Para demonstrar interesse por Gaspar, a mãe apareceu naquela noite no lar de Antunes. Ele não estava, porque tinha ido ao Centro, mas Odete a recebeu, crente de que iria querer levar embora a criança.
— Já vou dizendo que não tenho como alimentar ou vestir esse menino. Vim agradecer ao soldado por tudo o que tem feito pela minha família. E pedir pra que continuem com ele por mais algum tempo, até...
Odete lembrava-se do que ocorrera no Posto de Saúde e não punha fé nas promessas da mulher. Interferiu:
— Eu acho que a senhora está pretendendo deixá-lo com a gente pro resto da vida.
— Deus me livre de estar mentindo. Se isso acontecer, não vai ser por minha vontade. Mas não vai acontecer, não.
— Por que não leva ele já pra casa? Pelo menos irá cuidar de um, porque os outros estão espalhados por aí.
Odete desconfiava de que a mulher desconhecia as providências dos policiais. Mas o que lhe disse alertou-a para o seu conhecimento da situação.
— Estou morando de empréstimo na casa da minha irmã. É um barraco tão pequeno que, quando ela voltar da viagem, vou precisar sair.
— Então, vamos fazer o seguinte: a senhora leva o menino e, quando a irmã voltar, traz ele de volta.
Lágrimas borbulharam dos olhos da mulher.
— Pelo amor de Deus, fique com ele, senão eu vou perder o emprego.
— Gaspar é bem capaz de ficar sozinho em casa. Pode ir à escola e comer um prato de comida, mesmo frio, que a senhora deixar pra ele. Quando voltar do emprego, a senhora dá um banho nele e põe na cama.
— Que cama? Eu mesma durmo numa rede presa a dois paus fincados no chão.
— Então, o que veio fazer aqui, de verdade? Veio pra saber se ele está bem ou pra que a gente não mande mais a polícia saber o que está acontecendo às crianças? É preciso ter juízo, quando se põe filho no mundo.
— Nunca mais vou ter nenhum.
— Mas, e a gravidez?
— Vou tirar a criança. Não tem nem três meses que estou grávida.
Odete começava a desconfiar de que a mulher viera pedir dinheiro. Pôs o pé atrás.
— Sabe que estou querendo que a senhora fique com o menino, porque vou ter de passar duas semanas longe do trabalho. Já arrumei uma pessoa pra pôr no meu lugar. Falei que ia fazer uma operação da hérnia. A patroa nem ligou, desde que não vai gastar um centavo a mais.
— A senhora é católica?
— Sou.
— Vai à igreja?
— Quando posso.
— Quando foi se confessar pela última vez?
— Faz um pouco de tempo.
— Então, está na hora de ir de novo. Venha domingo cedo que nós vamos juntas. Eu pago a condução e a senhora vai poder conversar sobre o aborto com o padre.
— Mas ele não vai deixar...
— Claro que não. É pecado mortal.
— Mas todo o mundo faz.
— Quem faz vai ter de se arrepender ou vai acabar no Inferno.
— Então, eu me confesso depois. Assim o padre me dá absolvição e eu rezo um terço...
— Isso é hipocrisia. O que o seu marido... Perdão, a senhora disse que não... como é mesmo? ... que não era assunto do interesse dele. Por quê? Ele não é o pai?
A mulher se arrependia, sim, mas de ter ido cair naquela armadilha moral. Não precisava de sermões e aquela ainda queria saber da vida íntima. Resolveu acabar com o assunto:
— Se a senhora não quer ficar com o menino...
— O menino não está sendo obstáculo pra que a senhora não possa vir comigo à igreja. Não precisa me contar a sua vida. Mas eu acho que, pra benefício de tua alma, vai ser muito bom conservar a criança na barriga.
Coçava na língua de Odete a vontade de revelar que o marido da outra estava acompanhando Antunes ao Centro. Tinha até preparado um café reforçado para quando voltassem. “Como vai ser bom se ele encontrar a mulher aqui!” Aí lhe veio a inspiração:
— A senhora, D. Maria — é Maria o seu nome, não?...
— Maria, sim.
— Mais alguma coisa: Teresa, das Dores?...
— Não, só Maria da Silva, porque meu marido é Deodato da Silva.
— E de solteira?
Odete começava a alongar a conversa. Eram quase oito e meia e o esposo não deveria chegar depois das nove. Naquela lengalenga ficaram uns cinco minutos até que a convidou para o café com bolo de fubá. Entraram na cozinha, que deu motivo para outros assuntos
Maria observava que a casa era muito modesta. As panelas estavam brilhando mas eram de alumínio antigo, amassadas e gastas. Lembrou-se das que tinha agora, manchadas e sujas. Viu as da patroa, reluzentes e novas. Pensou nas que deixara com o marido e que estavam encardidas. Não teve vontade de voltar. Mas o bolo estava delicioso e o café com leite, quentinho. Jantara as sobras dos patrões e comera até fartar-se. Assim, não iria bancar a esganada na casa do policial. Mas um pedaço de bolo sempre ia.
Quando terminou a ligeira refeição, fez menção de sair.
Odete se apressou em arrumar mais assunto:
— Venha ver onde Gaspar está dormindo e as roupas que arrumei pra ele.
Maria achou que a outra desejava humilhá-la. Mas se conformou, porque estava na dependência dela. Não podia desfeiteá-la ou ela lhe devolveria o filho. Fingiu interessar-se e elogiou cada peça que lhe foi mostrada. Deixou para mais tarde voltar a falar sobre o aborto. Não expusera o assunto em sua plenitude. Pretendia, pelo menos, deixar o soldado prevenido, para possíveis gastos com remédios. Para a “parteira”, tinha o suficiente. Se pudesse, ia pedir ajuda ao pai da criança, mas esse desaparecera sem deixar rastro. Não envolvera a mulher, porque não sabia que ela não era espírita. “Quem mandou não ter perguntado antes?”
Estavam no quarto, quando se ouviram vozes que entravam. Odete se precipitou a explicar:
— É Antunes chegando do Centro. Quem será que está com ele?