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Contos-->TEM CUIDADO, MEU FILHO ! -- 25/12/2002 - 20:31 (Gabriel de Sousa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Naquela manhã, ainda de madrugada, quando Annia Sitah disse a Yasser, em tom de despedida, «– Tem cuidado, meu filho! », ela queria dizer uma coisa que, como o leitor verá pelo desenrolar da história, não tinha aquele significado linear que parece à primeira vista. A mesma frase nem sempre quer dizer a mesma coisa… As palavras, por vezes, têm o valor que nós lhes queremos dar. Podem ser o que parece ou precisamente o seu contrário.
Yasser levantara-se cerca das duas da manhã. Lavou-se, fez a barba, agarrou ao redor do corpo vários explosivos e vestiu-se.
Enquanto cumpria estas tarefas, surgiram-lhe na memória as imagens terríveis de há meses atrás. Também de madrugada, em Rafah, na faixa de Gaza, foram acordados pela passagem de aviões a baixa altitude. Em breve um estrondo, vários estrondos e várias explosões. Ouviram-se gritos desesperados e surpresos. Às escuras, quase nem se deram conta da dimensão da tragédia. Se já tivesse nascido o sol, teriam visto sangue por todos os lados, corpos mutilados, casas em ruínas… E foi o que foram descobrindo, entre gritos e choros, à medida que o sol raiava no horizonte.
Yasser, com bastantes escoriações, viu-se só com a mãe, também ela bastante ferida. O pai e as duas irmãs tinham morrido. Aquilo que sentia pelos israelitas, e que o levara a lançar-lhes pedras, era ainda qualquer coisa de indefinido, embora sentimento de raiva e de impotência, por ver que eles, palestinos, tinham apenas as suas vidas e pedras para defrontar os tanques, as armas, os aviões e as bombas do inimigo. A partir do momento em que vira os corpos mutilados do seu pai e das irmãs, esse sentimento transformou-se em ódio. Ódio puro. Puro e cego.
Na véspera daquele dia fatídico, algures em Telavive, Ariel David despediu-se da mãe após umas curtas férias. Ariel pertencia à força aérea israelita e tinha de apresentar-se na base militar até à meia-noite. Mariana David, de origem eslava, disse para Ariel «-Tem cuidado, meu filho!». Desejava que ele voltasse em breve, são e salvo. Maldita guerra que nunca mais acabava!
Quis a ironia do destino que o avião de Ariel fizesse parte da esquadrilha que atacou na madrugada seguinte aquilo que lhes tinha sido referenciado como o esconderijo de um perigoso «terrorista». Ariel não tivera que temer nada. Contra gente indefesa, desarmada e, ainda por cima, pela calada da noite, a única coisa que lhe poderia acontecer era uma avaria no avião. Regressaram à base com a «missão cumprida». O destino daquela mãe e daquele filho cumprira-se. Iriam reencontrar-se.

Yasser saiu de casa. Ainda era bastante jovem, mas ele próprio estava a decidir e a traçar o seu destino. A caminhada ia ser longa. Longamente premeditada, ele sabia os obstáculos que teria de ultrapassar até chegar a Telavive. Olhou para trás, por uma última vez, para rever o sítio onde vivera os últimos meses, e conseguiu lobrigar a cortinazita de pano, entreaberta, sinal de que a mãe também o queria ver por mais uns minutos. Acenou e seguiu sem mais vacilações.
Contrariamente ao que seria de esperar, a caminhada decorreu sem contratempos e, quando deu por isso, estava nos subúrbios de Telavive. Procurou uma paragem e esperou um autocarro. Quando ele chegou, aguardou pacientemente a sua vez e entrou discreta e naturalmente. Sentou-se num lugar da traseira, à direita, do lado do corredor. À partida, havia uma dezena de pessoas, tudo homens, que se foram «revezando» em cada paragem. Numa delas, entrou uma mulher com duas crianças. Lembrou-se da mãe e das irmãs e desejou, intimamente, que elas descessem numa das próximas paragens. Assim aconteceu. Suspirou de alívio. O autocarro estava praticamente cheio. Lembrou-se da derradeira recomendação que a mãe lhe fizera « – Tem cuidado!». Não podia falhar! Procurou o cordão que estava ligado ao detonador, levantou-se e puxou-o. Não deu certamente por mais nada. O seu corpo ficou literalmente desfeito. Minutos depois, a televisão noticiava o atentado, já com imagens. Dez mortos e uma vintena de feridos, alguns em estado grave. Do «homem-bomba» não encontraram qualquer documentação. Seria um palestino bastante novo. Como de costume, o estado-maior israelita reuniu para estudar as represálias. Círculo vicioso. Guerra sem fim.
Annia não dormiu quase toda a noite, esperando notícias. De manhã, uma vizinha informou-a que tinha havido mais um atentado em Telavive, com numerosas vítimas. Fechou a porta, prostrou-se no chão e chorou silenciosamente.
Dirigiu-se à cozinha para preparar um chá de menta. Levantou a chaleira e, por baixo, encontrou um papel dobrado. Abriu-o e leu : «Mãe, desculpe deixá-la sozinha. Tudo deve ter corrido como previsto. Tinha de vingar a morte do pai e das minhas irmãs, com as únicas armas que Alá nos proporciona. Que Ele te proteja e te permita, um dia, viver em Paz na nossa bendita Terra. Beijos do teu filho Yasser». Annia beijou o papel e misturou as suas lágrimas à tinta com que ele estava escrito.
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