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Contos-->SUBLIMAÇÃO DE UM GRANDE AMOR -- 18/12/2002 - 21:38 (Gabriel de Sousa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Alzira e Pedro Manuel conheceram-se em Angola nos anos 70. Apesar da guerra que durava há cerca de 10 anos, ninguém, pelo menos entre os «metropolitanos», imaginava sequer a possibilidade da Independência.
Ambos tinham nascido em terras angolanas, para onde os pais tinham emigrado há muitos anos. Alzira leccionava no Liceu de Luanda, Pedro Manuel trabalhava na Companhia dos Diamantes de Angola.
Foi o que se pode dizer amor à primeira vista. Ao segundo encontro (o primeiro dera-se na festa de aniversário de um amigo comum), ele pediu-lhe namoro e ela, pelo sorriso radiante, demonstrou bem que não desejava outra coisa.
Namoraram alguns meses, conheceram as respectivas famílias e, desde cedo, mostraram o desejo de «juntar os trapinhos» em vez de se casar. Os pais de Alzira, bem mais conservadores que os de Pedro Manuel, não estavam muito pelos ajustes e desviavam até a conversa quando o assunto era aflorado. Mas eles eram adultos, atilados e a vida pertencia-lhes. Se tivesse de ser assim, que poderiam os pais fazer? E assim aconteceu. Alzira e Pedro compraram um apartamento em Luanda e para lá se mudaram, encetando uma nova vida.
Viviam felizes e faziam projectos para se casar, principalmente se tivessem filhos. Passados quatro anos, Alzira, apesar de uns «problemas» que a tinham obrigado a consultar vários ginecologistas, ficou grávida. Foi uma alegria para toda a família.
Tudo se desenrolava relativamente bem. Ela continuava no liceu e ele, em virtude de uma promoção que tivera, passava largos períodos em viagens pelo interior de Angola.
Quando o bebé nasceu, felizmente que se encontrava na capital e assistiu mesmo ao parto. Saiu um belo rapagão!
Curiosamente, Pedro não pareceu, apesar de tudo, muito entusiasmado. Alguns semanas depois deu-se o « 25 de Abril de 1974 » . Pedro Manuel estava em Benguela. Alzira tentou contactá-lo pelo telefone mas não conseguiu. Passaram-se vários dias e ela continuou sem notícias dele. Apavorou-se e, pressionada pelos pais, acompanhou-os num avião para Lisboa, deixando tudo para trás. Sempre com a secreta esperança de que ainda viria a encontrar-se com Pedro, mas tal não aconteceu. Alzira esperou, esperou e continuou esperando...
Levou tempo a reinserção e as dificuldades foram muitas. Há males, no entanto, que vêm por bem... Assim, teve mais tempo para se ocupar do bebé. Finalmente, o pai conseguiu encontrar emprego numa empresa em Coimbra e ela ocupou uma vaga num colégio particular da mesma cidade. Encontraram uma casa para habitar. A mãe tratava das lides domésticas e ocupava-se da criança durante o dia. Mais um drama da descolonização que se resolvia, mas Alzira não deixava de pensar no Pedro Manuel, o pai do seu filho. Que teria acontecido? Estaria vivo? Todos os seus esforços para o encontrar foram em vão.

Cristina era finalista de Letras na Faculdade de Lisboa, 23 anos, loira, de cabelos compridos, sorriso rasgado a mostrar uns dentes alvos como a neve. Nuno Miguel trabalhava numa loja de computadores na Avenida do Brasil e, à noite, frequentava com aproveitamento um Curso de Informática, a sua grande paixão. Morenaço, espadaúdo, simpático, ainda lhe restava tempo para praticar desporto. À noite, principalmente às sextas-feiras e sábados, como todos os jovens, gostava de dançar e conviver. Conhecia quase todos os bares, restaurantes e discotecas das Docas e do Parque «Expo». Não bebia em demasia, não tinha vícios e não se deitava muito tarde, salvo no caso de alguma data muito especial.
Cristina também adorava dançar, mas só saía após prometer aos pais que não voltava tarde e, claro, depois de arranjar alguma ou algumas colegas que lhe fizessem companhia.
Um dia, os dois encontram-se numa discoteca. Olharam-se e pareceu ter nascido logo ali uma química muito especial. Som ensurdecedor... A discoteca estava cheia, mas nem o rodopiar e voltear das luzes multicolores lhes fazia perder o norte. Os olhos olhavam-se mesmo quando não se viam. Foram-se aproximando ao sabor do «ondular» daquela pequena multidão. Finalmente, apenas um escasso metro os separava. Cumprimentou-a e ela correspondeu sorrindo. Não mais se largaram durante toda a noite.
Estava-se no verão e fazia muito calor no interior da discoteca. Nuno Miguel convidou Cristina para dar um passeio à beira-rio. Ela pela primeira vez não conseguiu dizer não. Foi despedir-se das amigas e saíram. Passearam, conversaram e contaram um pouco das suas vidas.
Sem saberem, eram quase vizinhos, pois moravam ambos nos Olivais. O pai de Cristina trabalhava numa grande empresa de transportes e a mãe era educadora de infância num colégio do bairro. O padrasto de Nuno Miguel era advogado e a mãe professora. Quando nasceu, a mãe ainda estava solteira e o pai desaparecera na voragem da descolonização, tinha ele apenas um mês de idade.
Ficaram a saber tantas coisas um do outro, que parecia conhecerem-se há muito tempo. Os ponteiros dos relógios, entretanto, tinham avançado sem que eles dessem por isso e Cristina ficou aflita quando reparou. Lembrou-se do que prometera aos pais e olhou ansiosa procurando um táxi, mas Nuno Miguel ofereceu-se para a levar a casa. Cristina aceitou entrar no «Clio» branco, que ele adquirira com os primeiros ordenados e que conseguia manter sempre impecavelmente limpo. Deixou-a em frente de casa e despediram-se com um beijo na face, com os lábios de um a desejarem os lábios do outro. « - Se quiseres, eu amanhã venho cá falar com os teus pais e pedir-lhes desculpa. Quero-te mesmo! Olha que isto é mesmo sério . Será uma boa ocasião para os conhecer!». « Não é preciso e ... só nos conhecemos hoje. Telefona-me se puderes. Também gostei muito de ti! »

Cristina e Nuno Miguel passaram a ver-se praticamente todos os dias. Umas vezes, ia ele buscá-la à porta da faculdade, outras ia ela ter com ele à loja de computadores.
Não podiam já passar um sem o outro. Praticamente, nunca tinham namorado e o seu encontro tinha sido na realidade um amor à primeira vista, um « coup de foudre » como dizem os franceses.
Passados meses, ele quis conhecer os pais de Cristina, convidando-os para jantar. A simpatia foi mútua e o jovem casal não fez segredo de que sonhavam com o casamento, mas não para já, pois primeiro estavam os estudos e a estabilização nos empregos.
Noutro dia, Nuno quis mostrar a sua namorada à mãe e ao padrasto. A mãe fez questão de se aprimorar na confecção de um jantar especial para a sua futura nora: um cozido à portuguesa, bem cheiroso e fumegante, como só ela sabia fazer, fez as delícias dos quatro. Conversaram muito e notava-se, pelo ambiente, que Cristina era bem aceite. Parecia mesmo que já fazia parte da família.
Cristina acabou o seu Curso com uma boa média e, logo a seguir às férias, quando já se aprestava para aceitar qualquer emprego, ofereceram-lhe o lugar de Consultora numa das principais Editoras do País. Nem precisou de pensar muito... O ordenado era bom e a sua actividade estava adequada ao curso que tinha tirado.
A Editora ficava na linha de Sintra e, no regresso do trabalho, continuaram a encontrar-se diariamente. Nuno Miguel, quando saía primeiro, esperava por ela num café no Campo Grande para a acompanhar a casa. Era vê-los, abraçados um ao outro, parando aqui e ali, para uma carícia ou um beijo mais demorado.
Nuno Miguel estava quase a acabar o seu curso de informática e tinha emprego já prometido numa multinacional, cujo director era amigo do dono da loja onde trabalhava. Até nisso ele tivera sorte: o patrão gostava muito dele porque, dizia: « Nuno tinha muito jeito para a informática e era muito dedicado ao trabalho ». Por vezes, absorvido na resolução de qualquer problema, até se esquecia das horas de almoço ou da saída!
No verão, iam quase todos os domingos à praia: Caparica, Sesimbra, Arrábida, Praia das Maçãs... Cada vez que a via em fato de banho, invariavelmente, dizia-lhe: « És linda, és uma deusa, és a minha princesa!!! ». E os olhos de ambos riam, riam como só sabem rir os olhos dos enamorados. Davam as mãos e corriam para o mar...
A discotecas iam mais raramente mas, de vez em quando, principalmente às sextas-feiras, iam descomprimir todo o stress acumulado ao longo da semana.
Nuno foi o melhor aluno do seu Curso. Conversou com o patrão e ficou combinado que ficaria na loja até que o novo empregado estivesse preparado para o substituir. Para o patrão não ter de pagar dois ordenados, ele não se importaria de trabalhar o tempo necessário, só recebendo uma ajuda simbólica para as despesas. O patrão não aceitou e continuou a pagar-lhe normalmente. Dispensava-o mesmo algumas horas por dia para os primeiros contactos com a empresa onde iria trabalhar.
Passadas poucas semanas, Nuno Miguel deixou a loja e passou definitivamente para a multinacional. Foi com pena que deixou a loja, os colegas e o engenheiro Ribeiro, seu patrão.
O director deu-lhe a chefia da secção que se ocupava das caixas de Multibanco, uma das principais secções da Empresa. Também se situava nos arredores. Nuno Miguel e Cristina habituaram-se rapidamente a novas rotinas. Ele usava agora diariamente o seu Clio e, depois de sair, passava na Editora e vinham ambos para Lisboa.
Aproveitavam todos os momentos para namorar e começaram a fazer projectos para o futuro, agora já com bases mais sólidas.

Nos fins-de-semana, e aproveitando para passear, começaram a visitar casas à venda. Os pais tinham-lhes prometido uma pequena ajuda para essa aquisição e o resto seria pago com um empréstimo bancário. Novos como eram, não teriam decerto problemas. Olhavam com interesse todas as lojas e exposições de móveis. Começaram a idealizar como seria o seu ninho.
Um dia deram-se a olhar embevecidos para a vitrina de uma loja de vestuário de bebé. Olharam um para o outro, com um olhar que valia mil palavras, e soltaram uma sonora gargalhada, abraçando-se.
Faziam tudo com calma, descontraídos, com tempo, felizes... Iam pensando em tudo : vestido de casamento, local de casamento, copo de água... Quando chegasse a ocasião de agir ( talvez no princípio do ano seguinte ), tudo já estaria pensado e discutido ao pormenor.
Aprenderam a fazer amor um com o outro. Descobriram palmo a palmo os seus corpos. Cada milímetro estava cartografado nas suas mentes, nas suas mãos e nos seus lábios. Cada um conhecia tão bem o outro como a si próprio.
Um dia aconteceu o evitável. Cristina desconfiou que estava grávida, contou a Nuno Miguel e foram fazer o teste a uma farmácia. Resultado positivo. Iam ser pais! Nem por um momento pensaram noutra alternativa. Era qualquer coisa de inesperado mas bom. Guardaram a novidade só para si e resolveram acelerar tudo o que se relacionava com o casamento.
Havia que tratar rapidamente de toda a documentação necessária. O bebé quando nascesse já teria os pais casados.
Quando pela primeira vez juntaram os seus bilhetes de identidade, uma coisa lhes chamou a atenção. Que tinham o mesmo apelido (Silva) já sabiam, mas a «coincidência» afinal era exagerada : tanto o pai de Cristina como o de Nuno Miguel chamavam-se Pedro Manuel Marques da Silva, tinham nascido na mesma data e ambos em Benguela (Angola). Aturdidos e confusos, olharam um para o outro e sabe-se lá o que lhes passou pela cabeça. Mas pode facilmente adivinhar-se...
Não disseram nada em casa e resolveram, logo no dia seguinte, ir à Conservatória do Registo Civil para mais amplas averiguações. Concluíram, para sua infelicidade, que «os pais» dos dois era uma e a mesma pessoa. Cristina e Nuno eram irmãos! É difícil descrever o que sentiram. O desabar de sonhos. O ruir das suas vidas. O casamento que já não se faria. O bebé...
« - Tenhamos calma e tentemos reflectir friamente . Vamos pensar em todas as consequências do que nos está a acontecer » - disse Nuno. « - Sim, é melhor, mas sinto-me de tal modo fragilizada e surpreendida que tenho de ir dormir um pouco, mesmo que tenha de tomar algum comprimido. A cabeça estala-me e neste momento não consigo sequer pensar ».
Nuno Miguel levou Cristina a casa. Despediram-se como de costume, ou talvez não... Talvez mais sofregamente. Apressados e ao mesmo tempo com vontade que a vida parasse naquele instante. Combinaram trocar ideias no dia seguinte e, para já, não contariam nada a ninguém.
Cada um por seu lado, sentiu-se desorientado. Uma coisa era certa : a vida, que tinham idealizado para ambos, não seria mais possível.

No dia seguinte era sexta-feira. Nuno Miguel telefonou à noite e combinou com Cristina irem almoçar juntos. Talvez fosse mesmo melhor avisar, nos seus empregos, que não iriam trabalhar de tarde, para terem mais tempo livre.
Nuno foi buscá-la à Editora e almoçaram no Guincho, junto ao mar. Quem porventura os observasse, veria que pouco falavam, mas que não se deixavam de olhar nos olhos e de se agarrarem as mãos. Aqueles olhares e aquelas carícias diziam mil palavras, eram um misto de amor e desespero...
Acabada a refeição foram passear junto à água. Abraçados, o braço dele por cima do ombro dela, o braço dela abarcando a cintura de Nuno, paravam de vez em quando para se beijarem e acariciarem. Voltaram para o carro. Tinham almoçado bastante tarde e o passeio tinha-lhes feito perder a noção do tempo.
Rumaram aos Olivais, passaram em frente de suas casas, olharam com ar triste, sem parar, e dirigiram-se para o aeroporto. Tomaram um café e relembraram o sonho que tinham tido, antes dela engravidar... Se o dinheiro chegasse, quando casassem, a lua-de-mel seria nas Ilhas Maldivas.
Havia bastante movimento no aeroporto, como em todos sextas-feiras ao fim do dia. Dirigiram-se ao estacionamento, entraram no carro e, quase sem palavras, dirigiram-se para a zona das Docas. Tudo parecia meticulosamente programado. Sentaram-se numa das muitas esplanadas, pediram dois hamburgers e duas cervejas. Agora falavam mais, denotavam um ar febril e excitado. Não se deixavam de olhar, porém, olhos nos olhos, mas cada vez com ar mais triste. Consultaram os relógios... Já passava das dez da noite. Levantaram-se, procuraram o carro e foram para a discoteca onde se tinham conhecido. Ainda havia pouca gente, mas a música já se fazia ouvir. Agarraram-se, muito apertadinhos, os dois corpos num só. Praticamente sem sair do mesmo sítio, beijavam-se e abraçavam-se com a ternura dos apaixonados. Pouco tempo lá estiveram. Saíram e dirigiram-se para a Ponte 25 de Abril. Rolavam lentamente, de janelas abertas, para sentirem o ar fresco nas caras.
Um pouco antes do meio da ponte, o carro parou com os quatro piscas-piscas a funcionar. Saíram e num ápice saltaram para a estrutura metálica e lançaram-se no espaço.
Disse, quem viu, que foram de mãos dadas até caírem na água. Parecia quase uma coreografia de pára-quedismo em velocidade acelerada. Os corpos desapareceram em segundos e só foram encontrados no dia seguinte, muito pertinho um do outro...
Um funcionário da ponte que foi deslocar o carro, para não atrapalhar o trânsito, reparou que as carteiras e os documentos estavam no banco de trás. A chave na ignição. No pára-brisas, desenhados a batom vermelho, dois corações quase sobrepostos e as trágicas palavras: « Só a morte nos vai separar!!! ».
O nevoeiro entretanto, lentamente, começou a cobrir o Tejo.
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