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Contos-->Clausura -- 13/07/2000 - 11:42 (Magno Antonio Correia de Mello) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Enquanto me distraio observando o pesado pêndulo do relógio de parede, ouço os passos de minha tia na escada. Tunc... tunc... tunc... O fim dos degraus cada vez se afasta mais dela.

Tia Esperança e o esclerosado relógio batizaram-se na mesma igreja, nasceram dos mesmos pais. Ela aumenta a morosidade do andar na exata medida em que o desajeitado pêndulo multiplica sua preguiça. As distâncias crescem de modo gradativo para os dois. O tempo dia a dia torna-se-lhes mais vagaroso.

São vítimas da mesma teimosia. Titia arrasta-se pela casa sem aceitar minha ajuda. Com um mínimo de autocrítica, deitaria na cama pra esperar a morte.

Não é crueldade. Anos numa casa invadida por teias de aranha, trastes velhos, verdadeiras ruínas, acabam ensinando a deplorar o passado e suas assombrações. Aos dez anos, meus pais morreram e fui forçada a vir morar aqui. Criança tagarela, alegre, agitada, ninguém reconheceria aquela garotinha nesta criatura sisuda. Por dentro, sou tão velha quanto minha tia-avó. A miserável me secou toda e qualquer vontade de viver.

Por vezes, desejo matá-la. Armo crimes semiperfeitos. Falham por eu ser a única suspeita. Vivemos no mais absoluto isolamento. Nossa ligação com o mundo resume-se à necessidade de repor suprimentos, mas só por exceção tia Esperança admite minha companhia quando vai às compras.

Não faço muita questão disso. Sou um fantoche nas mãos dela e não me importo se vou pouco à cidade. Dependesse de motivação, não iria nunca. Nem minhas idéias ultrapassam os muros deste túmulo.

Tia Esperança venceu os insuperáveis degraus da escada. Veio ter comigo, na sua pose asmática. Cada sílaba pronunciada desintegrava metade de suas empoeiradas juntas.

- A moça... - tartamudeou, antes de engasgar.

Sentou-se no imenso e centenário sofá da sala. Respirou fundo, querendo extrair daquele ambiente de mofo um oxigênio ausente desde a última grande guerra.

Se me aproximasse para ajudá-la, não tenho dúvidas de que seria repelida. Mordi os lábios.

- Velha nojenta!...

- Hein? Hein?

Nojenta e surda. A desgraçada aproximou os ouvidos da minha boca, num esforço descomunal para entender o que eu dizia.

- Pra quê, palhaça? Não vai ouvir mesmo...

- Fala alto, menina, fala alto! - titia protestou, sendo logo punida por um acesso de tosse. Gritei:

- Só perguntei o que foi, tia!

- Ah, sim! Puta que pariu, você, que merda!

A altura da minha voz estouraria os tímpanos de uma pessoa normal:

- A senhora tem de parar com essa mania de falar palavrão, DROGA!!!

A velha se levantou, espumando de raiva.

- Cala essa boca, moleca! - esbravejava, faces vermelhas, veias do pescoço latejando.

O gesto lhe custou caro. Caiu no sofá como um saco de areia suja. Ficou ainda mais histérica.

- Você é uma peste, sua putinha, uma peste!!!

Deixou de cuspir impropérios apenas ao mergulhar em outro acesso de tosse. Este, mais demorado, tranqüilizou-me. De acordo com roteiro seguido à risca em nossos diálogos, tia Esperança passaria a falar com mais calma e finalizaria a frase interrompida.

Por certo não a havia esquecido. Uma das características estranhas do avançado processo de senilidade em que se encontra minha tia é o fato de ter preservado sua memória. Titia se lembra, com precisão, da quantidade de vezes que tossiu durante sua última crise, do número de passos que foram necessários para que chegasse ao sofá, do desespero que tudo isso me provocou.

- A moça vem hoje.

Falava com a velocidade das tartarugas. Prosseguiu no mesmo ritmo.

- Você ouviu, Vera Cristina? A moça vem hoje.

- Sim, tia, ouvi.

Em alguns momentos, tenho lampejos de pena. Apesar de pouco significativos, eles existem. Minha tia é uma pessoa patética. Vê-la engolindo o ar com desespero, como se cada inalação fosse a última, comoveria sempre corações mais amolecidos. Não o meu. Quase nunca me deixo entristecer por sua velhice.

- Que moça, tia? A senhora não me falou de moça nenhuma...

- Hein? Que foi que você disse?

- Não disse nada. Deixa pra lá.

Ora bolas. Deve ser mais uma das doidices de tia Esperança.

Há muito tempo a velha mantém esse costume. Uma época, assegurava ter contratado uma professora de violino pra mim. Passaram-se meses sem sombra de professora alguma. Titia desprezava cada dia mais o assunto. Terminou por ignorá-lo. A professora? Um fruto podre de sua imaginação doentia. Embora mais lúcida, ela não era nem um pouquinho menos mentirosa.

A misteriosa moça, decerto, não passava de mais uma de suas intermináveis conversas fiadas. Resolvi não perder tempo especulando sobre o assunto.

- Bênção, titia. Já vou dormir.

- Hein?

Contive um desaforo a duras penas.

- Já vou dormir. Sua bênção - repeti, irritada.

- A essa hora, menina? Não são nem seis ainda, porra!

- Limpa essa língua, tia, limpa essa língua!!!

Tia Esperança se descontrolou.

- Olha aqui, sua vagabunda, quando você nasceu, eu já usava dentadura há muito, muito tempo, entendeu, sua pirralha? Há muito tempo!

Ela tremia inteira.

- Nem seu avô, sua bisavó, seu bisavô, nunca deixei ninguém meter o bedelho na minha vida! E isso vale pra você, sua bostinha! Bostinha!

Não pude resistir ao ímpeto de ampará-la. Foi pior.

- Me larga, Vera Cristina, me deixa! Sei muito bem me cuidar sem você!

Afastou-me com violência e se arrastou para sua poltrona preferida, sabe-se lá como. Atirou-se nela e começou um ataque asmático alguns graus de escândalo acima dos anteriores.

Eu não tinha mais nervos para outra cena dessa natureza. Desisti de pedir bênção à velha e me recolhi.

Meu quarto é o cômodo menos sombrio da mansão. Por mais que tente, tia Esperança não consegue manter fechadas suas janelas e cortinas. É, por sinal, a maior de nossas inúmeras picuinhas. Uma vez por dia, teimosa como um calendário, tia Esperança entra aqui, procurando obscurecer a última brecha de luminosidade em sua casa. Sempre à toa. Logo que ela sai, desfaço cada detalhe de sua obra. A velha fica uma arara. Lança-me olhares criminosos. No dia seguinte, insiste com seu ritual improdutivo.

Só vencerá me matando. Deitei-me. Não tinha a menor partícula de sono. Um vidro de soníferos não resolveria insônia tão grande. A atitude de desabar na cama expressava uma total ausência de qualquer alternativa. Fui incapaz de conter a aflição. Soquei o criado-mudo. O único efeito foi uma dor aguda no pulso esquerdo.

Já enfrentei períodos menos angustiantes desde ver minha vida transformada em um marasmo interminável. Antes, ainda sentia ânimo para perturbar tia Esperança, aborrecer-lhe as manias de velha, não dar tréguas à sua ranhetice. Hoje, nem isso. Sinto tudo perdido, não sairei desta cama nunca mais. Estou destinada a morrer velha, putrefata, desdentada. Feito tia Esperança.

Refletida no espelho do armário, sou uma visão lamentável. Ao invés de imitar uma jovem radiante e bela, minha imagem zomba de mim. Onde estariam os cabelos, postam-se enormes teias de aranha. Na posição que os seios deveriam ocupar, dois deformados pedaços de carne se alinham, murchos, apodrecidos.

Pulgas. Nada disso. Espelho nenhum reflete mentiras. É mesmo um corpo jovem a me encarar. Só estou arruinada por dentro. Essa outra criatura, bonita e vigorosa, deixou de fazer parte de mim, foi aprisionada pelo espelho. Dominada por um espírito mórbido, eu me aposso da sua energia, sugo-lhe os sentimentos, as sensações, os sorrisos.

Titia morreu há anos e me usa para sobreviver através dos tempos. Não sou dona de meus atos. Não passo de um robô às suas ordens, condenado a copiar seu comportamento esquizofrênico.

O ódio teve outro de seus picos.

- CADELA PODRE!!!

Berro descabido, pra ninguém. Os únicos seres humanos capazes de ouvir e entender minha voz esconderam-se a dezenas de quilômetros. Dormem a sono solto.

É engraçado. Ciente da existência de outras pessoas, fora deste mundo minúsculo onde me encarceraram, sequer imagino suas atividades, diversões, maneiras de empregar o tempo. Mas achei uma forma singela de solucionar o problema. Se não posso descobrir como se distraem, admito estarem sempre dormindo e pronto. Não há mais motivo para pensar no assunto.

Lembro-me da primeira vez em que tia Esperança me levou às compras. Passara mais de um ano na mansão, forçada a conversar com formigas e discutir com baratas. Louca pra sair, eu pulava de um lado pra outro, parecendo uma rãzinha excitada.

Tia Esperança me deu um puxão de orelha e me mandou ficar quieta. Monstra. Fazer isso a uma criança...

- Não tem nada não - eu disse, levantando-me e encarando a absurda figura do espelho. - Noventa e nove anos de um século podem bem ser do caçador. O outro é da caça.

Enlouquecerei. Quando se começa a dizer bobagens para um espelho, não há mais como deter o processo. Amanhã, talvez até daqui a pouco, andarei de cócoras, cacarejando, convicta de que sou uma galinha.

Preocupo-me bastante com essa possibilidade. A todo minuto, invento exercícios mentais, não sossego um instante, tamanho o medo de enlouquecer. Luto contra o isolamento lendo em voz alta os velhos livros de tia Esperança pelos corredores.

Nunca cumpro o objetivo da coisa. Livros e suas personagens moram numa realidade intocável, distante, à qual não me dão o menor acesso. A solidão apenas aumenta. O temor de enlouquecer também.

Certo, certo, não é necessário dizer. Ando mesmo com a cara amarrada e azeda de uns tempos pra cá. É uma das boas obras de titia. Não consigo olhar coisa alguma sem um profundo mau humor. O mundo, pelo menos o meu, desagrada-me dos pés à cabeça. Não pretendo disfarçar em nenhum sorriso besta minha insatisfação. Alegria pra quê? Não existe quem eu canse ou desgoste com minha casmurrice. Falta razão pra não viver emburrada.

A verdade é que, mesmo se outra pessoa morasse nesta casa, eu continuaria mal-humorada, em nada me importaria sua opinião. Não creio ainda possuir ânimo para ter sentimentos ou me incomodar com quem quer que seja.

Tia Esperança me levou o ódio, o amor, o sossego, qualquer emoção capaz de me tornar parecida comigo mesma. Estou alheia a este planeta, estou fora de mim, estou puta da vida.

Merda. Detesto palavrões.

Um dia tudo mudará. Farei as trouxas, sairei estrada afora, feito um chapeuzinho vermelho. Ha ha ha. Feito um chapeuzinho vermelho. Tolice.

Adianta ficar neste quarto? A paz não está nele e a guerra é em mim. Tia Esperança tomou conta da minha voz.

- A professora de violino conhece toda a obra de Mozart, sua porra. Você não faz a menor idéia do que seja Mozart, bostinha. Bostinha!

Não tenho resposta. Permaneço muda, ouvindo xingamentos sem sentido, pronunciados por meu lado que vendeu a alma à velha.

Escondida num canto, talvez chore. O espelho não se comove. Esparrama a dentadura em palavras decrépitas.

- Vera Cristina! A barra do vestido! Vera Cristina! Os modos! Vera Cristina! A franja! Vera Cristina! Vera puta! Vera babaca! Vera bosta!

Ah, Deus. Situaçãozinha infame. Aceitando desaforos de um espelho, enfurnada feito uma idiota. Mamãe e papai, soubessem o destino da Cristininha deles, voltariam dos mortos pra me salvar.

Fazer o quê? Não podem mesmo ressuscitar, não me ajudam em nada. São estúpidos como todos os mortos. Tenho horror a mortos.

Se alguma vez cruzar com um deles, sou capaz de perder o controle. A fúria me sobe à cabeça, solto gritos estridentes, espanco-o até a vida. Covarde. Tivesse fibra, estaria aqui junto a mim, sofrendo meu tédio, chorando meus ressentimentos.

Ora, Cristina, basta de tanto resmungar. Grande drama o teu. Fosses algo que preste, não te deixarias transformar nessa coisa inútil, tão imóvel quanto um espantalho. Não há força nenhuma te prendendo ao teu lodo. Não foges dele porque não queres. Não que temas o mundo. Não.

Temes a ti mesma, safada.

Hum. Safada. Começo a me habituar aos adjetivos caquéticos de tia Esperança.

É uma verdadeira lavagem cerebral. São tantos os xingamentos de titia que ainda termino meus dias "perdida", como se diz, vendendo o corpo em vielas transversais, repletas de esquinas e prédios imponentes.

Idéia descabelada. Eu, uma prostituta. Prostituta não. Puta. Recordo-me de um livro perdido entre os trastes da velha: "A Rua das Mundanas".

Lugar estranho, essa Rua das Mundanas. Os edifícios enormes, as colinas subindo, subindo, tenho certeza de que terminavam nos céus.

Bobagem. O maldito cimento colado a meus pés não me permite sonhos bons nem ruins. Não me preocupo em ser pudica, em não me imaginar prostituta, em sonhar apenas de forma inocente, sem pecado, sem indecência. É inútil.

Deram-me sonho nenhum. Pornográficos, divinos, malucos, angelicais, não reúno vida própria suficiente nem disposição para sonhar. Sou feita de pedra. Jamais me veria bandida ou mocinha de autores melosos. Só me entendo concreta, só me vejo de carne e osso. Vera Cristina com os pés presos à terra, perseguida por espelhos, amaldiçoada por fantasmas, com vontade de chorar.

Droga. Não quero chorar. Negócio de chorar. Coisa de criança. Eu não. Choro pouco, nunca, mal e porcamente.

Sinto náuseas. Fito este espelho estático, toco as mãos nestas pernas paralisadas, tudo a mesma sensação de perplexidade, prisão, desconforto.

É um pesadelo. Um toque de campanhia distante. O ruído se aprofunda. Parece preencher o quarto. A alma do outro mundo se desespera com o desprezo vindo da casa. Insiste. O som agudo torna-se contínuo.

Abro os olhos. O barulho não cessa. Pesadelo coisa nenhuma. Alguém de carne e osso resolveu azucrinar meu juízo.

E não me dará trégua. Enquanto a balbúrdia cresce, minha imobilidade aumenta. Tia Esperança não atenderá à porta. Cachorra. Se tentar, morre no meio do caminho, vitimada pelo esforço.

Eu mesma tenho de ir. Senão, vão continuar apertando o botão dessa campanhia desgraçada até o fim dos tempos.

Difícil é levantar. De pé, estarei diante da porta em menos de dez segundos.

Deplorável. Aos vinte e dois anos, incapaz de me erguer e abrir uma porta. Muito bem, dona Cristina, excelente.

Começava a ensurdecer quando saí do chão, com as pernas totalmente trêmulas. Não liguei e deixei de besteira. Palhaçada. Sou muito grandinha pra essa espécie de tolice.

Na sala, deparei com a poltrona onde tia Esperança ainda jazia. A velha dormia a sono solto, boca aberta feito fosse de sapo. O escândalo do misterioso visitante ou uma britadeira, ambos fracassariam em acordá-la.

Eu a sacudi.

- Acorda, tia, vai ver é a moça de quem a senhora falou.

Tia Esperança mexeu os olhos e a boca ao mesmo tempo.

- Que foi, sua merda? Isso são modos? Já lhe dei o direito de me acordar?

- Calma, tia. Assim vem outro ataque.

- Que parque, menina? Quero dormir, não dá pra reparar não?

Era mesmo inevitável: a velha entrou em mais um de seus angustiantes acessos de asma. Não desperdicei meu tempo socorrendo a praga e segui até a porta.

Ao abri-la, a mulher que durante os últimos quinze minutos infernizara meus ouvidos permanecia com as mãos sobre o botão da campanhia e se espantou ao me ver.

- Me desculpa - retratou-se. - Pensei que Dona Esperança morasse sozinha... Como ela é meio surda...

- Sim, sim, entra - interrompi, impaciente.

Ela entrou e ficou alguns segundos parada, completamente muda. Fui rude.

- Bem, tô esperando. Você não vai me dizer o que veio fazer aqui?

- Dona Esperança não a avisou?

- Só me disse que alguém viria. Aliás, isso já é muito. Há muito tempo que ela não consegue falar nada que tenha alguma coisa a ver com a realidade.

A garota virou o rosto no sentido do meu. Deixou parte dos cabelos lhe encobrirem a face direita e depois os afastou com a ponta dos dedos.

- Sua parenta?

- Tia-avó.

Tentando diminuir o constrangimento, acomodei-a no sofá. Tia Esperança, livre da crise que a acometera, continuava na poltrona, voltada para lado oposto ao nosso. Sequer desconfiava da chegada de sua "moça", que cruzou bonitas pernas, postas à mostra por uma saia minúscula, e recomeçou a falar.

- Meu nome é Virgínia - informou.

Olhou para o armário da sala. Em tom manso, abraçava as sílabas com intimidade e carinho.

- Sua tia esteve na cidade há poucos dias e me contratou como enfermeira.

Não evitei um sorriso.

- Enfermeira? - perguntei, sem disfarçar a ironia.

Ela se aborreceu. Gesticulava ao se defender.

- Enfermeira, sim. Diplomada faz dois meses.

- Calma, menina, perdão. Não te chamei de vigarista.

Virgínia se aquietou.

- Eu é que peço desculpas. As pessoas não costumam acreditar em profissionais que acabaram de se formar. Isso me deixa meio nervosa - disse, ondulando a voz.

Os dois rubis guardados abaixo de sua testa mexeram-se mais uma vez na minha direção. Impossível não me fascinar pelo ar misterioso e retraído deles.

- É o seu primeiro emprego?

- Primeiro? - hesitou. - É. De uma certa forma...

Seguiu-se um sorriso inacreditável. Belisquei meu braço. Doeu. Era tudo verdade, eu não estava sonhando.

Fiquei embaraçada. Nesses anos todos, foram tão poucos os contatos com outras pessoas que eu tinha razões de sobra para não saber mais o que dizer. Esperei que Virgínia tomasse a iniciativa de reiniciar o diálogo.

A enfermeirinha não negou fogo. Em pouco tempo voltei a ouvir sua voz suave.

- É você, a garotinha? - perguntou, apontando o enorme retrato de família acima da arca.

Contente de ser reconhecida, assenti com a cabeça. Sempre achei difícil que identificassem a mim naquele serzinho luminoso.

- Entre meus pais - completei, logo após.

Virgínia fez nova pergunta, aumentando a doçura de seus lábios. Não era uma voz, era um acalanto.

- Falecidos?

Eu não conseguia entristecer, ouvindo melodia tão pura.

- Há mais de dez anos.

- Sinto muito.

Descruzamos as pernas ao mesmo tempo. Fiquei desconexa.

- Com um rostinho como esse, precisa sentir muito não.

Virgínia ergueu as sobrancelhas.

- Hum?

Levantei-me de sopetão.

- Nada não. Vem comigo. Vou te exibir pra tua patroa.

- É? Onde ela está?

- No meio de nós, amém. Sentada naquela poltrona.

- Bem escondidinha, não?

- Pirraça dela. A poltrona não pode virar pro sofá. Tia Esperança diz que é mau presságio.

- Cacoete da idade.

- Cacoete? Conversa! Maluquice mesmo. Da grossa.

Conduzi Virgínia para perto de tia Esperança. A velha voltara a dormir, com a boca mais aberta que antes. Deus. Passaria uma bala de canhão em tamanha cratera.

- Acorda, tia, acorda!

- Que foi, sua...

O aborto no palavrão foi provocado pela visão de Virgínia. Surpreendeu-se a ponto de fechar os lábios. Abriu-os apenas para exclamar:

- A moça!

Virgínia curvou-se para cumprimentá-la.

- Eu mesma, dona Esperança. Pronta pra trabalhar.

A encantadora velha, num de seus gestos bruscos, reagiu com um tapa na mão oferecida por Virgínia.

- Que porra nenhuma! Não preciso de você não, viu? Nem de ninguém. Sei muito bem me virar sozinha!

Virgínia não entendeu.

- Mas, dona Esperança, a senhora...

- Voltei atrás! Essa merda de contratar a bosta de uma enfermeira deve ter sido idéia daquela puta ali! - titia gritou, apontando para mim.

- Dona Esperança, eu...

Minha adorável tia-avó estava novamente fora de si.

- É o cacete que preciso de você! Vá pra puta que pariu! Pro cu dos infernos! - esbravejou, entrando em um de seus costumeiros acessos de tosse.

Demonstrando capacidade para agir em tais situações, a linda enfermeira tomou conta da cena. Foi um dos menos demorados ataques asmáticos de titia: com muita habilidade, Virgínia socorreu a velha, provocando-lhe uma raríssima caricatura de sorriso. Sua tranqüilidade me contagiou de tal forma que fui levada a cometer uma imprudência:

- Não precisa mesmo, tia?

Consegui fazer com que desmoronasse por inteiro o brilhante resultado obtido pela enfermeirinha. Tia Esperança perdigotou com um ódio profundo, vomitou incontáveis e intraduzíveis expressões de baixo calão e afundou em mais uma crise.

Virgínia não se perturbou. Tornou a acudir de imediato a megera. Com o mesmo sangue frio de antes, aliviou-lhe o tormento.

Quando a velha se recuperou, eu e Virgínia colocamo-nos em absoluto silêncio e imobilidade. Eu pra não cair na asneira de poucos minutos atrás, ela aguardando que destino lhe seria dado. Seus olhos verdes e agitados deixavam-na ainda mais divina e gelavam minha espinha.

- Seu quarto é o primeiro ao lado do meu, menino. Essa porra aí lhe mostra qual - a bruxa falou, com sua mania maldita de apontar o dedo enrugado na minha direção.

- Maravilha!!! - comemorei.

Tia Esperança me fitou.

- Que que tem a pilha, sua merda?

Pela primeira vez em tantas caretas de titia, eu apenas senti vontade de rir.

- Vem, Virgínia, te levo pro teu quarto.

A velha ainda me encarava com raiva. Morra. Eu não dava mais importância a ela. Só conseguia me lembrar de Virgínia. Enquanto subíamos a escada, a enfermeira, embora caminhando a meu lado, parecia estar sempre à minha frente, olhando-me com seus olhos muito próximos do infinito.

O quarto reservado para Virgínia não tinha uso há anos. Quando abrimos a porta, toda a poeira do planeta disparou ao nosso encontro. Entre diversos pigarros, pedi:

- Espera um pouquinho. Vou ver se acho alguma coisa pra pôr essa bagunça em ordem.

A enfermeirinha concordou com um movimento de cabeça. Daí a menos de dois minutos, já estávamos de volta ao quarto, munidas do arsenal que seria necessário àquela guerra. A sujeirada só se rendeu após muita resistência, deixando-nos exaustas e imundas.

- Meu Deus! Agora, quem precisa de limpeza somos nós! - Virgínia admitiu, divertindo-se com o estado em que se encontrava.

Eu continuava inteiramente abobalhada.

- Você se incomoda de tomar banho junto comigo? - arrisquei.

A resposta demorou intermináveis segundos.

- Não. Algum motivo especial pra isso?

- Absurdo, né? Esse tamanho de casa, e um único chuveiro!

Virgínia me olhou em silêncio.

- Bem, então...

Fui ligeira.

- Então, ao banho! - chamei, quase gritando, aos pulos, unindo numa só as três palavras.

Tudo consumiu fração de segundos. Peguei Virgínia pelo braço, levei-a ao banheiro, tirei a roupa, assisti, já toda molhada, Virgínia se despindo, Virgínia nua, eu cada vez mais encharcada...

- Pode me passar o sabão?

Ela se colocou sob a ducha. Tão próxima de mim quanto os quatro cavaleiros estarão do apocalipse. Meus seios roçavam seus braços e retalhavam-me as idéias. Canalhas. Tivessem pena de mim, viravam-se de lado, desprezavam Virgínia, desfaziam o formigamento descontrolado que não parava de sufocar o resto do corpo.

Os cretinos permaneceram no lugar. Cada gesto de Virgínia aproximava-nos mais uma da outra. A um dado momento, ela se colocou à minha frente. Os bicos de seus seios e os dos meus encaixaram-se com absoluta justeza. Quase me enlouqueceram. Ouvi a voz da enfermeirinha ressoar borbulhante, misturada a milhões de obscenas gotas d água:

- Quer que eu te ensaboe?

- Por quê?

- Não é por isso que você tá aí parada?

Minha voz tremia tanto quanto eu.

- Não sei... Quem sabe?

Virgínia não esperou que minhas considerações hesitantes terminassem e passou a agir. Quando o sabão se esgotava, suas mãos entravam em contato direto com minha pele e me entregavam a um torturante paraíso. Sádica e minuciosa, ela demorou uma eternidade para me ensaboar todo o corpo.

Eu não conseguia controlar ou explicar minhas sensações. Uma ânsia de engolir Virgínia em beijos confundia-se com um torpor invencível. Tive impressão de que não era Virgínia quem estava desligando o chuveiro. As coisas haviam criado inteira independência de nossos gestos. O chuveiro desligou-se sozinho. Virgínia me excitava sem influência de sua vontade. Meus dedos me masturbavam sem meu comando.

Estávamos entregues à vontade soberana da Mãe-Natureza. Nem por isso Virgínia deu atenção aos meus gestos. Saiu do boxe como se nada houvesse acontecido.

Jogando os cabelos para o alto e secando o corpo, falava sem muita ênfase.

- Sabe, até agora você não me disse seu nome.

Tirei as mãos de onde nunca deveriam ter estado, antes de socar a parede e responder:

- Cristina.

- Bonito nome - elogiou, estendendo a toalha com que se enxugara às minhas mãos.

Aceitei a toalha e também saí do boxe. Virgínia acariciou meus mamilos.

- Não só o nome. Você é uma garota danada de bonita.

Seus dedos subiram para meu rosto.

- Não tanto quanto você - retruquei, ao mesmo tempo em que envolvia com meus braços sua cintura.

Ela não reagiu durante algum tempo. Abrupta, desvencilhou-se e perguntou:

- Aqui tem um roupão de banho ou coisa parecida?

Eu era um enorme balão furado.

- Dentro do armário. Pode escolher.

Virgínia vestiu um dos roupões.

- Hora de trabalhar. Você me espera no seu quarto?

Recolheu suas roupas e saiu do banheiro sem me dizer nada. Fiquei só. Desolada como uma órfã.

Sentimentos de todas as origens e formas aprontaram uma salada na minha mente, um redemoinho sem fim. Fiquei completamente zonza.

Bisteca. Ao inferno com tia Esperança, ao capeta com Virgínia, ao diabo comigo. Queria mesmo é que todos morressem, desaparecessem. No meu quarto, secaria cabelos e desejos, deitaria na cama feito a bela adormecida, certa de que príncipe encantado nenhum viria me apoquentar.

Mas não consegui dormir. Não o faria nem se levasse marteladas na cabeça. A insônia baixou muito mais forte e definitiva. O único sono de que me sentia capaz era o eterno.

Em pouco tempo reconheci a inutilidade de continuar na cama. Levantei-me, acendi a luz, expus meu corpo nu ao olhar crítico do espelho.

Os cabelos claros e compridos, encobrindo os seios, pareceram-me bonitos como nunca. Os olhos, com uma vivacidade incrível, espantavam tia Esperança da minha imagem. Eu nunca havia sentido um comichão tão gostoso.

Vera Cristina, você não é nada, nada má. Batem à porta do seu quarto, há de ser Virgínia. Não lhe resta senão abrir a porta e deixar o Prazer entrar.

Era a Alegria quem me falava, com uma voz de veludo, deliciosa, suave, exata.

- Missão cumprida. Levei sua tia pra cama.

Eu a abracei com os olhos e respondi exalando sensualidade:

- Não deve ter sido fácil.

Virgínia aproximou a boca do meu rosto e lambeu-me as orelhas com lentidão e perícia.

- Sempre tem jeito pra tudo - disse.

Coloquei seus lábios na direção dos meus e preparei-me para beijá-los. Ela abriu a boca, fez um movimento leve com a língua, pondo-a para fora. Estava esperando por mim.

Eu não esperava por ninguém, o que tornou a decepção maior e mais enlouquecedora. Um grito de tia Esperança afastou dos meus o rosto e o corpo de Virgínia, fechou a porta, tornou a apagar a luz, jogou-me no inferno de minhas raivas, provocou inúmeras simulações de punhaladas na asquerosa parenta.

Deitada de costas, cobrindo o rosto com o travesseiro a ponto de quase me sufocar, ouvi a porta abrir-se outra vez, enquanto passos demorados traziam Virgínia de volta para minha cama.

A enfermeirinha deitou-se, mãos nos meus cabelos, beijando-me costas, nuca, ombros. Falava próxima ao meu ouvido. Ao mesmo tempo, sua língua me arrepiava o corpo inteiro.

- Você mora com sua tia desde que seus pais morreram?

Eu apenas gemia. Ia me virar para abraçá-la, beijá-la, saborear cada pedaço daquela obra de um artista sobrenatural. Ela foi mais rápida.

Num gesto súbito, levantou-se da cama e caminhou em direção à porta. Parou na saída do quarto e explicou:

- Tô muito cansadinha. Amanhã a gente termina, tá bom?

A fraca luz do corredor iluminava um semblante ao qual era impossível negar qualquer vontade. Concordei através do silêncio. Virgínia saiu do quarto e bateu a porta. Deixou-me encarando o escuro e afagando o vazio.

Tive impressão de que se passaram horas antes de chegar o sono. Seria melhor se houvesse continuado acordada. Um pesadelo se iniciou tão logo os olhos se dignaram a fechar.

Trancada num armário minúsculo, sem espaço para meu corpo, esmagada, diminuída, como um pedaço de borracha comprimido numa caixa irreal, ou o armário ou meu corpo, um dos dois se despedaçaria.

Do lado de fora, pessoas conversavam de modo ininteligível, indiferentes a meus pedidos de socorro. O esforço com que a voz saía minava a cada momento mais minha resistência. De apelos passei a gemidos, de gemidos a sussurros, dos sussurros à mudez.

Depois de várias tentativas frustradas de gritar, desisti e me entreguei àquela morte brutal. Eu morreria em pedaços, mas pelo menos morreria.

Ainda me conformava com esse inglório fim quando um estrondo pavoroso invadiu o quarto, penetrou nas paredes da casa e me devolveu à realidade.

Acordada, piscando para apagar o pesadelo, identifiquei a origem do ruído. Vinha do quarto de tia Esperança. Esquecida de que socorrer a repugnante velha não era mais responsabilidade minha, vesti uma camisola. Num gesto mecânico, encaminhei-me ao seu quarto.

Nos últimos dias, tinha se tornado freqüente esse escarcéu de titia no meio da noite. Mesmo sabendo que tudo não passava de manha da velha, eu nunca deixava de acordar e socorrê-la. É óbvio que essa reação se devia muito mais a um reflexo condicionado que a qualquer remota intenção de ajudá-la.

O que não faz grande diferença, porque, seja qual for a razão, o efeito é sempre o mesmo. A velha grita, estou no seu quarto. A velha se cala, volto a dormir. No próximo grito, o ciclo se repete e dura a noite toda.

Desta vez, contudo, a rotina se alterara. Quando cheguei ao quarto, Titia tinha o corpo coberto pelo lençol, a luz estava acesa e Virgínia de pé ao lado da cama.

Aproximei-me de tia Esperança e descobri seu rosto. A fisionomia contraída, não estivesse tão dura e estática, pareceria sofrer a pior das dores. Os olhos fechados apenas completavam um aspecto de sono intranqüilo e torturado.

Tornei a cobrir o rosto de titia e me voltei para Virgínia. A enfermeirinha falava compassadamente:

- O sofrimento dela terminou.

Saí do quarto em silêncio e fui sentar-me num dos degraus da escada. Virgínia veio atrás de mim e acomodou-se ao meu lado.

- E agora? - perguntei-lhe.

A quina de seus olhos piscou na minha direção.

- E agora o quê? - retrucou, com certo desânimo.

- E agora, Virgínia, você vai embora, fica?

Ela baixou o rosto.

- Não sei. Paciente não tenho mais. Como enfermeira...

Eu a encarei e interrompi suas palavras.

- Você não ficaria aqui como enfermeira.

Ela sorriu. Bem, não estou certa se sorriu. Deve ter sorrido. Ora, diacho, é claro, sorriu! Depois se levantou.

- Isso muda a situação, não é mesmo?

Foi para seu quarto. Antes de alcançá-lo, comunicou:

- De qualquer jeito, o que eu vou fazer, nesse minuto, é pegar umas coisas e ir à cidade.

Esperei que ela voltasse sem reagir. Ao vê-la no corredor, mala na mão, tentei saber:

- Essa é sua decisão? Você vai mesmo embora?

Agora, não tenho mais dúvidas: Virgínia sorriu.

- Claro que não, bobinha. Assim que providenciar o enterro volto pra cá. Juro.

- Você arruma condução?

- Passa um ônibus daqui a dez minutos.

Calamo-nos durante algum tempo.

- Te deixo na porta - eu disse, erguendo-me.

Virgínia tomou minha frente e desceu a escada. Segui a enfermeirinha de cabeça baixa.

Quando abri a porta, Virgínia pôs os dedos nos lábios, beijou-os e levou as mãos à minha boca para transmitir-lhe o beijo. Sua voz abusava da meiguice:

- Vê se me espera bem quietinha.

Saiu logo em seguida. Uma alegria indescritível me dominou. Virgínia, Virgínia... Já nos via grudadas, unidas, inseparáveis. Viveríamos bem longe deste mausoléu imbecil, numa casinha pequena, na cidade.

Tia Esperança que me desculpe. Desrespeitando sua memória, coloquei a poltrona pré-histórica de frente pro sofá. Estarei sentada aqui, pernas em cima da braçadeira, um de meus hábitos mais odiados pela extinta velha, quando Virgínia chegar. Sequer será necessário abrir-lhe a porta.

A porta será minha cúmplice. Abrirá espontaneamente para me trazer Virgínia. A solidão havia acabado e a felicidade se transformara em uma simples questão de tempo.
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