Bom,aqui estou eu,na pequena e apertada cozinha
do meu apartamento.São nove da noite,espero uma resposta de uma colega que disse que ligaria á noite para confirmar um passeio,mas algo já me diz a algum tempo que não se deve acreditar em mensagens rápidas de secretária eletrônica.Até elas dão recado de forma distorcida.Mesmo essa colega tem jeito de ser bem nova,acho que nem a conheço.
Ah,mas não tem importância...Hoje é meu dia de folga,posso trabalhar naquilo que gosto:me entregar à poesia.O que você está pensando?Sou assalariado,mas não sou imbecil.Procuro o que fazer.Não gasto meu tempo vendo televisão só pra dormir(ou pra NÃO dormir,se a luz azul da tela te incomoda),ou lendo livros ou escutando música pra ter o mesmo efeito,pois aboli coisas que considero formas menores de arte.Elas estavam tendo um efeito maléfico na minha vida.
Faz tempo que eu trabalho com isso, mas confesso que comecei por pura distração, brincadeira mesmo.Estava sentado na minha mesa de trabalho quase me apoiando nela pra dormir, quando um estagiário chato meteu a mão nela pra me despertar.Nem tive como gritar com ele,pois o garoto é bom de fuga.Só que ele deixou cair um livro,com algo que se pareciam com desenhos ,mas formados por letras.Cada um tinha uma forma diferente,e meu passatempo a partir dali foi associar essa letras entre si para ver se formavam palavras.A cada palavra que eu encaixava
,era uma festa.No final do expediente,o pentelho voltou à minha mesa,só pra me dizer que eu podia ficar com o livro.É,tambêm acho que ele não leu o livro.Mas continuava achando essas articul~ções de palavras algo muito esquisito,sem sentido algum.Daí,um amigo professor,de passagem pelo meu apê,viu o livro e comentou que havia encontrado seu autor por acaso,num tropeção em que ambos caíram em frente á escola em que meu amigo dava aula.Bom,o que aconteceu depois não interessa. Perguntei pra ele se ainda mantinha contato com esse autor e ele disse que sim.Peguei seu telefone e liguei no dia seguinte.
Fiz uma pergunta singela,inocente até.Ora,só perguntei se a associação das sílabas "pe" e "nis" que aparecem num desses escritos poderiam corresponder a um símbolo fálico.Ele me mandou ir pro prezinho e pra outros lugares e depois desligou na minha cara!! Ah,até hoje conto isso com uma pontinha de ódio.Tá bom,não é só uma "pontinha",mas tambêm não é algo tão sério assim,
Afinal,sóescrevo no fim de semana ,é algo ocasional.Eu me controlo!
Nossa,acho melhor mudar o assunto,tá parecendo papo de viciado...Mas o que posso fazer?Esse desgraçado fez acender uma centelha,uma verve, que me contaminou por inteiro.Nem sei porquê não larguei ainda esse emprego burocrático para viver do que eu REALMENTE faço.Olhem que esse episódio foi há apenas seis meses.
E me sinto já um poeta formado.Trabalhei com todas as formas que aqele salafrário (ainda se usa essa palavra??)usou e ainda muitas outras. Afinal,pra quê escrever como eles escrevem?É melhor trabalhar com o que já está feito,pois o povo gosta mais,está mais acostumado.Bom,quando digo "povo" entendam o povo que está habituado a isso.O "povo",de modo genérico,está preocupado com outras coisas...
Mas,voltando ás formas,penso que é chegada a hora de eu alçar um vôo maior.Vou fazer agora a a grande obra da minha vida!Será algo realmente grandioso,como só os clássicos gregos alcançaram! Num acesso de inspiração,contarei a História da Humanidade em apenas algumas linhas,ou então encherei páginas e mais páginas sobre como me senti ao observar uma tartaruga.Posso falar de tudo,tudo o que quiser!!! Huuuuuummmm....tá,tá bom?Mas...e como?
Ah,querem me trazer de volta à realidade,né?Pois
NÃO!! Concluirei minha grande obra apesar de toda a interferência!Vou começar por uma ode,afinal é um poema de grandes proporções,e que não precisa ter um "tema edificante" para o público.Posso fazer uma ode sobre qualquer coisa,se esta coisa ME for grandiosa.Posso fazer uma sobre....DEixe-me ver...já sei,sobre a espera do ser amado.Não..
só os medíocres escrevem uma representação da própria vida.Ou sobre a luta de Orfeu...Não,não sou tão erudito,só talvez pretensioso.É melhor não pensar numa ode.Talvez uma epopéia,ou então uma peça clássica grega. Assim,poderia tratar de algo com alguma relevância...Ah,que se danem as pessoas!Nem que eu tenha de escrever pra apenas eu ler,quero fazer do meu jeito!!
Tantas opções,....uma peça shakesperiana;ou um poema de uma linha;ou um soneto trovadoresco, cheio de redondilhas,metrificações,e outras coisas...mas nem sei no que pensar!...Li uma vez num livro dum tal de Pessoa que "viver não era necessário,o necessário é criar.".Concordei com essa frase pelos últimos seis meses.Continuei trabalhando do mesmo jeito que sempre,fiz de tudo pra que não houvessem mudanças na minha rotina, para que assim crescesse do outro lado,do lado das idéias.Mas algo deve ter mudado isso.Não estou mais tão certo do que vou fazer...
Talvez a ameaça do telefonema...Sim,nunca recebi ligação de ninguêm do meu serviço,e ela parece ser tão nova...Só pode ser ela!Ah,meu deus,de que adianta criar as mais belas estrofes e não conseguir sentí-las?AH,chega de formalidades!Corto agora esse fio onírico que me ligava ao Mundo das Idéias,pois nesse instante, algo diferente acontece.O telefone toca.
Sim,o telefone toca!FAz tanto tempo que eu não ouvia isso, tão diferente!Mas não tenho coragem de atender.Já sei,ligo a secretária e retorno a ligação mais tarde.Se for um desaforo...?
Espero alguns angustiantes minutos para ouvir a mensagem deixada por ela.A voz ainda mais doce do que da primeira vez me dizia:"Oi,sou eu de novo,a garota nova do escritório.Olha,pensei melhor e acho que não posso sair sozinha pra ir na tua casa,tambêm passear,já não da´...Seguinte:melhor que venha até aqui,assim não fico mais sozinha...vejo você...até."
A partir daí,voltei a fincar meus pés de novo na terra,provavelmente de forma definitiva.Meu vôo foi alto,mas a queda foi bem suave.Estou agora preparado para a verdadeira grande obra de minah vida.E esta provavelmente só vai ficar completa daqui a 9 meses.
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