Quando se lê a poesia do Emparedado, percebe-se que, refutando
embora com veemência a ideologia nas doutrinas do tempo, o poeta
negro, Catarinense. Cruz e Sousa estava como que envisgado em
alguns dos seus pseudoconceitos. Daí vem uma das matrizes do
seu imaginário, que recolhe e potencia as figuras da determinação
mais opressiva com seu pesado lastro naturalista: a África como
terra do instinto, da luxúria, da cega inconsciência. A essa matriz
contrapõe-se outra, ideal, que produz as figuras da mais livre e
sublimada individuação escavadas nas minas hugoana e simbolista.
Afonte do seu imaginário, a poesia do corpo é africana e assume
dramaticamente os estereótipos que pesavam sobre o negro. A
poesia da alma não tem outra pátria além dos espaços siderais
onde tudo se espiritualiza. O Emparedado é, dilaceradamente, o
corpo que vive sob o império da carne, do sangue, da raça, entre
os muros de uma sociedade que é pura réplica da selva darwiniana,
e alma que sonha ardentemente com a transcendência estética, o
artista puro, o poeta assinalado e a transcendência mística. Trata-se
de um misticismo cósmico, sem dividade pessoal, à pureza infinita
das estrelas. Shopenhauer, pensador que aprofundou o drama da
divisão corpo-alma, vontade-libertação, parece às vezes presidir
ao embate existencial figurado na prosa de Cruz e Sousa. A história
biblica de Cam amaldiçoado pelo pai por um ato de despudor e
condenado à perpétua escravidão aparece literalmente no texto das
Evocações: " Tu és dos Cam, maldito, réprobo, anatematizado".
Pode-se conjecturar a formação de uma simbiose da consciência
revoltada e infeliz do poeta com a retórica do poeta maldilto já
assimilado pelo leitor de Baudelaire e de Verlaine. Cruz e Sousa
incorpora certamente na sua dicção muito eloquência ferina desse
veio maldito, e as suas metáforas servem-lhe também para traduzir
uma situação própria, que tem a ver com a maldição tanto coletiva
quanto individual sofrida pelo descendente de africanos.A África
é emblema do padecimento sem remissão, situando-se no pólo
oposto à civilização refinada vinda da Europa, a qual, no entanto,
oferece ao poeta culto imagens e ritmos para dizer a sua condição
marginal. O simbolismo brasileiro, como tantos outros movimentos
da nossa cultura, não só transpõs como filtrou e adaptou temas e
formas da literatura européia. A filtragem ideológica e estética é
tema recorrente da dialética da colonização: as idéias e as palavras
difundem-se com maior ou menor pertinência, mas na boa literatura
fica o que significa. Os sarcasmos que Cruz e Sousa desfere contra
a inconsistência desse poderoso de salão ocupam vários parágrafos
do Emparedado e valem como divisor de águas entre frasismo
oco dos literatos e a sua própria fala densa de dor e indignação.
Voltando ao núcleo da relação do poeta com a África, entende-se
como a sua imaginação concentrou no continente espoliado todas
as humilhações sofridas como negro e pobre em um país que
apenas acabara de abolir juridicamente a escravatura do cativeiro.
No livro das Evocações há uma prosa curta e lancinante, Dor negra,
que prepara o tom do emparedado. O texto ensina com a sua
eloquência convulsa o quanto é dificil, se não artificioso, separar
a denotação racial e africana da palavra "negro" e as suas múltiplas
conotações existenciais de mal e sofrimento que atravessam e
transcendem o periodo em que o livro foi escrito. Expressões de
natureza trágica. Uma leitura trans-histórica não é a-histórica na
medida em que se conduz o passado à consciência presente.
Dor negra traz uma epígrafe que devemos atribuir ao próprio
poeta: "E como os areais eternos sentissem fome e sentissem
sede de flagelar, devorando com mil bocas tórridas então,
simbolicamente da África ". A leitura dessa poesia evoca a
semântica do inapelável que Castro Alves construíra nas Vozes
da África, uma geração antes de Cruz e Sousa. E a dor é sinal
de uma carência de sentido: " Que existir é esse que as pedras
rejeitam, e pelo qual até mesmo as próprias estrelas choram em
vão milenarmente ?". Em Dor negra a maldição é inerente à natureza
da África, de sorte que a pervesidade do cativeiro teria vindo
somar-se a um infortúnio radical cuja origem se perde na noite
dos tempos: " Três vezes sepultada, enterrada três vezes: na
espécie, na barbaria e no deserto pelo incêndio solar como por
ardente lepra sidérica, és a alma negra dos supremos gemidos.
Como em Castro Alves, o coração da mensagem é trágico, que
se pense em termos da natureza da África, comburida e estéril,
quer em termos da sua história sobre a qual paira a maldição de
Cam. É conhecida a tese de Roger Bastide formulada no seu
estudo de literatura comparada " Cruz e Sousa e Baudelaire".
O poeta metamorfoseou seu protesto racial em revolta estética,
seu isolamento étnico em isolamento do poeta, a barreira de cor
na barreira dos filisteus contra os artistas puros. Algumas poesias
das Evocações confirmam a interpretação de Bastide. De todo
modo, é também verdadeiro dizer que, ao lado da transformação
do protesto racial em rovolta estética, Cruz e Sousa projetou
diretamente a sua própria condição de descendente de africanos.
A figura do maldito não tem, portanto, uma só dimensão. O aproveitamento
que Cruz e Sousa faz do imaginário romãntico-simbolista é , as
vezes uma transposição enfática dos seus traços estéticos
antiburgueses. Maldito é o poeta em conflito com a sociedade;
maldito é a persona negra que a escravidão e o preconceito
marcaram com ferro em brasa. " Deus ! ó Deus ! onde estás que
não respondes? Em que mundo, em que estrela tu escondes,
embuçado nos céus ? Há mais de dois mil anos te mandei meu
grito, que embalde desde então corre o infinito... Onde estás,
Senhor Deus?...
Obs. este trabalho continua no capitulo 2.
JOSE ANGELO CARDOSO.-Poeta, contista, artista plastico.
Instrumentador Cirurgico.Presidente-fundador da Academia
Guairense de Letras.