Usina de Letras
Usina de Letras
18 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62332 )

Cartas ( 21334)

Contos (13268)

Cordel (10451)

Cronicas (22543)

Discursos (3239)

Ensaios - (10406)

Erótico (13576)

Frases (50711)

Humor (20055)

Infantil (5474)

Infanto Juvenil (4794)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140846)

Redação (3313)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1961)

Textos Religiosos/Sermões (6220)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Erotico-->24. DEODATO E CLÉBER -- 29/01/2003 - 07:18 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Durante o expediente, Deodato tinha a liberdade de sair, desde que notificado o chefe. Utilizava-se muito pouco dessa regalia, de modo que nunca lhe era negada, mesmo porque não sonegava as informações sobre o que iria providenciar. Em outros tempos, às vezes, dava desculpas e ia tomar a sua dose de aguardente. Mas essas eram águas passadas. Agora, fazia questão de relatar tudo bem direitinho, para não dar margem às sérias acusações de desleixo e de aproveitamento do erário. Sabia que o seu salário vinha das contribuições da população e não via razão para...

Parava para pensar a respeito dos grandes desvios de verbas, conforme a imprensa publicava freqüentemente. Ouvira duas ou três manifestações de espíritos de peculatários arrependidos, quando declaravam o muito de sofrimento que tiveram de enfrentar, porque a consciência não perdoa, enquanto não compreende que está em falta para com o Pai por ter ofendido as suas criaturas. Era temor que aumentava com o colorido das descrições, dada a ênfase dos médiuns em retransmitir as expressões de agudos... Nem sempre encontrava a melhor forma de definir os pensamentos, mas a intuição ia firmando-lhe na alma que fazer o bem, em todas as ocasiões, era de rigor, se quisesse evoluir para planos ou esferas mais perfeitas.

Com esses devaneios a lhe conturbarem a limpidez da apreensão da realidade, acabou dando de si quando se viu diante do hospital. Desceu da condução, autômato, imaginando o que diria ao filho para convencê-lo das boas intenções. Mais ainda: da firme determinação de apagar o passado, encetando o trabalho de criação e educação dos filhos.



— Cléber, o teu pai está aí. Você não quer ir recebê-lo na portaria?

Estava sendo incentivado a demonstrar que era capaz de locomover-se com desenvoltura, apoiando-se nas muletas e nas pernas mecânicas ainda precárias. O médico não contava com a antiga indisposição contra o progenitor e admirou-se muito ao ver o rapaz dar de ombros, demonstrando indiferença.

— Ele que venha até o quarto. O que está querendo é me pregar moral e religião.

— Você é quem sabe. De qualquer forma, vou te dar alta ainda esta semana. Basta que o Guarda Antunes me garanta que vai receber você na casa dele. Pelo que sei, o teu pai está vivendo sozinho, sem condições de te dar o necessário apoio material.

— Eu acho que vou esperar...

— Já não dá mais para manter você aqui. Há muitas pessoas na fila para serem tratadas. Quando você estiver mais forte, fazendo regularmente os exercícios de recuperação fisiológica, nós vamos tentar conseguir próteses mais modernas, daquelas que permitem mudar os passos com naturalidade. São caras, mas não...

— Se meus pais fossem ricos...

— Não precisa ser rico. Basta ter um pouco de poupança. Até pode ser usado o Fundo de Garantia...

— Meu pai é funcionário público. Não tem...

— É verdade. Eu também não tenho. Enfim, se os amigos se cotizarem, ajudando com uma verba de trinta ou quarenta por cento, a gente consegue.

— Será que eu posso fazer alguma coisa?

— O que, por exemplo?

— Escrever uma carta pro Presidente da República.

— Não custa tentar. Mas não acredite em milagres.

O médico dava trela ao mocinho, para lhe proporcionar um pouco de tranqüilidade mental. Inspirava-lhe segurança com a demonstração de interesse e solidariedade nas acusações contra as injustiças sociais. Descarregava no poder público, para não ouvir lamentações contra a sorte e maldições contra Deus, estas, sim, depressivas demais. Era rústica a atitude, mas o sentimento transmitido era de afeição e de compreensão das necessidades dos mutilados.

— Espere um pouco que vou fazer o teu pai entrar.

— Mudei de idéia. Me leva até o corredor da frente na cadeira de rodas. O salão, eu atravesso sozinho.

Abriu-se em sorriso a fisionomia do médico.

Quando Deodato avistou o filho caminhando em sua direção, não pôde conter as lágrimas. Não era o fato de estar recuperado.; era porque ele vinha para ele, como que afirmando que todas as dificuldades morais estavam superadas.

— Meu filho... querido...

Correu ao encontro dele e o abraçou comovidamente.

— Pai, eu preciso que me ajude.

— Eu vou ajudar, Cléber. Eu vou ajudar. Vou fazer tudo que for possível. Vamos pro quarto porque eu tenho muitas coisas pra te contar.

Realmente, a conversa foi demorada. Só ficou faltando, de fato, mencionar que a mãe engravidara fora de casa. E essa informação era desnecessária, uma vez que Cléber sabia muito bem que Deodato não era o pai.

— Resta perguntar se você está de acordo em vir morar com a gente.

— Eu tenho escolha?

— Você pode pedir pra ser agasalhado pelo Estado. Sempre existe uma ou outra instituição oficial...

— E Antunes? Ele me disse que ia me levar pra casa dele.

— Se ele quiser mais um, eu não vou dizer que não. Mas não sei se Dona Odete vai concordar.

— Pois o Doutor me disse que a minha alta está na mão dele. Ou melhor, que ele precisa garantir que irão cuidar de mim.

— E se ele não garantir?

— Eu não sei. Acho que serei transferido pra um hospital de recuperação.

— Vamos deixar essa decisão nas mãos de Deus. Você vai ver como tudo vai dar certo. Eu prometi pras crianças devolver a televisão que vendi. Assim, se você for pra casa...

— Eu não preciso de televisão. Ninguém precisa de televisão. É só crime e mais crime. E gente correndo atrás da bola. Guarda o dinheiro pras minhas pernas ortopédicas.

Deodato não havia imaginado que o filho estivesse tão compenetrado a respeito das coisas do mundo. “Gente correndo atrás da bola... E ele sem os pés...” Dimensionava a tragédia do garoto. “Crime e mais crime... Foi assim que terminou aleijado.” As palavras eram muito fortes, na expressão dos sentimentos rudes de perplexidade pela nova condição física e social. Deodato percebia o quanto a sua maldade tinha sido a causa daquela tragédia.

— Está bem. Você tem razão. Ninguém precisa de televisão. Mas as meninas estão acostumadas com certos programas. Então, vou comprar um aparelho de segunda mão, bem baratinho, pra que não pensem que menti. Elas ainda são muito pequenas pra entenderem que as pessoas podem voltar atrás nas decisões.

A conversa havia tornado Cléber melancólico. Não achava certo o pai reunir todos de novo. Era preferível dar as meninas para adoção. Com tanta gente em casa, iam passar fome. Mas calou-se, achando melhor que a vida viesse a ensinar a todo o mundo. “Não foi assim que aconteceu comigo?”

— Eu não posso ficar mais tempo com você. Hoje não vai dar pra ler nada. Vamos fazer uma prece. Eu tenho de providenciar o carreto das coisas de tua mãe.

Cléber não partilhava desse momento de reflexão religiosa. No começo, fingia recolher-se, porque desejava ver o pai ir embora o quanto antes. Nos últimos tempos, ficava admirando a seriedade com que o velho se desincumbia da tarefa espiritual. Recordava-se dos tempos das pancadas e não reconhecia o homem estúpido de antigamente. Saíra de casa para ganhar o mundo. Voltava agora mais dependente do que nunca. “Se houver algum protetor, algum anjo da guarda, é bom que faça com que ele não volte à bebida.” Rezava sem se compenetrar de que o fazia. Mas punha sorriso de muita satisfação na face dos amigos da espiritualidade. E afastava os obsessores, que iam rosnar maldições a distância. Desde que o pai freqüentava o Centro Espírita e levava o conhecimento cristão ao hospital, a atuação deles estava cada vez mais dificultada, tantas eram as luzes que lhes ofuscavam a visão. Inimigos antigos queriam, por força, fazer com que o rapaz acreditasse na culpa do pai. Chegaram a insuflar-lhe na mente que o desastre foi arquitetado pelos protetores, para impedi-lo de conhecer o mundo, de gozar a vida, de se desforrar da maldade paterna. A persistência, contudo, em trilhar o caminho das virtudes estava tornando-lhes a ascendência muito tênue.

“Pai, vai com Deus!” Não disse. Só pensou. Mas os eflúvios desse desejo chegaram ao entendimento psíquico do homem.

— Filho, fique com Deus!

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui