Perfil do poeta José Inácio Vieira de Melo feito pela jornalista Jane Fernandes, publicado no jornal Correio da Bahia, em 17 de agosto de 2003
Perfil/ Poeta do campo
Jane Fernandes
José Inácio de Melo expõe em versos o prazer e a dor de ter sido contaminado pela praga sagrada
Um matuto sem eira nem beira,
labutando com palavras,
vaquejando boiadas de signos
por caatingas labirínticas
numa peleja sem fim.
Invoca o gado invisível
numa toada aflita,
e grafa com pena e tinta
aquilo que a poesia marca,
a ferro e fogo, em sua alma
Marcação* é a 'poética' de José Inácio Vieira de Melo, versos onde ele se traduz e expõe o prazer e a dor de ter sido contaminado pela 'praga sagrada' que é a poesia. Seduzido pela força dos versos de Patativa do Assaré, entoados pelo 'cantador de poemas' Raimundo Fagner - ouvidos pela primeira vez num acampamento de escoteiros no alto de uma serra -, o menino de 12 anos, que já era um devorador de gibis, descobriu uma nova dimensão para as palavras. 'Aquilo mudou a minha vida', afirma sem hesitação.
Foi pensando em música que o menino nascido em 1968, em Olho D´água do Pai Mané - povoado de Dois Riachos, em Alagoas -, começou a escrever seus versos. Depositando palavras dia após dia no seu caderninho, ainda hoje guardado, ele se ressentia da indiferença da família e tinha vergonha de revelar sua veia poética. A aceitação da sua condição de poeta veio apenas aos 20 anos, quando cansado de estudar - tinha concluído o 2o grau -, ouviu do pai 'então vai ter que trabalhar'. Cuidando do gado na fazenda da família, Zé Inácio se dividia entre filosofar embaixo do umbuzeiro e mergulhar nos livros, iluminados pela luz de candeeiro. 'Se não tiver leitura não é poeta', sentencia, abrindo exceções para o que chama de poetas puros, aqueles que por serem analfabetos não foram 'contaminados' pela escrita.
Sujeito rural
Descritos como o período onde mais leu em toda a vida, os dez anos vividos em Maracás estão refletidos no seu primeiro livro Código de silêncios, lançado em 2000, pelo Selo Editorial Letras da Bahia. 'Tinha 400 poemas, escolhi 40 e toquei fogo no resto', explica como separou os versos que vieram em sua bagagem para Salvador, em 1998. Um misto de fatalidade e necessidade levou esse 'sujeito rural' a trocar a roça pela capital. Acompanhando o irmão caçula, que se recuperava de um acidente no Hospital Sarah, Zé Inácio se deu conta que 'a vida é um estalo' e decidiu batalhar para de fato fazer o que tinha vontade.
Além de publicar seus poemas _ 'eu gosto muito de exibir meu trabalho'-, ele queria também voltar a estudar. Relembrando os tempos em que cobria os shows de Belchior, Fagner, Zé Ramalho, e outros, para o jornal Café com Leite (distribuído em Jequié, Maracás e outros municípios vizinhos), acabou escolhendo o jornalismo. 'Fazia umas coisas bem-feitas, achava tudo aquilo bonito, mas hoje, na faculdade, vejo que tinha algumas falhas', reconhece.
Tendo conquistado a admiração da família - 'meu pai hoje tem orgulho de dizer: meu filho é escritor '-, o poeta contou com apoio irrestrito para o lançamento do seu segundo livro. Decifração de Abismos foi financiado pelo prefeito de Maracás e contou com um 'paitrocínio' e um auxílio fraterno, que possibilitaram a criação do selo independente Aboio Livre. Orgulhoso das suas vitórias - 'consegui em cinco anos o que muita gente não consegue em 20', conclui, feliz com o prêmio recém-concedido pela revista Iararana -, Zé Inácio está cheio de projetos. Além de A terceira romaria, seu próximo livro, previsto para 2004, ele lança ainda este ano o livrete Luzeiro (três cantos peregrinos). 'É a maneira que encontrei para prestar um tributo a uma das minhas referências, que é a literatura de cordel, mas o texto é no meu estilo', revela.
Se enveredando pelos caminhos do conto, Zé Inácio lança um olhar prolongado sobre as suas raízes contando as estórias do povo do Pai Mané e foi assim que seduziu uma platéia ansiosa por conhecer os versos do seu filho mais ilustre, quando, em meio aos festejos do São Pedro, visitou sua terra natal. Preocupado com a hipótese deles não entenderem sua poesia que mistura o cânone e o popular - 'lá eles acham que poesia tem de ter rima' -, o alagoano que já declamou na Academia de Letras da Bahia ficou nervoso como poucas vezes na vida. Começou sua apresentação com um poema em redondilha (todo rimado), recebido com euforia, e depois partiu para os versos livres - nem palmas foram ouvidas, mas não sem antes explicar aos ouvidos curiosos o significado da sua labuta: 'O poeta é aquele que diz o que já foi dito, de uma maneira que não foi dita ainda'.
* Poema publicado no livro Decifração de Abismos, Aboio Livre, 2002.
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