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cronicas-->FENO PARA QUE TE QUERO... -- 22/06/2000 - 02:31 (Marilene Caon pieruccini) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


Esta é uma linda história, que gosto de contar, principalmente, quando anoitece e o Sol derrama-se em cascatas de arco-íris por entre nuvens prateadas. (Não que ela deixe de ser linda em outras horas, ou que eu não goste de contá-la sempre, mas aquele momento mágico do por-de-sol, parecendo framboesa madura, derretendo-se em sorvetes de baunilha nas lembranças de minha infància, é o momento em que ressurgem os vultos antigos das sombras da saudade, adquirindo vida, povoando de cores e sons esse relato...
Na calçada da larga avenida de terra (quando chovia, o barro chegava aos nossos joelhos, tão pequenas eram ainda nossas pernas) costumávamos reunir uma turma de amigos para as brincadeiras do final do dia: eu, o mano Flávio, a Águeda (fiquei sabendo há tempos atrás, que morreu em São Paulo, ao dar à luz seu segundo filho, pois no Brasil ainda se morre disso), o Benito, a Leopoldina (cabelo branco e encarapinhado), o Marquinho e o Mário. (Naquela época, parecia haver mais meninos que meninas).
Sentados no cordão do meio fio, que separava a calçada da rua, desenhávamos mapas de tesouros legendários, tão cheios de traços, cruzes e rabiscos, que se transformavam em incríveis labirintos, ao invés do caminho cifrado, que levaria ao "guardado".
Mapa feito, nos dedicávamos a juntar nossa riqueza: penas coloridas, caçadas no território proibido do galinheiro; botões de madrepérolas, surripiados da cesta de costura; cristais de rocha recolhidos em várias incursões pelo solo pedregoso da região; a inédita e única pena de urubu, relíquia obtida, em troca de inúmeras bolinhas de gude, lá pelas bandas de Vacaria e o melhor de tudo: a moeda da sorte, o tostão furado, herança de minha bisavó.
Colocávamos tudo numa caixinha de madeira, trancada com a corrente e o pequeno cadeado, que pertenciam ao nosso cachorro Tupi. (Até hoje não entendo porque meu pai o prendia com tanto cuidado, se ele não era perigoso...)
Tesouro bem acondicionado, começava a parte mais difícil: como escondê-lo, de forma que o esconderijo correspondesse ao mapa, se não fazíamos buracos no chão, pois "morria a mãe"? A solução era sempre um galho de ameixeira, a melhor de todas as árvores frutíferas que havia em nossa casa. Depois, repartíamos o mapa entre todos e o "esquecíamos" durante uma semana...
Noite chegada, só ficávamos o Flávio, o Mário e eu. Era a hora em que ensinávamos o amigo a falar sem gaguejar. Era uma técnica muito simples, mas o mais importante é que funcionou e ele aprendeu a falar direito. Consistia em fazê-lo repetir palavras como bolo, bala, balde, com toda a rapidez, até que ele conseguisse pronunciá-las corretamente. Na noite seguinte, o processo continuava, repassando os vocábulos aprendidos e introduzindo novos. Na nossa pressa infantil, que não podia perder o tempo da vida, atropelávamos as lições com velocidade ainda maior do que aquela com a qual exigíamos que ele falasse e deixamos de expor nosso método aos adultos, que nunca descobriram como ele parou de gaguejar... Em pouco tempo, conseguimos o milagre: Mário falar direito! (Claro, ele falava tão ligeiro, que era comum a saliva escapar da sua boca, atingindo quem estivesse nas proximidades, mas nenhum de nós se importava com isso, pois ficávamos felizes de ver o amigo falar sem gaguejar. Foi uma façanha, já que, aos poucos, ele aprendeu a dosar também o ritmo de sua fala.)
Enquanto esperávamos chegar a hora de nos vestirmos de imaginários piratas à procura de nosso tesouro, desenvolvíamos outras incríveis brincadeiras, mas sempre com um olhar comprido de desejo para a plantação de feno de nosso vizinho, que crescia viçosa, alheia à nossa vontade de correr pelo meio dela.
Nunca falamos de nossa pretensão para os adultos, mas inúmeras vezes o "seu" Djalma viu nossos narizinhos colados na velha cerca de madeira, aspirando o aroma do seu atraente pasto.
Não lembro mais quantas vezes encontramos nosso tesouro, quantas vezes bandidos e mocinhos disputaram, com revólveres de madeira e cavalos de cabo de vassoura, o território demarcado pela fronteira de nossa imaginação. Ou quantas vezes, índios enfeitados com as penas das asas das galinhas cacarejantes (o trabalho de arrancar tais penas era quase insano, pois precisávamos primeiro pegar as aves, para depois depenar suas asas, sem nossa mãe perceber) realizaram a dança da chuva, escorregando no chão embarrado, que molhávamos com latas de água, demonstrando a força do ritual... porém lembro com certeza do feno ali crescendo, perfumado, tão pertinho de nós e, ao mesmo tempo, tão inalcançável...
Então, numa Sexta-feira, soubemos que no dia seguinte o vizinho iria cortar o pasto, o mesmo pasto que havíamos desejado, parecia-nos que por uma eternidade... Nesse instante soubemos, pela primeira vez, o que era a dor de uma perda... Nunca havíamos podido brincar nele, mas enquanto ele aí estava, havia sempre a esperança do quem sabe, talvez amanhã... Ceifado, seria o nunca mais!
Mesmo a linda tarde não conseguiu devolver nossa vontade de brincar. Estávamos sentados, murchos, como se estranha doença nos abatesse a todos por igual...
Quando nosso vizinho veio nos convidar para brincar um pouco no feno, antes que ele iniciasse o corte, nossa alegria foi inenarrável. (Nós nunca teríamos tido coragem suficiente para lhe fazer tal pedido).
O pasto estava tão alto, que nós desaparecíamos no meio dele.
Meu Deus! Parecia impossível que estivéssemos ali!
Naquela vez, na minha ignorància, não compreendi a grandeza de coração daquele sisudo homem, pois nossa correria no meio do feno o amassava e dificultaria o corte, porém ele não se preocupara com isso, apenas quisera nos ver felizes...
Brincamos até enjoar. Desejo satisfeito. Noite escura. Voltamos para casa. Não vimos o olhar umedecido do homem sério, que tivera na sua atitude a única forma descoberta de nos demonstrar carinho, respeito e amor!
Nunca mais brincamos no meio de feno crescido, (nosso vizinho não mais o plantou), mas até hoje, quando o entardecer é pura poesia, ou quando conto essa história, minhas narinas fremem com aquele cheiro de infància tão feliz. E como nunca é tarde para sermos gentis, recito em minha alma:
- Muito obrigada, "seu" Djalma, esteja o senhor onde estiver. Por sua sensibilidade, Deus deve ter-lhe recebido com muito carinho no paraíso.



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