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Ensaios-->Canudos: Jerusalém de taipa ou vale de lágrimas -- 21/06/2007 - 16:23 (Félix Maier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Jerusalém de taipa ou vale de lágrimas:
algumas observações sobre o debate na literatura referente a Canudos

Edwin Reesink (*)

Esse ensaio se ocupa dos dois escritos de Robert Levine, historiador americano, sobre o assunto de Canudos: Mud Hut Jerusalem Canudos Revisited (1) e O sertão prometido (2). Observei que o primeiro não repercutiu nos escritos posteriores dos brasileiros, pelo menos os saídos até o final de 1994. Em parte, isto se explica pela defasagem com que estão, em geral, saindo as publicações sobre Canudos. Por exemplo, a tese do Padre Otten foi defendida em 1986 e somente foi publicada em 1990 (3). Não é de estranhar que não contenha referência ao trabalho de Levine. Mais curioso, entretanto, é que na coletânea de artigos co-editada pelo próprio Levine, o mesmo Otten tenha escrito um trabalho que resume a sua tese, continuando a não mencionar o trabalho de Levine (4). Provavelmente, supõe-se que, preocupado em expor o resultado da sua pesquisa, Otten tenha se limitado ao material que utilizou na sua pesquisa original.

Considerando Canudos como uma cidade santa, Levine intitulou seu primeiro artigo de Mud Hut Jerusalem Canudos Revisited, uma aliteração em inglês mas que não ‘pegou’ na literatura de língua portuguesa. Nem mesmo a defasagem entre a defesa de tese e a publicação explica por que não há nenhuma menção aos trabalhos de Levine nos livros da safra do fim do ano de 1995. Além da tradução do livro Vale of tears (5) de Levine — sob título O sertão prometido —, saíram os livros Canudos, o povo da terra (6), do historiador Marco Antonio Villa, A imitação dos sentidos (7), do crítico literário Leopoldo Bernucci e a tese do cientista político Jose Augusto C. Barreto Bastos, Incompreensível e bárbaro inimigo (8). Bernucci se ocupa dos manuscritos e escritos de Euclides da Cunha, muito mais do que do fenômeno Canudos. Único baiano, Barreto Bastos se detém especificamente nos discursos produzidos por observadores da época sobre Canudos, mas a tese data do fim dos anos 80, não havendo nenhuma referência bibliográfica posterior a 1987.

Os estudos mais englobantes sobre Canudos são de Levine, e, por parte dos brasileiros, o de Arruda (dissertação de mestrado em Sociologia) (9) e o já mencionado, de Villa (tese de doutoramento em História). Isso torna, na verdade, o livro de Arruda a maior contribuição recente dos últimos anos sobre o tema, mas a sua influência para o debate tem sido prejudicada, talvez por ter sido editado por meio de uma editora universitária do Nordeste. Arruda não teve acesso ao trabalho de Levine, mas cita o livro de Otten, não obstante o utiliza pouco. O livro de Villa, por ser uma tese de doutoramento, almeja uma profundidade maior em leituras de fontes diretas e indiretas da época e oferece um quadro bem amplo, chamando atenção ou reavaliando temas discutidos na literatura. Neste sentido, um dos objetivos declarados do autor, reabrir o debate, é bem servido com sua contribuição. Esta é a monografia de maior porte de um historiador brasileiro depois de muitos anos. Segundo o autor, na introdução, ele priorizou fontes da época e, também, constatando que o estudo do campo religioso ignorava a literatura especializada em religião e sofria de certa resistência, retrocedeu até os primórdios do cristianismo. O curioso, então, é que não só a dissertação de Arruda (contemporânea à tese) não está na sua bibliografia, mas também o trabalho de Otten (especificamente consistente no estudo da religião).

O debate entre os estudiosos de Canudos, pelo que estas rápidas observações parecem permitir concluir, tem-se ressentido da ausência de circulação e de informação, o que, é possível afirmar, prejudicou o debate e, conseqüentemente, o aprofundamento do tema. A publicação do livro de Levine em inglês provocou pelo menos duas resenhas, também em inglês. Numa, curta, o resenhista dá uma breve notícia do livro e o saúda, cautelosamente, como a primeira publicação mais inclusiva e extensiva disponível na língua inglesa sobre um fenômeno importante e pouco acessível para quem não fala português. Ressalva, no entanto, que nele ainda não encontrou uma resposta satisfatória para a pergunta da razão (ou razões) para tanta gente ter sido atraída para morar em Canudos ou se envolver de outra maneira com o Conselheiro e sua cidade (10). Pergunta muito pertinente, aliás, à qual a literatura tem tido certa dificuldade em responder, embora se tenha feito progresso na reavaliação de que espécie de pessoas e categorias sociais ter-se-ia entusiasmado com o Conselheiro e com Canudos.

A outra resenha apareceu na revista americana já mencionada e que foi co-editada pelo próprio Levine. É a única na revista e foi escrita por Steven Topik (11). Este, velho conhecido do autor, que lhe agradece por suas sugestões no seu artigo de 1988, não mede palavras em seus elogios. Após relembrar a importância e o tipo de atenção dada por não-historiadores ao tema e três abordagens anteriores com interpretações bastante antagônicas (por exemplo, a marxista e a messiânica), afirma que Levine teria entrado neste ‘campo minado’ como um dos poucos historiadores profissionais que emerge não só sem arranhões mas triunfante. Além de juntar os pedaços já conhecidos, teria pesquisado prodigiosamente nos arquivos existentes mas pouco explorados. 'Pesquisadores da Universidade Estadual da Bahia, do Centro de Estudos Euclides da Cunha, ajudaram-no a juntar as partes da história de Canudos' (12). Aqui a fórmula de agradecimento aos brasileiros parece implicar um papel de ajuda, principalmente auxiliar, mas, com um pouco de boa vontade, percebe-se o reconhecimento de uma certa partipação ativa e relevante. É curioso, porém, que Topik menciona esta ajuda e não se refere ao Núcleo do Sertão e a Calasans, a maior biblioteca e o maior especialista sobre Canudos, respectivamente. Pelo jeito, chamou-lhe menos atenção o agradecimento aos últimos.

De certo modo, isso já é constatado nos agradecimentos de Levine no artigo Mud Hut Jerusalem Canudos Revisited: ele agradece a sete colegas aparentemente americanos, e, por fim, a um colega brasileiro pelas sugestões, a mais dois brasileiros do Centro de Estudos Euclides da Cunha e a 'José Calasans pela sua ajuda durante minha estadia em Salvador' (13). Ele fala de ajuda, sem mencionar a biblioteca de Calazans. Será que estas não deram sugestões? Agradecimentos não são somente retóricas vazias mas também sinal significativo de filiações e tomadas de posição, ainda para estimular a carreira ou acumular prestígio. Será que há algo operando neste campo intelectual que põe alguma espécie de diferença entre americanos e brasileiros? Topik continua, após a indicação dos pesquisadores brasileiros, a enfatizar as qualidades profissionais de historiador do autor: utilização crítica e inteligente dos relatos, ponderando suas conclusões. Assim, impressionaram-no o uso de fontes primárias e os detalhes da vida cotidiana reunidos de amplo espectro de estudos históricos e o emprego de literatura comparativa de trabalhos de religião, antropologia e 'até psicologia histórica'.

De fato, há uma tentativa louvável no livro de Levine de incorporar pesquisas sobre categorias sociais contemporâneas ou historicamente comparáveis e suas características socioculturais. Certo também parece ser algo para que Topik chama atenção nos parágrafos posteriores da resenha: o fato de Levine tentar demonstrar o que havia de normal e comum no cotidiano, o conservadorismo do catolicismo do Conselheiro e sua postura em não procurar o caminho da rebelião. A afirmação de que Canudos prosperou durante três anos por causa de uma aliança com o chefe político Luis Viana (Vianna, este pequeno deslize Levine não cometeu) parece fato estabelecido, mas, pelo contrário, é muito mais uma hipótese, porque sem provas firmes, tendo em vista que uma aliança pressupõe um entendimento e uma intencionalidade. Para Topik, pelo contrário, não parece existir nenhuma ressalva, crítica ou ao menos um ponto a debater no livro resenhado. Ele inicia o último parágrafo concluindo que Levine escreveu 'um retrato brilhante e sensível não somente de Canudos, mas, também, em termos mais gerais, do sertão'. Considerando normais os habitantes de Canudos como sertanejos e enfatizando a compreensão nuançada das visões tragicamente conflitantes dos militares e dos jagunços, Levine, aparentemente, teria dado conta dos participantes e do final sangrento.

Topik termina constatando que Canudos foi destroçado mas que os militares 'jacobinos' também perderam o poder e que saíram envergonhados e enfraquecidos. O último ponto ainda mereceria uma discussão, mas ele utiliza a desgraça dos atores principais para contrastá-la, corretamente, com outra categoria: 'Somente os donos de terra permaneceram poderosos'. Para arrematar a sua última frase com a pergunta: 'Há alguma coisa a celebrar em 1997?' Boa pergunta, mas a retórica se volta, de fato, para o segundo parágrafo anterior quando Topik enfatiza a recusa do sensacional e desviante em Levine e observa que este nota, com forte indignação óbvia, que as comemorações de Canudos serão em 1997, data da destruição e não da fundação. Leitura interessante, novamente, porque a indignação está implícita e o 'forte' me parece por conta do resenhista. É curioso também este destaque porque diminui o valor da revisão de Canudos feita no Brasil, empreendida justamente pelos citados como responsáveis pela ajuda em Salvador. Além disso, o próprio Levine se antecipa, um pouco precipitadamente, porque a comissão que organiza o centenário abrange todo o tempo de existência de Canudos (1893-1897) e ainda, em 1993, a Universidade Estadual da Bahia (UNEB) e outras instituições organizaram extensa programação para assinalar a fundação do Belo Monte na cidade de Nova Canudos.

As publicações de Mud Hut Jerusalem Canudos e de Vale of tears não causaram impacto no Brasil nas suas versões em inglês, embora o livro tenha atraído a atenção no exterior por ser a primeira monografia nessa língua que oferece uma visão global e com ampla contextualização histórica do tema. Quando Vale of tears foi traduzido como O sertão prometido, as reações, antes ausentes, não demoraram. Numa resenha no jornal de resenhas mensal da Folha de São Paulo (14), que abarcou três livros sobre Canudos saídos ao mesmo tempo (Villa, Bernucci e Levine), percebe-se como a comparação com Villa lhe é desfavorável. O que atrapalha particularmente o livro de Levine, segundo o resenhista, R.Ventura, são as pequenas falhas de citações de nomes de pessoas e lugares e as confusões cometidas ao atribuir ações a pessoas erradas (15). Naturalmente, erros e enganos no varejo da narração dos fatos prejudicam a impressão que o leitor constrói do argumento geral e diminui a fé na validade do quadro maior que a narrativa pretende constituir. E, neste sentido, realmente o livro deixa muito a desejar, como também observou Calasans numa entrevista e numa pequena resenha no final de 1995 (16).

Examinemos alguns exemplos citados por Calasans: escrever Souré em vez de Soure (dentre outros equívocos, ainda poderia ser considerado como falha na revisão ortográfica) (17); mais sérios são casos como trocar José Américo Camelo por João Camilo (porque ao fazê-lo parece incluir mais um personagem na história). Existem ainda as contradições de dados dentro do texto, em lugares separados na narrativa, como dar, sem explicação, duas datas diferentes para o ano de nascimento do Conselheiro. Desse modo, existem as confusões já mencionadas, mas o que, no fundo, surpreende mesmo para um historiador experimentado é o uso das fontes. Calazans observa que o autor atribui a ele, baseado num trabalho publicado, uma informação que não consta no artigo mencionado. Naturalmente, Calazans não visa destruir a obra do historiador, mas se sente no dever de proceder às correções, num espírito construtivo. Tanto é assim que considera as teses gerais de forma favorável, mais do que Ventura aparentemente, mesmo que, nada surpreendente, algumas sejam discutíveis. Entretanto, os detalhes equivocados comprometem de tal forma o livro que as teses gerais e o que se pode acrescentar de positivo quase acabam soterrados pelos deslizes.

No entanto, nenhum dos resenhistas menciona uma nota do livro de Levine em que a tradutora explica que parte das citações em português foram reconvertidas do inglês sem o apoio das notas da fonte original. A casa de Levine, que mora na Flórida, danificou-se num tufão e a calamidade destruiu parte de suas notas! Isso pode começar a explicar algo como traduzir 'chefe de polícia' por delegado nas cidades do interior. Ou, também, chamar de Mendes de Brito o que Euclides, por engano, chamou de Mendes Brito e que seria Barra do Mendes. Ora, ninguém se lembrou de consultar o artigo mais antigo. Neste não há referência ao acidente natural, mas vários dos equívocos apontados aí já aparecem. Por exemplo, o nascimento do Antônio Mendes Maciel em 1828, quando a sua certidão, já há algum tempo conhecida, assegura o ano de 1830. Barra do Mendes já é Mendes Brito. Por outro lado, alguns equívocos não figuram em 1988: Sílvio Romero é somente natural de Lagarto e o bispo que ordenou a missão é Dom Jerônimo (mesmo que escrito Jerónimo) e Masseté se localiza entre Tucano e Cumbe. Os erros de 1988 não são atribuíveis ao tufão, e, aliás, os equívocos de 1992 também não, já que a destruição ocorreu em agosto de 1992, quando podemos supor com segurança que o livro já estivesse pronto (razão, provavelmente, pela qual os resenhistas não mencionaram a perda como desculpa pelos erros cometidos).

Nesse caso, então, deve haver outro fator de interferência. Calasans aventa a possibilidade de problemas de linguagem. Realmente, este fator parece pesar. Veja-se o exemplo dos índios. Primeiramente, Levine cita fontes a respeito do significado da categoria caboclo, mas, apesar de ter lido a monografia sobre os Kiriri de Mirandela, participantes ativos em Canudos, não menciona que caboclo no uso regional é um termo meio depreciativo para esses índios, por implicar ser descendente, e, simultaneamente, não mais índio puro. Diferenciam-se os descendentes de índios por serem caboclos em oposição aos que não o são. Este uso é importante para avaliar a participação de diversos grupos indígenas em Canudos (18). Levine utiliza o termo antigo, não usado na região, mameluco para a mistura de índio com branco, ao passo que caboclo localmente é categoria constitutiva de um grupo (19). Quando o autor informa sobre a Festa da Jurema, ele fornece um retrato que não está na fonte. Maria de Lourdes Bandeira, fonte, não afirma que se fermentavam os frutos da jurema para uma bebida alcoólica. Seria estranho também que ela tivesse indicado este preparo, e, de fato, ela não especifica nenhum modo de preparo, porque sabemos que, no Nordeste inteiro, os índios usam as raízes (observa-se ainda que ela chama os índios sistematicamente de cablocos nessas páginas).

Em Canudos, 'morreram os últimos pajés, dois dos quais bastante famosos na época', diz a fonte. Levine transcreve: 'Os últimos dois xamãs (pajés) Kariri morreram em Canudos'. Diferença mais sutil do que ler o que não está na fonte. Estas informações causam espanto aos especialistas em índios no Nordeste, mas dificilmente destacar-se-ão de imediato para um outro leitor (20). Talvez uma pessoa conhecedora dos chamados movimentos messiânicos se surpreenda nas duas páginas seguintes, quando Levine aponta a reverência dos sertanejos para com o Conselheiro, por anos após sua morte. O autor afirma que 'um beato sobrevivente, João Maria, depois levou consigo a visão do Conselheiro e a usou como base de uma nova comunidade messiânica no Paraná meridional, a região do Contestado'. Houve mais de um monge (como eram conhecidos) chamados João Maria, mas eram precursores do movimento que eclodiu mesmo com o José Maria. Leia-se a fonte citada, Maria Vinhas de Queiroz, para descobrir que não foi um João Maria que fundou a comunidade, e que não existem indícios que relacionem algums destes com Canudos. O primeiro João Maria iniciou sua perambulação depois da Guerra do Paraguai, mas nada indica que tenha subido mais do que Mato Grosso do sul até seu desaparecimento (21).

Ainda existem outros pontos, a maioria da mesma ordem dos constantes do início da discussão deste texto, mas, salvo engano, os que acabaram de ser citados são os mais notáveis. Sem dúvida, deve haver algum vetor de interferência que nos permita pensar em alguma explicação destas leituras equivocadas. Retornando ao livro — como já vimos, não houve correção dos equívocos já presentes no antigo artigo —, a citada resenha de Calasans se limita, com as melhores intenções, mais aos erros fatuais e de citação. Na entrevista, no entanto, já mencionei que ressalvou o graúdo que

...levanta questões interessantes, abre perspectivas para pesquisas, (...) mas o miúdo o induz a acreditar que (...) a tarefa de reescrever Canudos, com a profundidade que tantas pesquisas feitas posteriormente já permitem, e também com o subsídio das que ainda podem ser feitas, deve ser de um brasileiro, alguém que conheça as sutilezas da nossa história e esteja impregnado pelo espírito do sertão e do sertanejo. (22)



E vale ressaltar que o professor Calazans não compartilha de um xenofobismo estreito, como demonstra a sua avaliação de que o melhor livro sobre Canudos, falando em 1993, é o do Padre Otten, um europeu (23). Já o que parece irritar um outro estudioso de Canudos, Renato Ferraz, não é tanto o fato de se achar em minoria em face dos estrangeiros, mas o excesso de criatividade, a falta de aporte de novas perspectivas e a indesculpável leviandade para com as fontes da maioria dos estudos até aquele momento registrados (24).

De fato, constatamos que brasileiros e uma parte séria da literatura internacional não se comunicaram, prejudicando diálogos que mesmo no nível nacional inexistem, o que permite concluir que esse campo sofre de falhas de comunicação impressionantes. Como resultado, alguns dos estudos que foram publicados trabalharam em direções análogas, parecendo, várias vezes, duplicar ou multiplicar esforços e estabelecer resultados convergentes e divergentes nas pesquisas, o que está a merecer, urgentemente, uma discussão entre os participantes do campo. Há uma evidente necessidade de melhorar a rede de relações para que a informação e os trabalhos fluam com mais facilidade e o diálogo não demore tanto a acontecer. Isto é, naturalmente, pressupondo uma disposição igual à de Calazans, que sempre esteve mais preocupado com a avanço no estudo do fenômeno, apaixonado que é pelo tema, do que com a busca de fama e prestígio individual, sempre pronto a partilhar seus conhecimentos e à discussão franca, fecunda e respeitosa. Talvez esse seja um bom desafio para a comissão que organiza o Centenário. De fato, o professor Calazans informa que está se preparando para uma série de seminários neste ano e no próximo. O Centro de Estudos Baianos também elaborou uma proposta para um congresso internacional em novembro deste ano.

Aliás, é imperativo reconhecer que Calasans não é conhecido por estas qualidades somente pelos brasileiros, mas que, de vez em quando, aparece um agradecimento especial por sua conversa esclarecedora e orientadora de perspectivas em algum trabalho estrangeiro. Lori Madden, em seu artigo The Canudos war in history, expressa-se desta maneira enloquente (25). Este artigo ilustra e sumariza as tendências sinalizadas aqui de diversas outras formas. Primeiro, ela produziu uma tese sobre a retórica e a ideologia dos autores que escreveram sobre Canudos, tese esta que os brasileiros desconhecem (e ainda há uma outra tese de Patricia Pessar). Em contrapartida, ela afirma que Levine produziu a primeira revisão sistemática de envergadura de Euclides da Cunha, ignorando ainda trabalhos como o de Otten. Madden, assim, acha curioso que tenha sido um estrangeiro a elaborar esta revisão mas não desenvolve o ponto. Ela desconhecia, portanto, os estudos, então em curso, de brasileiros como Villa e Arruda. De qualquer modo, estudiosos como Calasans, e até mesmo os mais marxistas como Moniz, certamente abriram o caminho do deslocamento do enfoque de Euclides para Canudos. Mais importante ainda, ela lembra que há vantagens e desvantagens em ser estrangeiro e na perspectiva externa. Ponto relevante porque o brasileiro potencialmente se ilude com o fato de pertencer à mesma etnia e compreender por dentro, quando cultura e sociedade afastadas no tempo podem ser tão distantes e externos quanto a diferença sincrônica. Devemos, evidentemente, pensar quais as vantagens e desvantagens que cada posição objetiva acarreta, como a Antropologia tem feito, sem incidir em a prioris.

A narrativa de Levine arrebatou Topik a ponto de ele nem reparar nas contradições internas, ao passo que os brasileiros apontam para os equívocos factuais e leituras de fontes com desentendimentos. O outro resenhista estrangeiro comenta que o livro de Levine lhe passa a impressão de ter sido escrito com certa pressa, o que contribuiria para as falhas indicadas pelos brasileiros, e nos leva a considerar o que falta um pouco nessas resenhas, ou seja, esmiuçar e examinar as grandes linhas e a contribuição possível para que os trabalhos de Levine ultrapassem o 'vale de lágrimas' dos erros e a elevação a uma 'Jerusalem' da História. Madden oferece uma visão crítica interessante da produção até aquele instante e termina com alguns comentários pertinentes sobre Levine, ponto culminante da historiografia moderna. Desde logo, ela assinala que o autor se esforça para colocar todos os eventos nos contextos regional e nacional, prestando particular atenção ao funcionamento da política e seus desdobramentos. Igualmente assinala que ele se dirige a questões levantadas pela literatura anterior, incorporando e subsumindo, antes que rejeitando, os discursos antecedentes, e abarcando evidências novas. Deste modo, joga nova luz sobre os pontos em discussão, colocando em dúvida certas imagens anteriores e destacando outros pontos que mereceriam maior relevância.

Na visão de Madden, o autor abraça uma idéia de história como um processo corroborativo em que se deve aperfeiçoar o conhecimento por via da harmonização de todas as provas existentes. Há um grande esforço em reunir toda a literatura relevante possível e de várias disciplinas (26). Porém, a estratégia de abarcar todas as evidências e literatura auxiliar traz, em si, seus riscos. Primeiro, ser observador externo acarreta querer explicar todas as circunstâncias como se fosse para um leitor sem nenhum conhecimento prévio. Isto Madden parece não deixar explícito, ou seja, que o texto se alonga demais e se torna, às vezes, repetitivo. Ela conclui dizendo que, ao oferecer este quadro aparentemente completo, apesar de fragmentado por alguns argumentos inconclusos, Levine realiza 'uma modernização hegeliana do passado' antes que uma contribuição em si, na tarefa de uma melhor descrição da história.

Ela considera que a voz autorial de Levine se fragmenta nesta tentativa. Ao retomar, apropriadamente, um problema que passava sem questionamentos em algumas análises antropológicas, Levine não resolve a extensão do conteúdo messiânico e/ou milenarista do movimento. Ademais, ele faz asserções ambíguas e contraditórias sobre este assunto, insistindo em 'desfanatizar' os peregrinos quando, simultaneamente, enfatiza como a religião os relaciona com a 'cidade sagrada'. Em suma, o livro de Levine é sério, merece ser levado a sério, mas os seus argumentos e a sua contribuição exigem um trabalho mais demorado para contrastá-lo com a literatura mais antiga, para muitos dos detalhes potencialmente equivocados, e com a literatura recente historiográfica e sociológica, para os argumentos interpretativos, de forma a tentar alcançar um novo patamar geral nos estudos do 'canudismo' (27).

Quanto à contribuição da Antropologia nas pesquisas contemporâneas há muitas possibilidades a serem exploradas. Por exemplo, as noções de cativeiro e de Besta-Fera da cultura bíblica do campesinato — elaboradas no artigo de Levine (28) — podem indicar uma pista valiosa para se aproximar daquela que seria uma pergunta antropológica básica, até já referida de certo modo: o significado de Canudos para os próprios participantes. Assim, essa comparação nos fará compreender melhor as razões que levaram as pessoas a escolher uma vida que requeria migrar para um lugar diferente. Muitas vezes, os autores se preocupam em explicitar o contexto sócio-ecômomico em que o sertão se encontrava, mas isso não explica ainda as razões significativas de participar naquele momento e nesse espaço. Todavia, tanto uma revisão mais detalhada de O sertão prometido de Levine, quanto uma perspectiva antropológica ensejada pelos estudos camponeses, vão ter de ficar para outras oportunidades.



Notas

1. LEVINE, R. Mud Hut Jerusalem: Canudos Revisited. The abolition of Slavery and the aftermat of emancipation. Brazil. Durham-Londres: Tuke University Press.

2. _______________. O sertão prometido. São Paulo: EDUSP, 1995.

3. OTTHEN, A. 'Só Deus é grande'. São Paulo: Loyola, 1990.

4. _______________. A influência do ideário religioso na construção da comunidade de Belo Monte. Luso-Brazilian Review, v.30, n.2, 1993.

5. LEVINE, R. Vale of tears: revisiting the Canudos massacre in Northeastern Brazil. Berkeley/London: University California Press, 1992.

6. VILLA, M. A. Canudos, o povo da terra. São Paulo: Ática, 1995.

7. BERNUCCI, L. M. A imitação dos sentidos. São Paulo: EDUSP, 1995.

8. BASTOS, J. A. Incompreensível e bárbaro inimigo. Salvador: EDUFBA, 1995.

9. ARRUDA, J.. Messianismo e conflito social. Fortaleza: EDUFC/SECULT, 1993.

10. A resenha, da qual não temos a referência completa, apareceu numa revista editada pelo Centro de Estudos e Documentacão de América Latina, em Amsterdam.

11. LEVINE, R. Vale of tears: revisiting the Canudos massacre in Northeastern Brazil. Berkeley/London: University California Press, 1992. Resenhado por TOPIK, S. Vale of tears: revisiting the Canudos massacre in Northeastern Brazil. Luso-Brazilian Review, v.30, n.2, 1993.

12. Idem. p.115.

13. É preciso salientar que os agradecimentos no livro são maiores e mais cuidadosos: apresenta fortemente a intensa relação de Calasans com o Centro de Estudos Euclides da Cunha (UNEB). Calasans ainda merece menção como 'maior conhecedor das tramas de Canudos', tendo sido 'informante, guia e, sobretudo, amigo'. A curiosidade aqui permanece sendo a não-referência explícita ao Núcleo do Sertão, maior acervo de literatura de Canudos. Em algumas notas ele se refere ao Núcleo do Sertão. No entanto, num desses casos, coloca o Núcleo como parte do Centro de Estudos Euclides da Cunha. Veja-se Levine, R. O sertão prometido., op. cit., p.16-9.

14. VENTURA. R. Três visões de Canudos. Folha de São Paulo, São Paulo, 6 nov. 1995. Jornal de Resenhas, p.3.

15. Ventura traça um paralelo entre Levine e Villa, já que ambos questionam as idéias recebidas sobre Canudos, particularmente o caráter messiânico como motivo de atração. Neste sentido, Villa é mais radical ao negar o milenarismo, contudo, a argumentação não convenceu Ventura. Na comparação entre os dois, o resenhista considera Villa 'mais preciso e sintético' do que Levine. De fato, o livro de Levine é maior e veremos que outra autora também apontou ambivalências e aparentes contradições na narrativa. Ventura, por fim, discorda dos dois autores nas suas visões da obra de Euclides, assunto ao qual dispensa atenção especial por ser sua própria via de entrada nesse campo.

16. LEVINE, R. O sertão prometido., op. cit. Resenhado por CALASANS, J. A Tarde, Salvador, 25 nov. 1995. Caderno Cultural, p.6-9.

17. Mais uma vez, o destino pode brincar com algumas ironias: o nome de Levine no artigo de Calasans aparece como Lavine. Idem, ibid.

18. Igualmente para as tentativas de rastrear os dados possíveis de serem levantadas sobre a comparação da população em Canudos. Levine, em duas notas, refere-se ao termo cabloco, na primeira apenas como uma etimologia fornecida como cortesia, e, na segunda, tendo como fonte um livro de 1953. O reverso da estratégia de incluir o máximo de fontes posssíveis e de várias disciplinas é o perigo de não cobrir todas as fontes necessárias e falhar na interpretação de certos pontos especializados nestes campos.

19. Em Mirandela, antigamente, o termo era usado em oposição a português.

20. Outros erros do mesmo tipo ocorrem quando, no livro, Levine discute os índios e as missões no sertão: Messider, em vez de Messeder; a missão de Roldas, no lugar de Roldelas. Mesmo quando se acerta o alvo, há imprecisão. Assim, fornece com muito acerto o octógono de terra, do ponto central para oito direções, de 12.230 hectares que formava o território concedido para as aldeias indígenas em 1700, mas chama esta área de 'légua quadrada', quando se trata de uma légua em quadra, diferença de terminologia nada irrelevante e que causou amplos debates quando da demarcação das terras indígenas de Mirandela e Massacará. Ao mesmo tempo, a exatidão de referência do octólogo e da área total surpreende, porque é informação especializada sem que haja fonte indicada, embora estas fontes costumem dar o número de 12.320 ou 12.300 hectares. De fato, em termos mais gerais, de vez em quando, certas afirmações e informações aparecem sem que haja uma aparente fonte que as sustente claramente. Veja-se LEVINE, R. O sertão prometido., op. cit., p.155, 117.

21. Verificar as referências a Canudos fornecidas pelo índice do livro de Vinhas Queiroz não estabelece nenhuma relação mais direta com Canudos que influenciasse os eventos do Contestado. Veja-se Queiroz, V. Messianismo e conflito social. São Paulo: Ática, 1977.

22. Veja-se CALASANS, J. A Tarde, Salvador, 25 nov. 1995, p.7. Neste, Calasans atribui o impressionante crescimento de pesquisadores estrangeiros voltados para o tema ao impacto do romance de Vargas Llosa.

23. Veja-se CALASANS, J. Entrevista. Revista da FAEEBA, p.146, 1993.

24. FERRAZ, Renato. O centenário do Belo Monte: algumas reflexões sobre ficção e história. Revista USP, v.2, 1993-4.

25. MADDEN, L. The Canudos war in history. Luso-Brazilian Review, v.30, n.2, 1993.

26. Um esforço realmente louvável e, às vezes, supreendente. Por exemplo, eu mesmo sou citado com a publicação sobre o campesinato no sertão, o que causa certa surpresa em virtude de ser uma edição muito limitada e de restrita circulação (quase obscura, por assim dizer) num circuito maior. Veja-se LEVINE, R. O sertão prometido., op. cit., p. 144.

27. Expressão de Calasans na entrevista ao jornal A Tarde. Veja-se CALASANS., op. cit.

28. Levine não hesita em utilizar o conceito de camponês no artigo de 1988. Parece não duvidar de sua utilidade. Em contrapartida, na introdução do livro, ele, de repente, questiona se em algum momento já existiu um campesinato no Brasil. Isto parece um outro desses assuntos contraditórios já mencionados por Madden, que não dá uma lista de todos esses tópicos.


(*) Edwin Reesink é professor do Departamento de Antropologia e do Mestrado em Sociologia da Universidade Federal da Bahia.




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