Odete deveria buscar um pediatra que pudesse examinar a criança também do ponto de vista psíquico, uma vez que era muito esquisito estar o menino a alfabetizar-se praticamente sozinho, quando as próprias professoras o declaravam incapaz intelectualmente. Conversara com o marido desde que ele se impressionara com o desempenho da criança e havia posto a pulga atrás da orelha. Quando foi pegar o ônibus, atrapalhou-se com o letreiro, puxando o menino pelo braço para entrar em coletivo errado. Mas Gaspar foi suficientemente esperto para dizer o nome correto do destino, impedindo uma viagem inútil. Aí Odete percebeu que não era ele tão estúpido assim.
Pensou com os botões:
“Preciso de uma boa opinião médica, pra não agir de modo estapafúrdio, gastando dinheiro à toa com tantos vigaristas que existem por aí prometendo curas milagrosas.”
Chegou ao Posto de Saúde a tempo de pegar senha de baixa numeração. Precisava contentar-se com o médico de plantão, cuja especialidade desconhecia. Se fosse um que cuidasse da pele (“dermatologista”, conseguiu recordar-se) a viagem não estaria totalmente perdida.
Enquanto esperava no salão, que ia ficando cada vez mais lotado, observava a movimentação das pessoas. Muita gente apenas entrava e saía, gente bem vestida. Odete sabia que eram funcionários em busca de licenças médicas. Ouvira dizer que muitos não tinham doença alguma.; pretendiam viajar, sem perda de centavo do ordenado. Vira, na televisão, casos denunciados de licenças por telefone. Um escândalo!
Esperou hora e meia para ser chamado o menino. Durante esse tempo, deu-lhe a ler prospectos a respeito de doenças transmissíveis. Pedia-se especial cuidado com a dengue, com a AIDS e com o sarampo. Recomendavam-se as diversas vacinas contra a tuberculose e as doenças infantis. Prevenia-se quanto às campanhas da poliomielite, explicando-se que se trata da paralisia infantil. Gaspar ficou entretido com os dizeres complexos, contudo, ao ser incentivado para efetuar a leitura em voz alta, foi lendo com titubeios, mas de maneira a não deixar dúvidas quanto ao fato de saber reconhecer as letras, as palavras e as frases.
Odete ia num crescendo de admiração. Como podiam ter deixado de observar a faculdade intelectual embutida?
Ao entrar no consultório, levava a certeza de que o menino não era débil mental.
— Doutor, por favor, examine as feridas desta criança.
— Esse menino já esteve sob meus cuidados. É o irmão daquele... Cláudio...
Gaspar agitou-se:
— Cléber.
— Isso mesmo. Cléber, o que teve as pernas amputadas. Mas a senhora, eu não conheço...
— Sou só a esposa do soldado que está...
— Antunes.
— O senhor o conhece!
— É ele que passava horas cuidando das crianças no hospital. Mas o que tem o Gaspar?
— Está cheio de feridas pelo corpo todo.
— Vamos examinar.
O médico pediu que Gaspar tirasse a camisa. Foi um sacrifício. Odete precisou ajudar a desabotoar
— Ele tem muitas dificuldades, Doutor. Mas é inteligente.
O médico interessou-se:
— No hospital, não deu trabalho. Tomava os remédios e atendia a tudo que lhe era pedido. Mas as enfermeiras tinham pavor de ficar com ele. Diziam que não era capaz de fazer as mínimas coisas.
— Nem falar sabe direito. É quieto e respeitoso.
— Vou recomendar exames psiquiátricos.
Entrementes, as feridas foram dadas como produto de picadas de insetos infectadas. Nada que uma pomada não resolvesse.
— O senhor poderia conseguir de graça?
— O posto não é rico, mas o Governo fornece algum material. Acho que esse produto deve existir na farmácia.
Houve um instante de silêncio, enquanto o médico escrevia. Depois explicou:
— O especialista que vai cuidar da deficiência mental passa por aqui apenas uma vez por semana. Tem a agenda abarrotada. A senhora vai marcar a consulta, mas não pode perder a oportunidade, mesmo que seja para daqui a dois ou três meses. Se não puder trazer o menino, peça ao seu marido. Nem a mãe nem o pai irão se interessar...
— Não vão mesmo, Doutor, porque estão separados e ninguém sabe onde a mãe dele foi parar.
Gaspar ouvia com muita atenção tudo que se dizia. Estava acostumado com o hábito de as pessoas falarem dele em sua presença. Muitas falavam com rancor e outras com piedade. O médico e a benfeitora transmitiam-lhe tão-somente interesse em revelar a verdade. Adivinhava que suas intenções eram positivas, no sentido de ajudar.
Ao sair, Gaspar sorriu para o bondoso homem que lhe deu um piparote no alto da cabeça. Era o máximo de intimidade a que se permitia com os pacientes jovens. Afinal de contas, sua especialidade era a cardiologia.
No guichê de apontamento dos retornos, havia vaga com o psiquiatra somente dentro de dois meses e meio. Odete imaginou que o marido até lá estaria trabalhando e que Gaspar já teria voltado a viver com o pai. Achou que seria melhor assim. Cada qual com suas responsabilidades.
Nisso o menino soltou um grito:
— Mamãe!
— Onde? Quem?
E ele apontava para uma mulher que estava apressando-se para sair.
Odete não hesitou. Correu atrás dela, chamando:
— Senhora! Minha senhora! A senhora aí!
E ela estugava o passo.
Mas Odete não se apurou. Correu para a viatura policial próxima, identificou-se e solicitou a detenção da pessoa que fugia.
Em cinco minutos, Gaspar estava na presença da mãe.
— Oh!, meu filho, eu juro que não te vi. Quem te trouxe até aqui? Está doentinho?
Falava e olhava para a mulher e os policiais. Gaspar procurava abraçá-la, mas não se dignava ela oferecer-lhe o pescoço. Afagava os cabelos do pequeno e prometia que ia levá-lo com ela.
Odete, todavia, não se deixou engodar pelas palavras da megera. Acionou os policiais para que esclarecessem o que fazia a mulher ali. Um deles requereu o boleto das consultas e verificou que ela estava procurando o ginecologista.
— Está grávida?
— Acho que estou.
— E não vai contar ao teu marido?
— Isso é problema que não diz respeito a vocês nem a ele.
Estava muito agressiva.
— A senhora diz que vai cuidar do menino. Como vamos saber se não vai abandoná-lo, dobrando a esquina?
Enquanto um perguntava, o outro ia anotando os dados que constavam do registro oficial. Em seguida, foi até a secretaria do Posto e verificou os dizeres da ficha, endereço, inclusive.
— Este é o lugar em que está morando ou é o endereço antigo?
Odete não saberia informar se lhe perguntassem. A mulher afiançou que se tratava do endereço atual. Gaspar, no entanto, conseguiu desmenti-la, com um penosíssimo “não é verdade!”
— Vocês fariam um favor enorme às crianças se descobrissem onde ela está morando.
Rapidamente, Odete escreveu o nome do marido e a corporação em que prestava serviço. Deixou também registrado o seu endereço, encarecendo que deveriam avisá-la do resultado das diligências. Não deu atenção às caretas da mulher e dirigiu-se a Gaspar, enfatizando as palavras, destacando sua sonoridade, particularizando as expressões:
— Você vai ter de me dizer se quer ficar comigo ou com tua mãe.
Gaspar não hesitou e a agarrou pela mão.
— Não, meu bem.; eu quero ouvir de tua própria voz.
Lágrimas borbulhavam dos olhinhos sofredores. Entre soluços, o menino conseguiu dizer:
— Eu quero ir com a senhora.
Os policiais se comoveram com a resolução. À vista do endereço, dispuseram-se a levar os três para seus destinos, mas, antes, providenciaram a pomada. Assim, em pouco mais de vinte minutos, Odete chegava, a tempo de verificar que os ovos mexidos estavam recebendo a salsinha. A mãe de Gaspar seguiu na viatura, para indicar aos soldados onde estava morando, não sem terem recebido a recomendação de Antunes para que localizassem as meninas.
— Quanto à senhora, madame — disse com raiva —, vai ter de ir ver o teu filho no hospital, porque o rapaz está um caco de gente. O que está fazendo com ele é desumano. Se pôs o filho no mundo, é pra cuidar dele...
E por aí iria mais um pouco, não fosse a pressa dos amigos fardados.