bem mais violento para chegar à informação pretendida. Que sempre vinha. Essa história de dizer que foi torturado e não falou nada é balela.

E agora, homem de bem e cristão?

Vamos ver.

Guerra não é teatrinho nem brincadeira. Morre gente. É a consagração da estupidez. É a negação de todos os princípios morais e espirituais que sublimam a condição humana. É um horroroso fenômeno que repele adjetivações, tipo guerra justa, guerra necessária, guerra suja. Guerra é guerra! E como declarou o general Leônidas Pires Gonçalves, Ministro do Exército:- “Na guerra só há uma coisa bonita: a vitória. O resto não é bonito.”

Quando a esquerda optou pela luta armada e declarou guerra ao Estado brasileiro, mergulhou irreversivelmente nessa realidade, que nada tem de romântica. Uma guerra não convencional, que é violentíssima por definição, pois os oponentes estarão separados por insuperáveis convicções ideológicas. Não existem linhas de contato entre as forças que se defrontam. Não há front nem área de retaguarda; a tensão é permanente  e isso faz com que os indivíduos nela engajados atuem no limite das suas virtudes e vícios. Não há controle regular de comando que consiga superar esse quadro.

Assim, é hipocrisia não admitir que quem voluntariamente se engaja nesse brutal tipo de luta não esteja plenamente consciente do que lhe há de acontecer, caso seja aprisionado. O combatente subversivo é um cobiçado arquivo ambulante, um repositório de informações que seus oponentes buscam com avidez. E que farão tudo para obtê-las. Em última instância, a informação salva a vida de companheiros.

Bem, acredito que no futuro a tecnologia há de fornecer métodos civilizados que aposentem o tacanho “pau-de-arara” nos necessários interrogatórios extremados; mas ainda estamos muito longe disso, pelas denúncias que leio na imprensa sobre o que aconteceu nas recentes guerras do Iraque e do Afeganistão.

E para encerrar este bosquejo histórico, a que me julguei obrigado para esclarecer àqueles que não viveram esse tempo, digo que me impressiona até hoje o incrível desprezo que as esquerdas demonstraram pela capacidade operativa das forças de segurança brasileiras, ao se decidirem pela luta armada. Por exemplo, era voz corrente nos grupos subversivos do Araguaia que o Exército não entraria na selva para lutar. O Exército se preparou, entrou, lutou e os exterminou.

E digo também que, afinal, restou-me uma dúvida, que vale para os combatentes de ambos os lados nessa lamentável guerra subversiva: será que depois de provar sangue o homem continua o mesmo?       

Admito que a estas alturas o meu paciente leitor deve estar se perguntando como sei disso tudo.

Inicialmente, devo lembrar que no ano 1968 fui S/2, e no ano 1978 fui E/2, na guarnição de Santo Ângelo. Era um fim de mundo, afastado no tempo e no espaço dos teatros de operações da guerra subversiva em andamento no país. Mas os relatórios de Informações chegavam pontualmente, completos e confiáveis; e nem poderia ser de outra forma, pois, repito, guerra é guerra, morre gente e teoricamente sempre haveria a hipótese de por lá respingar alguma coisa. 

Eu estava bem informado, portanto, e sobre uma matéria que me fascinava e da qual sempre procurei manter conhecimentos atualizados. E posteriormente servi no Centro de Informações do Exército

Hoje em dia, porém,  tudo isso está em letra impressa. São centenas de livros e publicações outras para todos os gostos, à disposição dos interessados. Das que conheço, todas viciadas pela compreensível parcialidade dos autores.

A minha geração militar viveu em toda a sua dimensão esse triste período da nossa história, que clama ser pesquisado e estudado com científica isenção, sem emoções, ressentimentos ou revanchismos. Pelo balanço da canoa, vai demorar muito ainda...

Aliás, uma das frustrações pessoais que carrego – a mais pesada delas – é a de não haver participado diretamente dessa guerra, como era o meu desejo. Na verdade, confesso envergonhado que nunca vi um preso político. E nem mesmo um simples civil preso em qualquer dos quartéis onde servi.

Como ressaltei antes, a guerra contra a esquerda armada, por sua natureza irregular e assimétrica, não comportou operações militares convencionais, mas sim operações de Inteligência, na época batizadas como de Informações.

No âmbito da força terrestre, o órgão criado para centralizar, coordenar e dirigir no mais alto nível as atividades de informações relativas a essa guerra específica foi exatamente o CIE. Uma solução muito inteligente (sem trocadilho) e que se comprovou eficaz para desvincular o combate à subversão das outras e superiores responsabilidades do Exército, que continuaram administradas pelo Estado-Maior do Exército (EME).

Quando cheguei ao CIE, em meados de 1982, essa guerra já estava acabada e vencida. Nela, o nosso Centro acumulara uma extraordinária experiência operacional, arquivara toneladas de sensíveis documentos e treinara pessoal de primeira linha para o desempenho de suas atribuições especiais.

O CIE continuava se enquadrando no conceito tradicional de órgão de Inteligência: uma estrutura destinada a alimentar continuamente os seus clientes com informações confiáveis, que os capacitam a tomar decisões acertadas e oportunas, antecipando-se aos fatos. O exemplo clássico disso são os cinco sentidos humanos, que formam um sistema de informações que têm como cliente o cérebro. O CIE tinha como cliente exclusivo o Ministro do Exército.

Como se operava na esfera militar, o objetivo focado era a produção de informações militares que, repito mais uma vez, assenta-se em um tripé: terreno, inimigo e condições meteorológicas. Lembrando que o inimigo em pauta era o chamado “inimigo interno”. Assuntos externos não eram da nossa competência. Parece que eram tocados pela 2ª Seção do EME.

Mas que inimigo interno é esse? Que ele existe, existe. Nos próprios Estados Unidos da América, país ultra desenvolvido e exemplo de democracia para o mundo, qualquer cidadão ao assumir função pública, militar ou civil, presta formal juramento de defender a sua pátria contra “... foreign and domestic enemies...”.

Em uma definição muito pessoal e muito rasteira, destinadas a leigos no assunto, eu diria que inimigo interno é aquele ou aquilo que – por motivações políticas, religiosas, raciais, ideológicas ou seja lá qual for – perturba efetiva ou potencialmente a vida nacional, com a finalidade de impor as suas idéias, via de regra malsãs. Digo isso porque se fossem boas, tais idéias seriam adotadas naturalmente pela sociedade, dispensando pressões e ameaças. Aliás, soube que recentemente a Doutrina Militar Brasileira substituiu em seus manuais a expressão “inimigo interno” por “Forças Adversas”, o que acho tecnicamente mais acertado.

Bem, já comentei antes que, ainda lambendo as feridas da sua desastrada luta armada e pegando de carona as garantias da “Abertura”, a esquerda havia se refugiado nos quadros dos partidos políticos legais. E agora: como diferenciar um político da oposição de um subversivo em hibernação?

Ora, era exatamente para isso que existia o CIE.

O pilar-mestre do CIE era a Seção de Informações, onde fui lotado.

Internamente, a Seção de Informações se dividia em quatro subseções, especializadas segundo os quatro campos que doutrinariamente expressam o Poder Nacional de um país: político, econômico, psicossocial e militar. Nela trabalhavam uma vintena de Analistas de Informações, todos oficiais superiores e de Estado-Maior, apoiados por um pelotão de discretos e tarimbados sargentos datilógrafos.

A nossa atividade era absolutamente burocrática, em um tempo em que se trabalhava com arquivos de aço, dentro dos quais se espremiam pastas de papelão suspensas entulhadas de documentos, classificados por ordem alfabética. Nada de computadores, impressoras ou periféricos de informática, que recém e timidamente chegavam ao Brasil. Tudo era manual, exigindo tempo e paciência. E não podíamos nos queixar: as nossas máquinas datilográficas eram elétricas e tínhamos uma moderna copiadora Xerox, que funcionava dia e noite ininterruptamente.

A produção de uma informação é o resultado final de um processo de elaboração mental, algo muito técnico, cartesiano, que não cabe aprofundar nestes escritos. É uma faina intelectualmente estafante e emocionalmente desgastante até que os calos do ofício apareçam.

Começa com a busca de dados nas diversas fontes disponíveis, que podem ser muitas ou poucas. Cada dado é analisado isoladamente dos demais, dissecado e avaliado, do que resulta que alguns são desprezados por inúteis e outros, se necessário, selecionados para uma busca complementar. A seguir, todos os dados são juntados e conectados, formando uma unidade que é então devidamente interpretada.  Tal interpretação conduz a uma conclusão, que é lançada no papel em português de fácil entendimento. Como se vê, a lógica formal comanda todo o procedimento.

De uma maneira geral, os dados exigidos para produzir uma informação estavam, e ainda estão, disponíveis em jornais, revistas, filmes e documentos, daí a importância dos arquivamentos e catalogações, que hoje até já são objeto de curso superior. Tudo que acontece no mundo está escrito em algum lugar. Já era assim no tempo dos nossos paleolíticos arquivos de aço; imagino como não deve ser hoje, com o advento de supercomputadores.

Todavia, há alguns dados que não são tão facilmente conseguidos. Por exemplo, dificilmente alguém vai admitir publicamente que é desonesto, homossexual, viciado em cocaína ou que tem conta bancária suspeita no exterior. Esses dados, quando necessários, eram obtidos – e acho que ainda o são – por meio de buscas excepcionais, solicitadas à nossa Seção de Operações. E aí entravam em ação as pouco conhecidas e eficientíssimas equipes de cabeludos, sempre em trajes civis, baseadas fora do aquartelamento, com suas micro-câmeras, grampos de telefones e coisas do gênero. Aqueles caras eram muito bons no que faziam.

Ainda hoje, quando recordo aqueles tempos, fico emocionado com a ilibada honestidade de propósitos e a pétrea lealdade daquele pessoal com quem tive a honra de servir no CIE. Eu nunca soube da ocorrência de qualquer “vazamento” no nosso serviço; e tampouco que alguma vez tenha havido a distorção de algum dado, visando a produzir uma informação viciada.

Na Seção de Informações, fui destacado para o Campo Militar. Logo constatei que era uma vaga esperando por mim: tenente-coronel, do quadro de Estado-Maior, com certa experiência na área da Inteligência e – motivo principal – bacharel em Direito.

Isso porque certas matérias que exigiam algum conhecimento técnico-jurídico para serem convenientemente abordadas começaram a pipocar no Centro. Nada muito complicado. Todavia, assuntos vitaminados pelos novos tempos da “Abertura” política. E exatamente por esses novos tempos, as coisas não podiam mais ser feitas à galega como antes.

Via de regra, tais processos ingressavam no Ministério do Exército através da Assessoria Jurídica do Gabinete do Ministro, que no-los encaminhavam com pedido de informações e análises de rotina. Ainda que sem detalhes, lembro de três deles, todos referentes a acontecimentos ocorridos bem antes, mas que só então estavam estourando nas cortes de Brasília.

O primeiro: aparecera boiando nos mares do Rio de Janeiro o corpo de Alexandre Baumgarten, um jornalista envolvido em negócios muito complicados com o governo. Não restavam dúvidas de que fora assassinado e, não se sabe por qual motivo, a imprensa tentou envolver o Exército nesse crime.

Com base nos dados colhidos, eu relatei que o Exército não teve nada a ver, mas nada mesmo, com o caso.

O segundo, mais complicado, foi o caso de Wladimir Herzog, um jornalista comunista que apareceu enforcado, em condições excêntricas, em uma das celas do DOI/CODI de São Paulo.

Eis um caso típico em que a mídia impôs a sua versão – a de que o pobre homem fora assassinado durante uma sessão de torturas e que o quadro de suicídio fora forjado – desprezando até mesmo os laudos de necropsia do isento Instituto Médico Legal. Eu tive acesso a toda a documentação sobre o caso, conversei em off  com gente diretamente envolvida no assunto e fiquei e estou ainda hoje convicto de que foi suicídio mesmo. Como diz que o foi o laudo técnico.

Houve, na verdade, uma grossa barbeiragem na prisão do jornalista que, diga-se de passagem, não foi preso por acaso. Tinha culpa em cartório. Mas sabia-se que ele era depressivo, com histórico de terapia na Inglaterra, onde enfrentara problemas conjugais. O seu interrogatório fora enérgico, mas não brutal, e o coitado não era durão. Apavorou-se logo e confessou as suas atividades subversivas, com a revelação de esquemas e identidades de companheiros. Recolhido à cela sem os devidos cuidados, entrou em surto e suicidou-se por enforcamento, valendo-se de uma peça do vestuário ancorada na válvula hidráulica do vaso sanitário. Uma coisa incrível, mesmo. Mas foi o que aconteceu.

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