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Ensaios-->Memorial do Comunismo: Os crimes políticos na RDA -- 23/07/2007 - 15:16 (Félix Maier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Os crimes políticos na RDA (Parte 1)

por Carlos I. S. Azambuja (*) em 12 de julho de 2007

Resumo: O programa antifascista dos comunistas não passou de um simples programa seletivo para fragmentar a história. Um instrumento de conservação de poder. Foi assim que as perseguições aos nazistas foram acompanhadas pela integração de outros nazistas.

© 2007 MidiaSemMascara.org


A província alemã oriental do comunismo no mundo carregava um nome maravilhoso: República Democrática Alemã. Esse nome associa dois termos que os alemães só conseguiram fazer coexistir no decorrer do Século XX, e antes da reunificação de 1990, durante o único e breve episódio da República de Weimar.


O status de nação e de democracia na RDA foi sempre uma caricatura: sem nação e sem democracia. Seu nascimento, sua sobrevivência e, enfim, sua derrocada deveram-se ao poderio do Estado soviético. O estabelecimento e a defesa do poder comunista na Alemanha Oriental custaram a vida de milhares de seres humanos. Mas, para determinar as responsabilidades é necessário falar das vítimas, das que se tornaram culpadas, das vítimas inocentes, das vítimas do inútil e do absurdo, daquelas que se tornaram vítimas porque não quiseram se transformar em culpadas. Devemos falar de todos eles. Todos devem ser contabilizados: os mortos, os presos, os refugiados e as vítimas de maus-tratos psíquicos e físicos.


Desde o princípio, os fundadores da ideologia comunista proclamaram que estavam se despedindo da História. Sob o duplo peso das necessidades e de suas escolhas, eles, então, empreenderam, de início, extirpar a Europa daquilo no qual ela mergulhava suas raízes: a religião cristã. Esboçar um mundo novo era a missão de todos eles. Quando os comunistas tomaram o poder e quando se tornou evidente aos olhos de todos que eles haviam perdido sua inocência, tentaram fugir de sua própria história. A ditadura criminosa de Stalin deu origem ao Stalinismo. Assim, dava-se um nome a um passado que se queria varrer. O carrasco da Ucrânia, Nikita Kruschev, ele próprio um stalinista da pior espécie, ousou, em 1956 e depois em 1961, cometer as primeiras desestalinizações.


A partir de 1944, sob a direção dos soviéticos de Moscou, os comunistas haviam previsto instalar uma ditadura comunista em toda a Alemanha. Pretendiam adotar o sistema político soviético e impedir que a Alemanha se voltasse para o Ocidente. O elemento mais importante dessa estratégia consistia numa política de “bloco”: todos os outros partidos democráticos deveriam se unir a esse “bloco”. Em 1945, com o fim da guerra, Stalin enviou o “grupo” Ulbricht para a zona de ocupação soviética. Os comunistas que haviam sobrevivido à expressão nacional-socialista e aos expurgos stalinistas, subordinados à administração militar soviética, fizeram da zona de ocupação e em seguida da jovem RDA, uma filial do comunismo soviético. Contrariamente ao que imaginou Moscou, eles não conseguiram colocar os pés na Zona Ocidental.


Num primeiro momento, os soviéticos conservaram o monopólio do poder e só progressivamente o devolveram às autoridades comunistas alemães. Até o fim, porém, sempre houve “conselheiros” soviéticos em todos os setores da RDA. Esse Estado passou a ser “um filho da União Soviética”, e Egon Krenz, que foi a Moscou em novembro de 1989 para tentar conservar o apoio da potência protetora, enfatizou a Gorbachev que “reconhecer a paternidade de seus filhos” era o mínimo a ser feito. Contrariamente aos demais Estados do Leste-Europeu, o PSUA (Partido Socialista Unificado da Alemanha, nome pelo qual ficou conhecido o Partido Comunista) sempre esteve apto a usar a força em matéria de política externa. Em 1956, ele se perguntou se não era preciso mandar voluntários à Hungria para salvar o socialismo. Em 1968, Ulbricht pôs suas tropas em alerta a fim de entrar na Checoslováquia. Em 1980-1981, Honecker estava entre os belicistas do Leste-Europeu, deixando o exército pronto para uma intervenção na Polônia. Enquanto em 1989 o mundo se transtornava pela repressão sangrenta ao movimento democrático na China, a mídia da RDA transmitia as tomadas de posição cínicas que saudavam a luta do PC Chinês contra a liberalização burguesa. Honecker, Egon Krenz e Modrow felicitavam os comunistas chineses.


Os dirigentes eram apenas alunos ultra zelosos dos soviéticos e sabiam também que sua única possibilidade de sobrevivência residia na existência de um bloco oriental estreitamente unido nos planos político e militar. O poder comunista na zona de ocupação soviética depois na RDA, tinha como particularidades ser submetido ao estatuto das quatro potências e, além disso, de se encontrar em posição extremamente exposta, uma vez que era, no Oeste, o posto avançado do comunismo, regime sobre o qual a opinião mundial dispunha apenas de limitadas informações. Portanto, ele tinha necessidade de uma legitimação particular. Por essa razão, os comunistas não se contentavam em assegurar o poder utilizando a repressão. Procuraram também uma legitimação adaptada às condições da Alemanha.


Foi o antifascismo que, entretanto, serviu de principal legitimação. Ele representou, efetivamente, para numerosos intelectuais em busca de resposta aos crimes dos nacional-socialistas, um elo moral com os comunistas. O mito do antifascismo pôs um véu sobre, por um lado, a tensão intelectual entre o sentimento de ter sido responsável, cúmplice ou impotente e, por outro lado, o desejo de ser perdoado. E fez sentir seus efeito na RDA até 1989 e, a despeito do grande número de escritos desmistificantes, continua, hoje, a operar no mundo intelectual.


O programa antifascista dos comunistas não passou de um simples programa seletivo para fragmentar a história. Um instrumento de conservação de poder. Foi assim que as perseguições aos nazistas foram acompanhadas pela integração de outros nazistas. Apenas as opiniões favoráveis ao comunismo e, ainda melhor, a fidelidade incondicional aos interesses do partido e à sua linha, tal como era definida num dado momento, eram reconhecidas como antifascismo.


Mesmo após a guerra, os comunistas não aceitaram que fosse criada a menor associação antinazista independente. Quando Ulbricht voltou a Berlim, em 1945, ele procedeu, de imediato, à dissolução dos comitês Antifa (*) criados anteriormente que haviam começado a reorganizar a vida social. As associações locais e regionais da União de Vítimas do Regime Nazista foram dissolvidas em 1953 e substituídas por um Comitê de Resistentes Antifascistas, sob a direção do PSUA. O partido se livrava, assim, ao mesmo tempo, dos membros da União indesejáveis porque eram judeus e dos que criticavam a integração dos ex-nazistas.


A desestalinização tornou-se, então, o novo suporte da legitimidade do socialismo. A partir daquele momento, a Terra Prometida situava-se para além de Stalin. Os comunistas, rompendo com suas próprias tradições, souberam mais uma vez se subtrair de suas responsabilidades. Por meio desse remendo, conseguiram fazer esquecer que o stalinismo havia sido o socialismo-comunismo na época de Stalin e nas esferas em que exercia sua influência.


Ao privar todo o sistema de seu ponto de referência ideológica e política, a desmistificação de Stalin liberava forças centrífugas nos partidos no poder e nas sociedades que eles controlavam. Graves perturbações eclodiram na Polônia e na Hungria, e os tanques entraram em ação. A desestalinização nada tinha de libertação, como se viu. Contentava-se em perenizar o princípio da legitimidade do poder comunista ao contestar a responsabilidade dos comunistas nos crimes do passado. Por esse motivo, a desestalinização foi apenas o perpetuamento do stalinismo mediante outros meios ideológicos.


Isso foi particularmente verdadeiro na RDA. O Politburo do PSUA (Partido Socialista Unificado da Alemanha), o partido único, se auto-absolveu de todo o “culto da personalidade” e prosseguiu o processo de concentração do poder nas mãos de um só homem: Walter Ulbricht. Quem quer que se opusesse a essa centralização era perseguido. No outono de 1956, a título preventivo, Ulbricht enviou grupos de combate contra os estudantes de Berlim que começavam a se agitar e reprimiu toda a tentativa de abrandamento ideológico fomentada pelos “revisionistas”. A desestalinização continuou até 1980, como um projeto de esquecimento organizado, inclusive quando Gorbachev tomou outro caminho na URSS.


A “desulbrichtização” só ocorreu em 1971. E foi o seu mais fiel vassalo, Erich Honecker, que o derrubou. Ulbricht não apenas foi derrubado, mas esquecido de imediato. Já a “deshoneckerização” ocorreu durante a crise de 1989. Mais uma vez, foram os fiéis entre os mais fiéis, Erich Mielke e Egon Krenz, que prepararam a “mudança” ao derrubar Honecker.


Ele – Honecker – e Mielke foram acusados de alta traição, mas a Justiça Federal alemã, com o país reunificado, não podia permitir-se uma acusação tão absurda. Alta traição a quem, se eles eram cidadãos de outro país?


Walter Ulbricht e Erich Honecker se concebiam como as últimas instâncias da História mundial. Eis porque eles podiam, sentados em seus gabinetes, tanto pronunciar condenações à morte quanto refletir acerca da eficácia das máquinas mortíferas dispostas nas fronteiras. Essa auto-superestima dos líderes comunistas tornou-se um problema para Gorbachev quando ele tentou salvar seu império ao custo de prudente descentralização. Em novembro de 1989, ele dizia a Egon Krenz, em Moscou, que “o camarada Erich Honecker tomava-se manifestadamente como o número 1 do socialismo, talvez mesmo como o número 1 mundial, uma pretensão comunista à onipotência”. Honecker havia derrubado seu antecessor, Ulbricht, pelas mesmas razões evocadas por Gorbachev. Honecker se queixara a Brejnev, em 1971, de que Ulbricht se considerava como “não renovável” e que impunha à RDA uma “apreciação exageradamente positiva de sua própria pessoa”. Ulbricht teria de partir...


Nos níveis subalternos, as pessoas a serviço de seus senhores também estavam prontas a assassinar e a espancar até à morte, recorrendo à tortura física e psíquica ou a qualquer que fosse a violação dos direitos e das dignidades humanas. Entre eles, havia figuras particularmente aterradoras, como Hilde Benjamim, Ministra da Justiça por muito tempo, “Hilde, a Vermelha” Rose Hilde) na linguagem popular, ou então entre os vários carcereiros mais temidos pelos prisioneiros, aquele a quem se apelidava de “Terror Vermelho”. Ao lado deles havia numerosos oficiais da Stasi, guardas de fronteiras, subalternos nos interrogatórios, procuradores, professores, policiais e alcagüetes. Eles se tornavam assassinos e torturadores porque identificavam seus interesses aos do comunismo e renunciavam, nesse mesmo movimento, aos critérios de humanidade.


O domínio comunista constituiu um todo, de 1917 a 1991 na URSS e de 1945 a 1989 na Alemanha Oriental. As rupturas, as mudanças de linha, as novas estratégias, as alternâncias entre degelo e glaciação, a condenação dos predecessores, a reabilitação dos camaradas que haviam sido presos e assassinados, as modificações introduzidas nas linhas políticas no decorrer dos “combates do nosso tempo” sucessivos e sempre diferentes, como os chamava os poetas de Estado, as reviravoltas ideológicas e políticas, tudo isso não exprime qualquer descontinuidade mas, ao contrário, uma continuidade posta a serviço da História.


Eles – os comunistas – quiseram organizar a ruptura com a civilização européia, mas não conseguiram ultrapassar as fronteiras e abordar as regiões inexploradas. Permaneceram como uma seita política em perseguição a um juízo final, sempre anunciado e sempre postergado; a seita se lançava, então, em novas previsões, explicando que o erro era apenas um fenômeno transitório, logo se entregando a novas anunciações. Nesse papel, não conheceram limites. Eram uma dissidência do Iluminismo (Aufklärung) e da razão européia, encarregados de uma missão religiosa. Mesmo os nacional-socialistas não fugiram a esse ponto da história. Ao pretenderem germanizar e “desjudaizar” a História, tiveram, porém, de tomar emprestado da tradição judaico-cristã toda uma série de mitos, como o Reich Milenar, por exemplo. Eram montagens ridículas, um bricabraque de cenários românticos e de cancioneiros em ruínas, de fantasias pueris de pequeno-burgueses, alçando sua ebriedade assassina e suas abominações ao nível das proezas de um Ocidente mítico. Tudo isso podia, de fato, mobilizar os medos irracionais e as aberrações imaginárias, mas não representava um perigo verdadeiro para os intelectuais da Alemanha e da Europa. A razão, assim como a moral, se opunha a tudo isso.


O mesmo não ocorria com o comunismo. Ele crescia num solo bem mais profundo. Sua força de sedução se enraizava nos aspectos negativos do mundo burguês, cuja denúncia já é, em si, legítima. Consegue, assim, tomar o poder em metade do mundo, alterando profundamente as sociedades. Em nome da luta anti-imperialista torna-se o verdadeiro imperialismo cultural da Europa. Sua fuga para fora da história européia, em nome do Bem desembocou na desonra da Europa e de sua civilização. Nenhum outro colonialismo europeu produziu destruições semelhantes e causou tantas mortes. Poder-se-ia, com indulgência, conceder que o comunismo mundial não se reduz ao terror que ele fez reinar nem às milhares de mortes pelas quais é responsável. Mas devemos, ainda assim, formular a questão: qual foi a sua contribuição cultural? Qual será sua contribuição duradoura para a história civilizacional da humanidade? Nada se vê, absolutamente nada, do que a humanidade possa se orgulhar.


Nos anos 80, o socialismo da RDA transformou-se numa encenação ocidental-oriental. Os políticos asseguravam não serem os atores da guerra fria, ao passo que os intelectuais descobriam, no socialismo, uma alternativa legítima. Quando, em 1989-1990, o comunismo desmoronou na Europa, uns e outros começaram a atravessar uma crise política.


Passaram pela bancada de testes tanto as idéias como as práticas do comunismo alemão. E, ainda assim, vários são os que, do lado ocidental, têm dificuldades em admitir que a RDA nunca teve legitimidade. Somente uma pequena minoria reconhece ter-se enganado ou se auto-iludido. A ordem é esquecer. A RDA, finalmente, não tinha deixado para trás montanhas de cadáveres mas apenas montanhas de dossiês.


Finalmente, deve ser assinalado que no decorrer de todo o Século XX, nenhum Estado havia ainda ousado se dedicar ao tráfico de seus cidadãos. A RDA instaurou uma prática de venda ao Ocidente. As oito primeiras vendas de presos ocorreram em 1963 graças à intermediação da Igreja. Entre esse ano e o de 1989, a venda de 31.775 detentos rendeu 3.399.337.134.64 marcos ocidentais. Esse dinheiro era fornecido pelo governo da RFA, que aceitou, por fins humanitários, manter um comércio de seres humanos que também suscitou objeções do lado ocidental. Da mesma forma, a RDA embolsou outros bilhões em troca de uma resposta favorável a cerca de 250.000 requisições de saída do território. Sabia-se, na RDA, que os comunistas recebiam “prêmios por cabeça”, cujo montante variava em função do grau de instrução das pessoas suscetíveis de serem “compradas”. Essa transformação do cidadão da RDA em produto de exportação se manifestou também em outras formas, como, por exemplo, quando em situação de penúria financeira aguda, a RDA produzia uma “afrouxada humanitária” suplementar a fim de colocar mais pessoas à venda em um total desprezo pela dignidade humana.


A idéia comunista era e permanece sendo mortal. Ela foi, desde o princípio, um programa de extermínio. Era uma escolha em favor do homúnculo comunista, contra o homem verdadeiro e imperfeito. É por essa razão que não houve humanização nem liberalização do stalinismo, do comunismo ou do socialismo. Nos anos 80, o número de mortos diminuiu, mas o domínio cresceu. A violência transformara-se numa forma de domínio mais moderno e, por conseguinte, não era mais necessário separar, maciçamente, a cabeça do corpo.


Não se pode relegar o comunismo ao museu da história social porque suas “grandes realizações” se tornaram, como as Pirâmides ou como a Muralha da China, atrações para turistas. Também não é possível encontrar refúgio nas relações inter-humanas de seus antigos temas. No caso alemão, o problema não é debater a ordem carcerária social, os negócios privados dos indivíduos presos ou as permissões de saída concedidas aos privilegiados. O problema posto é o da prisão em que se transformou a RDA. Era uma prisão relativamente modesta em comparação àquelas que os comunistas impingiram às pessoas no restante do mundo. Porém, no estreito espaço entre os rios Elba e Oder, em que se espremiam cerca de 19 milhões de pessoas em 1945, faltou quase nada daquilo com que, em outras parte do mundo, os comunistas fizeram a humanidade sofrer.




O texto acima é um resumo das páginas 443 a 511 do capítulo Os Crimes Políticos na RDA, escrito por Ehrhart Neubert, do livro Cortar o Mal pela Raiz! História e Memória do Comunismo na Europa, diversos autores sob a direção de Stéphane Courtois, editora Bertrand do Brasil, 2006.


(*) Abreviatura de Antifaschistische Aktion, rede de grupos de ação antifascista formado por diferentes tendências: comunistas, sindicalistas, anarquistas, libertários, etc. Não existe senso comum entre os vários grupos, que buscavam principalmente ação independente e autônoma de partidos políticos.


(*) Carlos I. S. Azambuja é historiador.



***


Os crimes políticos na RDA (Final)

por Carlos I. S. Azambuja (*) em 18 de julho de 2007

Resumo: Não se pode explicar a violência conspiradora e particularmente agressiva da Stasi como uma simples atividade dos serviços secretos. A violência suplementava a política.


Markus Wolf ex-chefe do Serviço de Inteligência da RDA, o HVA (Hauptverwaltung Aufklärung)

© 2007 MidiaSemMascara.org


Não se pode explicar a violência conspiradora e particularmente agressiva da Stasi como uma simples atividade dos serviços secretos. A violência suplementava a política. Suas principais atividades eram dirigidas, direta ou indiretamente, contra a população do país, contra os dissidentes, ou contra os fugitivos e seus cúmplices. O mais notável a esse respeito, era a absoluta desproporção dos meios utilizados. O espírito inventivo de que dava provas a Stasi, na escolha dos meios e dos métodos, era inesgotável. Tentava-se identificar os opositores graças a materiais radioativos; eram retiradas amostras do odor das pessoas, recorria-se, incessantemente, a todas as formas de pressão e até mesmo do seqüestro de familiares.


A espinha dorsal dessa conspiração era o “exército na sombra” da RDA, os “colaboradores oficiais” que, no decorrer da história do país, chegaram a ser de meio milhão. O recrutamento desses “colaboradores oficiais” já era em si um ato de violência. Grande parte deles, de fato, se deixou ir contra seus compatriotas por convicção. Outros sucumbiram à sedução material e um número considerável deles cedeu a todo o tipo de chantagens. Foram utilizadas, para isso, situações de infortúnios ou relações de dependência, como foi, por exemplo, o caso dos informantes presos ou os “colaboradores oficiais” que eram apenas crianças ou adolescentes. A quase totalidade deles sabia exatamente para quem ou contra quem estava trabalhando e, para apreciar corretamente as responsabilidades de cada um, não se deve perder de vista o fato de que inúmeros recusaram a convocação. A Stasi aceitou deliberadamente que fossem infringidas normas éticas fundamentais. Ela própria, conscientemente, organizou esses desvios. Assim, pais denunciavam filhos e pessoas casadas entregavam seus cônjuges.


A violência também foi empregada além das fronteiras da RDA. A Stasi mantinha contacto permanente com os terroristas da Fração do Exército Vermelho (RAF) e os ajudava (1). No lado ocidental, grupos de combate comunistas eram constituídos para todos os fins. A Stasi ampliava seu campo de alcance até a “região operacional”, como era denominada a RFA, perseguindo os ex-cidadãos da RDA, principalmente os opositores. Do mesmo modo como a oposição interior – inclusive a que não implicava mais do que pequenos desvios ideológicos – era definida como uma influência hostil exercida a partir do exterior pelo inimigo, o departamento de “espionagem” da Stasi, o HVA, dedicou boa parte de suas atividades ao combate aos “inimigos” internos. Os “colaboradores oficiais” eram, também nesse caso, os principais executantes das operações violentas do lado ocidental. Foram utilizados até mesmo criminosos comuns para efetuar assassinatos sob encomenda. Eles eram encarregados de eliminar, mediante atentados a bomba, o uso de veneno ou de armas de fogo, pessoas que se tornassem cúmplices de tentativas de fuga, soldados do exército popular que haviam desertado ou qualquer outra pessoa cuja hostilidade crítica se tornasse indesejável. Ainda que os documentos a esse respeito tenham sido destruídos, em grande parte dos casos já foi possível levar à Justiça alguns dos autores desses atos criminosos, embora poucos. Muito poucos. Com freqüência, os “colaboradores oficiais” representavam também um papel-chave nas operações de seqüestro na RFA. No total, estima-se que 500 pessoas tenham sido vítimas desses atos. Muitas delas morreram ou passaram longos anos nas prisões da RDA. Ninguém sabe exatamente quantos sucumbiram dessa maneira no país e no exterior, mas não será surpreendente que, por trás dos números das mortes inexplicáveis e, muitas vezes misteriosas, exista uma tendência a ver a mão da Stasi.


A violência “silenciosa” do “trabalho de sapa” figura entre os piores métodos e meios utilizados pela Stasi. A partir do fim dos anos 60 ocorreu, na RDA, um processo de retorno à legalidade que, de fato, só aparentemente garantia o direito. O que mantinha a prioridade era uma luta ilegal contra os adversários políticos e essa luta seguia as regras estritas da conspiração. A Diretiva Secreta nº 1/76 acerca da “preparação e da implementação de processos operacionais”, ilustra essa metodologia.


Essa Diretiva era definitivamente um “guia do usuário” que descreve os métodos aperfeiçoados para a destruição da personalidade. Foi aplicada milhares de vezes e, quase sempre, as pessoas encarregadas desse “trabalho de sapa” foram além do que preconizava a Diretiva, tamanha era a energia utilizada para cumprir suas tarefas. Era a “modernização da tortura”, que pode ser observada em todo o mundo e que, dentro de vários sistemas ditatoriais, possibilitou a passagem da violência física às formas psíquicas, objeto de elaboração científica. O método causa perda de interesse, depressão, angústia, abatimento, pânico, sentimento de inquietude e de isolamento. Para a Stasi, era preciso tirar proveito das falhas morais e de caráter e, quando elas não existiam, tornava-se necessário fazer crer que existiam, espalhando rumores.


A Stasi tinha acesso a todos os níveis do aparelho de Estado e, assim, estava apta a coordenar as ações dos “colaboradores oficiais”. Podia, ao mesmo tempo, intervir tanto junto a um benévolo confessor espiritual quanto a um professor conselheiro, a um colega amistoso, a um superior severo, a um vizinho precavido, a um advogado cheio de solicitude, ao melhor amigo, enfim, junto a todos os “colaboradores” que aplicavam, cada um por sua vez, o “plano de sapa”, imaginado e controlado pela Stasi. A utilização sistemática desses meios causou, com muita freqüência, danos bem mais graves do que teria proporcionado um processo judicial regular. Muitos ficaram marcados para toda a vida, passando a necessitar ajuda terapêutica.


Nas semanas de tensão que precederam a queda do Muro de Berlim, em novembro de 1989, o desenlace era incerto. No final, o Muro foi derrubado pelo povo e os comunistas perderam o poder num movimento pacífico. A exigência de ver a Stasi dissolvida foi uma das motivações centrais da revolução. O próprio movimento possibilitou o início do trabalho necessário para superar o socialismo. Antes de 1989, vários grupos de oposição já haviam iniciado esse processo relativamente ao stalinismo. Esse processo remontava ao trabalho dos comitês de cidadãos e das comissões de investigação, e os representantes dos movimentos cívicos reclamaram uma solução jurídica, a fim de que o trabalho de análise dos documentos pudesse ser feito de forma durável. Um dos principais resultados dessa influência coletiva foi a criação, pelo Bundestag (Parlamento da RFA), de uma autoridade, nomeando um “responsável federal pelos documentos dos Serviços de Segurança da ex-RDA”. Essa administração, sem precedentes até aquele momento, deu acesso aos dossiês que provam a intolerância praticada contra centenas de milhares de pessoas, e permitiu também a verificação das acusações, sendo que a reabilitação das vítimas e a reparação dos danos sofridos foi iniciada de acordo com os procedimentos legais, embora de forma lenta, encaminhando os processos judiciários referentes aos crimes políticos.


Participaram das discussões públicas vários “grupos de iniciativas sociais”, clubes, associações de vítimas, organizações que sucederam os movimentos cívicos, assim como os comitês de cidadãos ainda existentes. As ciências redescobriram a RDA, e milhares de livros descreveram a ascensão e a queda da ditadura. No que diz respeito à contenda dos historiadores, uma coisa é certa: os que não cessam de pedir que seja posto um ponto final fracassaram. Questões controversas escondem problemas lancinantes. Quem quisesse organizar uma nova fuga da História se chocaria, agora, com a riqueza do material que o comunismo deixou atrás de si. A maioria da geração de culpados ainda vive e se mantém ativa. Quando os filhos e netos dessas pessoas tomarem conhecimento desses registros infames, perguntarão como a atual geração pôde ter tanta dificuldade e ser tão lerda para reabilitar as vítimas e punir os culpados.


É atribuida a um norte-americano a observação: “A administração militar soviética e o Partido Socialista Unificado da Alemanha mudaram a tal ponto a face da Alemanha Oriental, que um retorno ao que era levará bastante tempo” (2).

O texto acima é um resumo das páginas 443 a 511 do capítulo Os Crimes Políticos na RDA, escrito por Ehrhart Neubert, do livro Cortar o Mal pela Raiz! História e Memória do Comunismo na Europa, diversos autores sob a direção de Stéphane Courtois, editora Bertrand do Brasil, 2006.



Notas:


(1) Nesse sentido, é altamente esclarecedor o livro O Homem sem Rosto - Autobiografia do maior Mestre de Espionagem do Comunismo, de Markus Wolf (falecido em 24 de novembro de 2006), que por mais de 30 anos foi o chefe do Serviço de Inteligência da RDA, o HVA (Hauptverwaltung Aufklärung - Administração Principal de Reconhecimento) (http://www.midiasemmascara.com.br/artigo.php?sid=1596)


(2) Norman M. Naimark, Die Russen in Deutschland



(*) Carlos I. S. Azambuja é historiador.



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