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Erotico-->14. MANHÃ ATAREFADA -- 19/01/2003 - 09:08 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Três filhos eram o que Odete havia permitido que a natureza lhe desse. Aí mandou amarrar as trompas. Não contava com que o marido aparecesse com mais um. Mas o menino precisava de cuidados especiais e ela foi persuadida pelo sofrimento alheio, como teria sido pela dor dos próprios filhos. De resto, levantava as mãos aos céus e agradecia, em fervorosas preces, o fato de nunca nenhuma tragédia ter abalado o seu lar. Por ocasião da internação de Antunes, baleado, prometeu ao santo protetor que poderia até adotar alguma criança que lhe fosse entregue de inopino, se se salvasse. Não contou ao esposo o segredo do coração, que só interessava ao benfeitor, e, por isso, teve de ceder, muito surpresa, às insistências do marido. Seria muito o trabalho adicional? Sempre havia a esperança de se juntarem de novo pais e filhos, momento em que o garoto voltaria para o seio da família. Sendo assim, ao acordar, estava decidida a exercer uns tempos mais essa responsabilidade. Ainda mais que parecia ser o fedelho dessas pessoas atrasadas e bobinhas que acatam, com muita ternura, as palavras dos mais velhos.

Durante a noite, fora três vezes averiguar se o pequeno não estava com febre e se dormia tranqüilamente. Na última vez, o menino tomou-lhe a mão e puxou-a para os lábios, depositando nela tímido beijo. No lusco-fusco, pareceu-lhe brilharem lágrimas naqueles olhinhos.; silenciosas lágrimas de agradecimento e apelo.

Logo cedo, antes mesmo de Antunes se levantar, Odete estava revirando as velhas roupas das crianças, roupas que conservava para doar aos sobrinhos que iam crescendo, sonegando ao marido, que desejava entregar todas as sobras ao Centro Espírita. Encontrou calças e camisas em bom estado. Separou as que poderiam servir e reservou gaveta da cômoda do quarto dos meninos para guardá-las.

Às seis, acordou o marido e determinou que vestisse o pequeno, porque ela iria levá-lo ao Posto de Saúde.

— Deus te abençoe, querida! Ele saberá reconhecer o valor de tua atitude, muito mais que eu. Você vai receber o galardão...

— Deixe disso e vamos logo. Se eu me demorar, põe o feijão que está de molho na panela de pressão. E vê se faz o arroz, sem empapar, como da última vez. De mistura, tem alface. Faz uma salada. Se não quiser ter muito trabalho, deixa que, quando eu chegar, frito uns bifes ou faço uma omelete. Não se esqueça de dar café com leite aos dois menores e chama o Naninho às sete.

— Você tem trocado pra condução?

— Eu não durmo com os teus olhos. Vê se toma cuidado e não fica fazendo esforços inúteis. Do jeito que você está fazendo, vai precisar renovar a licença médica.

— Vai com Deus, querida!

Assim que a patroa saiu, Antunes precisou enxugar uma lágrima teimosa, que cismou de se renovar no canto dos olhos. Pensava em que os bons espíritos lhe haviam atendido as preces para intercederem pelos miseráveis.

Na esquina, havia um orelhão. Depois de mandar as crianças para a escola e de o Naninho ter ido trabalhar, foi fazer uma ligação. Precisava convencer algum colega para levá-lo em busca do pai das crianças. Desejava muito, também, ir ao hospital para visitar Cléber. Foi isso que convenceu o amigo a vir buscá-lo. Iria levar a fotografia do assassino.

Pelas nove horas, estava perante o aleijado.

— Como tem passado, garoto?

— Como acha que posso passar, sem pernas?

— Pelo menos, está vivo.

— Grande vantagem.

— Pois eu levei dois tiros e agradeço muito a Deus...

— Dois tiros?

— Não te contaram?

— Não.

— Quando vocês estavam aprendendo o Evangelho, um moleque me acertou e matou meu colega. Ele está preso e eu acho que foi o mesmo que te maltratou. Se você visse a fotografia dele, reconheceria?

— Reconheceria.

Antunes sabia que a melhor técnica exigia que apresentasse vários retratos de diferentes pessoas. Na ocasião, achou que essa providência iria retardar os procedimentos oficiais. Antes, porém, de mostrar a fotografia, fez diversas perguntas, para caracterizar o malfeitor. Era moreno ou loiro? Alto ou baixo? Magro ou gordo? Tinha alguma cicatriz no rosto? Falava claro ou a voz era rouca?

A todas as questões, Cléber ia dando respostas adequadas. Atrapalhou-se quanto à cicatriz, mas afirmou que não viu nenhuma, que o rosto era limpo e a pele lisa. Só faltava um dente na frente, o que ele percebeu nitidamente quando o malvado riu perto do seu rosto.

Só isso bastaria, mas a foto foi reconhecida imediatamente.

— Foi esse filha da...

— Tudo bem. Ele está preso.

— Aposto que amanhã está na rua e, se souber que eu denunciei, vai entrar por essa porta e acabar comigo.

— Não vai ficar solto, não, porque matou um policial e a corporação não vai deixar isso barato. Até que a justiça se manifeste, muita água vai rolar por debaixo da ponte.

— Quer dizer que vocês vão dar um fim...

— Quer dizer que ele vai ficar mofando...

Despertou o policial para seu espírito de corporação. Estava falando como se estivesse imerso nas águas da impiedade e da violência. Lembrou-se dos primeiros tempos na milícia, quando a alma se lavava no sangue dos bandidos executados durante as perseguições. Pela natureza dos serviços que lhe atribuíam, não se deparara nunca com a necessidade de atirar para matar. O único entrevero sério alijara-o da luta no primeiro “round”. Fora salvo pelo gongo. Emendou:

— Até que a Justiça determine o destino definitivo do infrator, do delinqüente menor de idade, o pessoal vai mantê-lo fora de circulação. Mas vamos falar do que interessa. Você está a par do que aconteceu em tua casa?

— O que aconteceu?

— Não está sabendo que tua mãe foi embora e deixou as crianças com as vizinhas?

— Ninguém me disse nada.

— Ela não tem vindo visitar você?

— Faz muito tempo que não aparece.

— E teu pai.

— Veio duas vezes e nunca mais. Quem está com Gaspar? E as meninas, onde estão?

Perguntava por perguntar, talvez para saber que estavam em pior estado que o dele.

— Gaspar estava na cadeia, onde foi que eu encontrei ele. Agora está lá em casa. Ou melhor, foi com minha mulher ao médico, pra ser examinado, porque está com o corpo coberto de feridas. As meninas e tua mãe, ainda não achei. O teu pai está bebendo muito e me disseram que não vai trabalhar. Se eu conseguir condução, vou atrás dele.

— Vai perder tempo. Aquele cara...

— Não trate o teu pai desse jeito.

— Na próxima encarnação, eu quero que ele seja meu filho. Vai pagar tudo o que fez. Pode crer.

— Vejo que de alguma coisa valeu o que te disse. Mas a misericórdia de Deus...

Nesse momento, o amigo que lhe servia de motorista veio buscá-lo. Chamavam pelo rádio. Havia um roubo em andamento ali perto.

— Se quiser ir, eu te levo junto.

— Positivo. Preciso voltar pra casa. Se ficar aqui...

— Então, vamos logo.

Antunes ainda teve tempo de sussurrar ao ouvido do rapaz:

— Se teu pai não te quiser, eu te levo pra minha casa.

Se esperava que aquele rosto sofrido se abrisse em sorriso, frustrou-se, pois Cléber ficou estático, olhando fixamente para o teto. Havia uma mosca sentada sobre o globo da lâmpada que, àquela hora, estava apagada. O aleijado ficou olhando para ela, esperando talvez que voasse e caísse nalguma teia para ser devorada. E lá ficou, perdido no devaneio dramático do destino daquele ser insignificante.

Quando a viatura chegou ao local do crime, outros policiais haviam capturado os assaltantes. O carro de Antunes foi liberado. Antes de ir para casa, passou para ver o funcionário público faltoso. Naquele dia, havia saído cedo para trabalhar. Viagem frustrada, precisava providenciar o almoço, já que Odete não tinha voltado. Mas trabalhou satisfeito. Dentro da miserável situação em que os assistidos se encontravam, se tudo fizesse com amor, poderia levar um pouco de conforto e de esperança a seus corações. Enquanto ia de um lado a outro na cozinha, orava baixinho a prece de Cáritas, a oração de São Francisco, o pai-nosso e a ave-maria, lembrando-se, de vez em quando, de pedir a João, amigo e benfeitor espiritual, que lhe iluminasse a mente para cumprir a missão de que se via investido.

Quando Naninho chegou, só faltava arrumar a mesa. Até mexera uns ovos com margarina, receita que adornava com salsa crua picadinha. Começava, naquele tempo, a pensar seriamente em poupar a vida aos animais que cediam a carne para a alimentação humana, de modo que, se podia, evitava preparar e comer bifes e assados. Substituía, quando estava fazendo as compras, a carne pelo pescado, mas até os peixes começavam a criar a condição de filhos de Deus.

Lembrava-se da resposta que dera a certa observação de um amigo:

— Se eu tivesse nascido entre os antropófagos, faria a digestão, sem problemas de culpa na consciência.

Achava que se havia saído muito bem.

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