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Ensaios-->Deus nos acuda: a pedagogia da indiferença -- 23/03/2007 - 10:55 (Félix Maier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Das emoções em Deus nos Acuda

ROBERTO DaMATTA (*)

Em Deus nos Acuda, país tropical amaldiçoado pelo criador e feio por natureza, situado - como o nosso glorioso Brasil - em algum lugar entre o Equador e a Patagônia, as autoridades fazem um tratamento especial destinado ao controle das emoções. Lá, só com o canudo chamado pelo povo ignaro e por alguns intelectuais reacionários de 'Diploma da Cara de Pau' eles podem se candidatar aos cargos de 'Delegados do Povo', de 'Protetores da Plebe', de 'Patronos dos Ricos' e de 'Patrões do Social'. Devidamente habilitados, ou seja: emocionalmente castrados, eles formam - como descreve Lima Barreto - uma casta muito parecida com as de Bruzundanga e as do Reino de Jambon, aquele paraíso tropical em forma de presunto, país obrigatoriamente mordido e fatiado por suas autoridades desde tempos imemoriais.

O treinamento antiemocional resulta do que os habitantes de Deus nos Acuda chamam de 'pedagogia da indiferença'. Nele, a par das aulas teóricas, o candidato é posto à provas práticas inimagináveis para nós, brasileiros, como a de comer na frente dos famintos; a de não mover uma palha diante de alguma vítima de violência; a de ver, mas não enxergar, as copiadoras de livros nas universidades, esses locais onde é treinada a elite da sociedade, e a aceitar passivamente uma polícia parada, como a indicar aos bandidos onde podem assaltar e assassinar com mais segurança e precisão. Para esse povo, a polícia ideal é a que compreende não só a raiz social da criminalidade, mas, sobretudo simpatiza com as motivações morais e psicológicas dos bandidos. O famoso filme de John Ford, 'O Homem que Matou o Facínora', é censurado como um libelo a favor da violência ianque porque a história termina com o triunfo da lei graças à morte do criminoso num duelo.

Deus nos Acuda concluiu que karma, o 'social' ou a vontade de Deus são a causa de certos tipos de delitos, de modo que se estabeleceu como artigo constitucional a proibição axiomática, mas provocadora e simpática, do 'é proibido proibir'. Assim, qualquer repressão é uma violência e toda censura é vista como careta, indesejável, de mau gosto, quando não é, ela própria, um crime.

Um outro pressuposto da 'pedagogia da indiferença' é que todos os problemas estão concretamente interligados, têm uma insondável profundidade histórica, pertencem a todos e não podem ser parcelados, mas devem fazer parte de medidas abrangentes de transformação social. 'Ou se muda tudo ou não se muda nada' é o dístico do Palácio da Justiça do país. E como lá a indiferença é um valor estruturante da vida, o adágio é levado a sério por todos, sobretudo pelos Juízes da Suprema Corte e pelos Ministros, todos vistos e tratados como heróis porque o povo considera que palácios, carruagens, lacaios, ajudas de custo e a opção de permaneceram distantes dos problemas que infestam os cotidianos de suas pastas - aquilo que em Deus nos Acuda define como 'po­der' - não contam.

O que, entretanto, o visitante acaba mais admirando neste programa é o dogma antibíblico segundo o qual não se pode sequer discutir ou mudar uma lei em estado de comoção emocional. Em Deus nos Acuda, as leis não são instrumentos de regeneração social, mas fins em si mesmas. É curioso constatar que, naquele país, tudo é criticado, mas as leis - ah! as leis - são consideradas simplesmente perfeitas! Fala-se a todo o momento em revolucionar o sistema, promovendo sua transformação radical, e já aconteceram até guerras devido a esse desejo feroz de mudança, mas se alguém falar em mudar uma lei, os habitantes de Deus nos Acuda imediatamente protestam. A sociedade tem que ser impiedosamente transformada, mas as leis, tidas co­ mo perfeitas, são imutáveis.

Sua perfeição decorre do mito de que são feitas sem emoção, porque, em Deus nos Acuda, a elite acredita piamente que se pode mesmo viver sem sentimento; e que viver sem sentimento não é uma forte e desumana emoção. Daí a sua racionalidade ex­tremada, expressa quando calma e tranqüilamente resolvem suas diferenças, jamais xingando, dando tabefes ou simplesmente mandando prender seus adversários. Algo que os diferencia do Brasil e serve como ponto de honra para esse treinamento de construir dirigentes e normas livres de emoção e de sentimento. Disto decorre uma proverbial impunidade, pois se as leis, mesmo quando são ineficazes, não mudam, elas acabam se transformando em desculpas e não em mecanismos de reparação e de regeneração social.

Enfim, essas são questões que o observador percebe quando visita Deus nos Acuda. Como ocorre em todos os grupos humanos, a autovisão está sempre vendada por muitos filtros e biombos de toda sorte, de modo que a miopia investiva nativa é sempre proporcional à estranha (fácil e desinteressada) lucidez dos estrangeiros. De qualquer modo, eu lá fiquei pasmo com a presença simultânea de tudo revolucionar, ao lado de um acordo tácito preservar as regras do jogo: as leis e normas capazes de reduzir ou não os grandes desvios que, em Deus nos Acuda, tornam-se cada vez m banais e rotineiros.


(*) ROBERTO DaMATTA é antropólogo




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