Não tinha ainda três anos mas dava muito trabalho à mãe, com estrepolias que alguém, em sendo espírita, iria dizer que provinham de outras encarnações, tendência que se acentuaria depois dos sete, quando o perispírito estivesse definitivamente preso à matéria, ao corpo.
Quebrava as louças e ria, estimulado pelo fragor dos estilhaços. Rasgava as cortinas, enfiando-lhes o garfo ou a faca, que surrupiava da gaveta da cozinha. Chegou a mexer com a criação no quintal, conseguindo tirar algumas penas dos pintainhos. Só não executou os coitados porque a reação da galinha foi feroz, deixando-lhe vergões nos braços, ameaçando furar-lhe os olhos.
O cachorro vivia enfiado debaixo dos móveis, cansado de perder os pêlos. Intentou reagir, coitado, rosnando com os dentes à mostra, mas o patrão lhe deu exemplar pontapé, inesquecível para sua memória de ser inferior, escravizado à vontade dos humanos.
— Cléber, meu querido, Você vai sofrer muito na vida, se não criar juízo. — Era o avô, que percebia o quanto de atrevimento existia naquele proceder em desacordo com as normas da cortesia. Ao mesmo tempo, dava-lhe sutis beliscões, para que largasse o vasto bigode ou a cabeleira que lhe emoldurava o crânio luzidio.
Não era raro, nessas ocasiões, estando presente o pai ou a mãe, que se pusesse em convulsivo choro, bradando contra a ferocidade do avô ou de algum tio menos afeito ao sofrimento dos puxões e das mordidas. Também não era raro que os pais admoestassem os reacionários, dando motivo para discussões que iam culminar em beijos e carinhos para o pequeno. Por isso, aos poucos, os familiares foram afastando-se do petiz, deixando-o entregue a si mesmo, para as mórbidas fantasias.
Ao completar quatro anos, foi levado a uma escolinha, para brincar com gente de mesma idade. Não sabia, mas a mãe esperava outro rebento e queria ver o mais velho entretido com algo que não fosse o ciúme ou a inveja. Mesmo ela percebera o quanto de voluntarioso era o espírito do filho e antecipadamente punha de resguardo o mais novo.
Depois de mais de mês de choros e berreiros, quando a mãe, para tranqüilizar o ambiente, era convidada a vir buscá-lo, um dia resolveu ficar, ao descobrir que havia brinquedos para desfazer e colegas para atormentar. Foi assim que passou por diversas instituições de educação pré-escolar, sem se firmar em nenhuma. Se a família fosse rica, contrataria enérgica pedagoga para acompanhá-lo, impedindo-o de dar largas às malvadezas. Contudo, tal solução estava descartada, que o pai era simples peão a serviço da administração pública, servidor em início de carreira, levando para casa o correspondente a três salários mínimos, enquanto a mãe tinha os atributos apenas das prendas domésticas.
Volvendo à hipótese da crítica do espiritista, poderia ele suspeitar de que aquele espírito, em outras oportunidades, vivera sob tetos respeitáveis e abonados, revoltando-se agora contra a miserabilidade de existência tão precária materialmente. Diria mais, ou seja, que fora coagido a aceitar a encarnação, para obter a oportunidade do crescimento moral ou espiritual, aprendendo que o sofrimento é o caminho mais natural para o soerguimento da alma. Teria razão em tais hipóteses? A tempo, iremos decifrando os mistérios, que nem tudo a gente consegue informar no primeiro capítulo.
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