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Contos-->ESTA ALMA PORTUGUESA... -- 14/12/2002 - 18:52 (Gabriel de Sousa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
José Miranda, emigrante português em França há mais de trinta anos, olhava fixamente o ecrã da televisão. A cervejaria, tipicamente francesa, perto da casa onde vivia com a família em Joinville, estava repleta de portugueses. Mais do que era costume. Jogava-se o Portugal/Inglaterra, final do Campeonato Europeu de Futebol de 2004. Até os franceses, em menor número, torciam pela equipa das quinas. O jogo aproximava-se do fim do tempo regulamentar e o 3-3 mantinha-se, enervantemente, há largos minutos.
De repente, um dos jogadores lusos, com a bola nos pés, correu quase todo o comprimento do campo. O ponta de lança desmarcou-se, evitando bem o fora de jogo, e a bola veio cair-lhe à frente. A bola nem chegou a parar. O pé disparou-a como uma bala. O guarda-redes da equipa britânica bem se estirou num mergulho colossal, mas a bola anichou-se no fundo da baliza. Os jogadores abraçaram-se, o público agitou-se e, na cervejaria, todos saltaram de alegria, deixando escapar aquele grito há tanto tempo reprimido: « Viva Portugal! ». Nem queriam acreditar! O árbitro olhou para o cronómetro, mandou recomeçar o jogo e, logo a seguir, apitou para o final.
Isolado no seu canto, José sentiu o coração a bater desordenadamente. As lágrimas começaram a deslizar-lhe pela face, ao sabor das rugas que já a vincavam. O mesmo já lhe tinha acontecido quando, no início do jogo, se cantou a uma só voz o Hino Nacional. Ninguém poderia adivinhar o que lhe passava pela mente e o que sentia esta alma portuguesa...

Quanto ia longe aquela manhã, no princípio dos anos setenta, em que passara a «salto» para o lado de Espanha. Sem passaporte, sem contrato de trabalho, José fugia do «paraíso salazarista», do desemprego, dos ordenados de miséria. O «passador» cumprira o prometido. Atravessou o território espanhol, até à fronteira com a França que era o seu destino final. Um outro passador esperava-o, no local combinado junto da fronteira. Em França, só conhecia um amigo que estivera consigo na guerra da Guiné.
A guerra afectara-o psicologicamente. Fora horrível. Além de tudo o mais, sentia necessidade absoluta de mudança, antes que endoidecesse.
Tudo se passou como previsto, para sorte dele. Muitos emigrantes eram enganados, perdiam o dinheiro e acabavam por cair nas mãos da polícia, que os recambiava para Lisboa. Já em território francês, leu as indicações que Hugo lhe enviara. Devia dirigir-se a Paris, apanhar o metro com destino a Vincennes e, depois, um autocarro para Joinville-le-Pont. Logo que possível, devia telefonar-lhe para que ele o fosse buscar. Hoje, três décadas volvidas, com o desenvolvimento do metro regional, já não é necessário mudar de meio de transporte.
Apanhou o combóio até Paris e, logo que chegou, procurou uma entrada do metro. De tal modo estudara bem o mapa que Hugo lhe enviara, que não teve dificuldade em escolher o itinerário que o levaria até Vincennes. Na carruagem detectou vários portugueses e um, menos apressado, ofereceu-se logo para lhe indicar o local onde devia esperar pelo autocarro. Aproveitou para lhe perguntar como poderia telefonar para o amigo. Trabalhava numa oficina de automóveis, foi fácil falar com ele. Disse-lhe que estivesse descansado, pois ele estaria na paragem à chegada do autocarro.
Assim começava a sua nova vida. Estava disposto a tudo. Tinha apenas a quarta classe, mas muita força de vontade. Tivera pequenos e precários empregos e nenhuma especialização, mas tudo haveria de correr bem. Vontade de trabalhar não lhe faltaria.
À descida do autocarro viu logo o Hugo Santos. Deu-lhe um apertado abraço e dirigiram-se para uma «brasserie» (precisamente aquela onde se encontrava agora). O amigo deu-lhe conselhos sobre o que fazer a partir do dia seguinte, para tentar arranjar emprego e alojamento. Naquela primeira noite, não haveria problemas. Ficaria com ele num anexo da oficina onde trabalhava.

Arranjou facilmente trabalho numas obras. Os empregadores preferiam, aparentemente, os europeus aos africanos e árabes. Para habitar, arranjou uma barraca (num «bidonville» como eles diziam). Precisava de juntar dinheiro, ainda não sabia bem para quê, mas ele tinham esperança num futuro melhor. De outro modo, não se teria arriscado a deixar Portugal. Trabalhou em coisas muito diferentes e, às vezes, em várias ao mesmo tempo. Hugo bem o tentava convencer a vir fazer uns biscates na oficina, mas a mecânica era coisa que não o atraía. Mais tarde, porém, e mais uma vez, este seu amigo foi-lhe bastante útil, dando-lhe umas noções de mecânica para tirar a carta de condução profissional.
Lavou pratos, serviu à mesa em algumas esplanadas no verão, voltou às obras e até fez vindimas.
Uma coisa o entristecia. Os franceses gostavam dos portugueses («eram muito trabalhadores, honestos e servis...», mas não deixavam de os tratar sempre como cidadãos de segunda. Para eles, português (ou portuguesa) era sinónimo de pedreiro, porteira ou empregada doméstica. E Portugal era a Ditadura, era Eusébio, era o Fado ou era Fátima... Felizmente, entretanto, muita coisa mudou. Houve o 25 de Abril de 1974 e, curiosamente, passámos a ser olhados de outra maneira. Nós próprios passámos a ter orgulho em afirmar a nossa nacionalidade.
Passou a falar-se mais de Portugal e, na maioria das vezes, de uma forma positiva.
Entrámos para a União Europeia e, mais tarde, passámos a circular livremente por quase toda a Europa. Tivemos campeões em várias modalidades desportivas o que constituía motivo de orgulho, principalmente para os portugueses que viviam no estrangeiro. José Saramago ganhou o Prémio Nobel, houve a Exposição Universal de 1998 em Lisboa, o País modificou-se...
Os emigrantes, que antes amealhavam as suas economias, tendo sempre em pensamento o regresso a Portugal, mudaram de mentalidade e passaram a integrar-se no País de acolhimento. Isto devia-se em parte aos filhos que, mercê dos estudos e dos empregos, preferiam ficar em França, embora nunca renegando a sua origem portuguesa.
O próprio José Miranda, farto da vida errante que levava, com o dinheiro que juntara, tirou a carta de condução e adquiriu um taxi. Casou, passou a viver num apartamento normal e teve filhos – um rapaz e uma rapariga (Carlos e Marta). Agora, voltava a Portugal quase todos os anos, para gozar um pouco de praia. Família em Portugal praticamente não tinha. Vinha mesmo por atracção pela terra natal e para que os filhos mantivessem um elo com a terra dos antepassados.
Passou a ser frequente ver apelidos portugueses em todos os ramos da sociedade francesa. Empresários, directores de empresa, técnicos de diversas áreas. Mesmo um futebolista (Pires) chegou a internacional francês. A maioria desta nova geração tinha já nacionalidade francesa e outros optavam pela dupla nacionalidade.
José Miranda e a sua mulher Margarida tinham acabado de se reformar, justo descanso após uma vida inteira de trabalho. Margarida tinha sido porteira no prédio em que adquiriram o apartamento. A honestidade da família, a simpatia que tinham granjeado, foram outras tantas coisas que facilitaram a aquisição junto da proprietária, Madame Duchaîne, uma simpática anciã de 80 anos de idade.

As lágrimas de José Miranda eram um misto de alegria, de orgulho e de recordações. Mais uma vez ele sentia a alegria de ter uma alma portuguesa, novamente ele se sentia orgulhoso por ter nascido num país tão pequeno no tamanho mas tão grande nos seus feitos.
Sempre fizemos coisas impensáveis e superiores às nossas forças aparentes. Foi assim sempre ao longo da nossa História. Obviamente que não podemos comparar grandes acontecimentos com estas «pequenas coisas» do Desporto. A cada evento a sua dimensão. Mas a alma dum povo faz-se de pequenas e de grandes coisas, de bons e de maus momentos, da capacidade de reagir e de ultrapassar obstáculos. Construímos um Império, «demos novos mundos ao Mundo», desfizemo-nos do Império, sobrevivemos absorvendo os respectivos colonos. Quase em cada canto do mundo há um marco a assinalar a nossa passagem. Temos grandes nomes nas letras, nas artes e nas ciências. Bons inventores. Bons atletas. Os nossos emigrantes passaram a ser vistos de outra forma, graças às suas qualidades e à sua integração nos países de acolhimento.
A silhueta de Hugo, com os seus cabelos grisalhos, recortou-se na entrada da cervejaria. José viu-o imediatamente e acordou do seu sonho (real). Enxugou as lágrimas com as costas da mão, levantou-se e dirigiu-se ao seu melhor amigo. Abraçaram-se longamente. Nesse momento, na televisão, via-se o Presidente da República Portuguesa a entregar a Taça do Campeonato Europeu ao capitão da equipa portuguesa. Não se ouvia sequer o que o locutor dizia. A algazarra era imensa, tanto no estádio da Luz como naquele recanto do território francês. Num ímpeto, e a uma só voz , como se tivesse sido combinado, todos se puseram a cantar «A Portuguesa». Agora já se viam lágrimas em todos os olhos. Alguns choravam convulsivamente.
Depois, saíram porta fora, com as bandeiras verde rubras bem levantadas ao vento... Correram as ruas em grupos, acenando alegremente para todos por quem passavam que, simpaticamente, lhes correspondiam com o «V» da vitória.
José Miranda, o seu amigo Hugo e, de um modo geral, todos os portugueses, tanto em Portugal, como em França e nos quatro cantos do Mundo, andaram nas ruas até altas horas da noite. Todos chegaram a casa cansados, roucos e eufóricos, mas felizes. No dia seguinte era dia de trabalho , mas eles saberiam transformá-lo num dia de festa!
O nome de Portugal ocuparia todas as primeiras páginas dos jornais. Mesmo os filhos dos emigrantes, muitos deles já naturalizados franceses, não esconderiam o orgulho que sentiam pelas suas origens e afirmariam bem alto que continuavam a ter, dentro de si, uma alma portuguesa.


NB: 3º Prémio nos XVI Jogos Florais da AURPICAS (Associação Unitária de Reformados, Pensionistas e Idosos do Concelho de Alcácer do Sal)
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