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Contos-->O Torcedor -- 12/11/2002 - 18:20 (Stênio Dias Ramos) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Já fazia algum tempo que eu não vinha a esta cidade,e já estava pensando em ficar.
Desde aquele fatídico dia que mudou a minha vida,jamais havia sequer cogitado a mínima possiblidade de pegar um ônibus em
que o letreiro mostrasse o destino para esta cidade em especial,mas como odeio carro e até hoje não pensei em aprender a
dirigir,não havia mesmo outra possiblidade de encarar esse fatídico destino de outra maneira e de outro local que não fosse
a rodoviária.
Ela continuava um elefante branco,comportava 3 ou 4 vezes o tamanho da cidade,era excessivamente vazia.Até hoje não entendi
essa obra.Não são tantos os que almejam um dia construir suas vidas ou investir seu rico dinheirinho aqui ou mesmo moradores
que gostem de ir para a capital comprar bugigangas,badulaques ou tranqueiras em geral.Aliás,quase nada ainda me atraía a este
lugar depois da minha formatura.Quase nada.Talvez...o time de futebol.
Lembro muito bem que quando saí daqui o time estava no auge.Chegava ás finais dos campeonatos da região,e trazia multidões de
toda a região para suas batalhas épicas contra esquadrões mais poderosos da capital.E a algazarra era realmente digna de um
clássico.O empurra-empurra,a disputa pelo melhor ângulo,as cotoveladas para pegar o último saco de amendoim,torrado de preferência,
a torcida pelo Davi contra Golias.Era o único momento em que realmente me sentia integrado a este lugar,já que não tinha muitos
colegas da cidade enquanto estudava.
O engraçado de ficar recordando tudo isso é o fato de que eu não sou nem um pouco saudosista,afinal o que aconteceu tinha de
ser do jeito que já foi,nada pode ser mudado ou trazido de volta.O problema é que volto pra cá com muitas incertezas sobre o que
aconteceu com algumas dessas coisas que deixei para trás,não sei se as coisas melhoraram,se pioraram...não assisto mais futebol como
antes,andava trabalhando demais no meu negócio próprio antes dele ser engolido pelos juros e impostos altos e esquecia,não de propósito,
de ligar para os poucos que ainda queriam manter contato comigo depois de tudo que nos aconteceu.Bom,pelo menos a rodoviária vejo que
não mudou nem um pouquinho...
Talvez deveria pensar:qual importância deveria dar a esse time de futebol depois de tanto tempo em que sequer buscava saber notícias
desse lugar?Na verdade,não sei bem ao certo...secretamente parecia estar querendo começar tudo de novo aqui.Afinal,sempre há um lugar
para alguém com desejo de mudança.Mas talvez só queira dessa vez mudar a mim mesmo e não o que está á minha volta.Ou nem mudar a mim,
só mesmo resgatar algo perdido...
Nesses devaneios sobre passado e futuro,vou ao ponto de ônibus para tentar conferir as poucas informações que tenho.Talvez seu endereço
ainda seja o mesmo,espero.Pergunto a uma senhora como chegar lá,visto que há muito tempo não botava os pés por ali:
- Por favor,senhora,sabe que ônibus eu pego para ir nesse endereço?
- Ih,num sei,não...óia, cê vai tê que pegá um ônibus pro terminal,lá ocê vai sabê mió.
Terminal? Bom,logo percebi que esta cidade já tinha incorporado um dos vícios da cidade grande.Nem preciso chegar lá pra saber.É um
lugar onde amontoam todos as linhas de coletivo da cidade para que o cidadão utilize do transporte público para ir a qualquer local da
cidade pagando apenas uma passagem.O problema é que,quando a esmola é demais,o santo desconfia.Se o governo na verdade quer facilitar a
vida do usuário,na verdade acaba por complicar mais obrigando o Dito Cujo a circular feito barata tonta pelo mesmo local várias vezes,
para cobrir TODA a área urbana,e até um pouco da rural,se você for azarado como eu fui.Bom,o resto não preciso nem contar...
Chegando,então,ao endereço,descubro que meu colega tinha se mudado.Pensei:"Ah,parece que as pessoas daqui estão gostando de novidade,ares
novos..." Por sorte,o novo dono me passou o novo endereço dele.Depois de refazer boa parte do percurso,cheguei afinal á casa dele.
Não me recordava muito bem o seu nome,mas isso nunca foi problema pra mim.É só levar um papo amistoso na estrada e aí pergunto seu nome sem
maiores constrangimentos,essa era a regra na cidade grande,pelo menos.Então nunca me preocupei em lembrar desse detalhe.Bati palmas,e meu antigo
colega então me atendeu:
- Oh,Fulano, cê tá bom?
- Ah,Siclano,mais ou menos,mas a gente vai levando... - dou-lhe um efusivo abraço pra relembrar alguma velha intimidade.
- Voltou com esse sotaque da capitar de novo?Lembra que ocê já tava arrastando os "r"? - Como se vê,ele é ainda mais saudosista que eu.
- Que é isso? Não demorei tanto assim pra me formar,não - solto um sorriso amarelo pra dizer,sem muita falsidade,só um pouco de desconforto,
mesmo.
E daí o papo rolou entre assuntos tais,como lembranças dos bons tempos,e blá,blá,blá.Como sempre,tentava desconversar falando que estava
um pouco cansado pra lembrar de tanta coisa.
Logo percebi que ele também se lembrava vagamente de mim,como uma memória distante.Aqui parecem sempre querer forçar uma intimidade que não
existe,como que pra dizer que "aqui tem mais calor humano".E se eu chegasse depois de tanto tempo e disesse:"Fulano,estou quebrado e preciso
de um dinheiro emprestado pra não falir de vez"?Essa era a verdade,mas ela nunca pode ser crua fora da televisão,as pessoas se chocam muito
facilmente.Ninguém pensa que é na dor que a gente realmente conhece o outro,mas é bem mais cômodo fugir disso (eu que o diga).Tudo parece regido
pelos preceitos da velha (e boa) teoria da "relação de interesses".Por isso fui logo aos assuntos que me interessavam:
- Siclano,estou seriamente pensando em me instalar aqui.Cansei um pouco daquele ar de cidade grande cheio de monóxido de carbono,e tal.Talvez
prefira acordar de manhã com esse aroma de fumaça de queimada o qual ainda me recordo bem.Mas,me diga,como a cidade mudou de lá pra cá?
- Ah,Fulano,mudou tudo pra pior...
Ôpa,se mudou pra pior,é sinal de que mudou!Melhor do que se continuasse tudo no mesmo marasmo de sempre.Comecei a ficar interessado no que
realmente piorou.
- ...por exemplo,sabe aquele time que a gente sempre ia ver nas finais do futebol? Ele caiu para a quarta divisão...
"Não pode ser",pensava,"como algo pode baixar tanto seu nível em tão pouco tempo?" Parece que me esqueci de todo o tempo que fiquei sem acompanhar
a lógica do futebol e voltei a ser o torcedor fanático que espera um milagre para sua vida,mesmo que através do time.Estarrecido,perguntei a ele
"Como assim?"
- Pois é,o presidente começou a vender todo mundo,o time foi se perdendo,caindo...e o pior é que ele achava que o problema não estava nele e
nem cogitava sair.Aí foi afundando junto do time...e com certeza tudo aqui está mais triste...
"Mais triste"...Hum,essa frase realmente confirmava o que eu queria saber.Parece que todo aquele orgulho foi mesmo para o beleléu,e que os ares
de toda a cidade tinham ficado mais pesados que os da fumaça de queimada,afinal,ela só ocorria numa determinada época,enquanto a melancolia toma-
va conta de todos por todo o ano.Por isso,não cogitei em chamá-lo ao testemunho:
- Precisamos ir á próxima partida!!
- Tudo bem,domingo estaremos lá.Até lá,pode ficar aqui,pra ir pensando onde pode ficar.
Não poderia zoar com a cara do coitado,afinal aquele time também fazia parte da MINHA vida.Mas a sensação de tentar reconstruir os "bons velhos
tempos" de repente me saltou aos olhos como uma motivação íntima para o resto da minha vida.No dia seguinte mesmo,procurei,e achei,uma casa próxima
ao estádio á venda.Nem me importei que ela ainda não estava mobiliada,afinal ainda não havia trazido minhas coisas da capital,e convidei Siclano para
se hospedar ali comigo,algo que ele obviamente rejeitou.
Mas,espere,como eu,que valorizo tão pouco um passado já doído,quero voltar a viver velhos tempos? Será que não estou me contradizendo? Será que não estou
me deixando levar por uma paixão? Nem quis me preocupar muito com essas questões,só pensava em duas frases que me vieram á cabeça daquele fatídico dia
ao final da minha jornada aqui:"Os que não se guiam pelo impulso não sabem realmente o querem" e "quem não diz o contrário de que acredita,não sabe refazer
o que foi desfeito." Nem sei muito bem ainda porquê essas frases reverberam tanto na minha cabeça ultimamente,e nem que relação teria com meus últimos atos,
desde a volta á esta cidade,quanto á vontade de me reintegrar.Talvez seja a vontade de reconstruir algo na minha vida,mesmo no fundo tendo a consciência
de que as coisas não serão de forma alguma da mesma maneira que antes,por mais que eu queira,se é que realmente quero.Ainda não sei.
Na hora certa,talvez,isso tudo irá se encaixar.Tem de haver uma lógica pra isso não sair da minha cabeça.Pode ser que sejam só velhos jargões,slogans de comercial
de creme dental,e esteja levando esses "pensamentos" muito a sério.Não sei,melhor parar por agora,já estou escrevendo abobrinhas(Ôpa,mais uma frase feita...).
E então,o domingo chegou.Do ônibus que nos levava ao estádio,podia se ver muitas casas,sim,mas que pareciam estar todas desocupadas.A cidade ficava deserta,
ninguém saía ás ruas.Percebi,por um instante,que aqueles filmes americanos de cidades fantasmas podiam,pelo menos por um momento,ter alguma coisa de realidade,
que não era uma mera paranóia da decadência.A linha de ferro,antes sempre cheia de gente indo e vindo para as cidades vizinhas em busca de passatempo,só guar-
dava alguns vagões de trens de carga estacionados,não via gente nas igrejas, nos cinemas,nos bares.
Ainda pensei,"Talvez o estádio seja um refúgio",afinal para onde todos haviam fugido?Do que ou de quem estavam se escondendo? Não iria saber as respostas
assim,tão rápido.Eu era um forasteiro que tentava entender essa lógica que definitivamente não era a minha.Mas ao chegarmos ao local,não via praticamente
ninguém.Fiquei chocado,e não conseguia sequer me manifestar.
Na verdade,fiquei a viagem toda sem dizer um "piu".Esse silêncio me incomodava.Parecia que forçavamos um silêncio,mas se começassemos a falar qualquer coisa,aí iríamos
forçar uma suposta intimidade.É uma sensação horrível.Nunca senti isso sendo anônimo na metrópole,porquê aqui teria de ser diferente?Melhor me preocupar com as
questões mais práticas.
Chegando ao guichê,via que o preço do ingresso era 10 vezes menor que o daquele jogo ao qual assistimos,aquele em que o time local quase chegou á final.Sem
querer,fui me animando:
- Bom,com o dinheiro que sobrou,dá pra comprar além do amendoim,batata frita,cachorro quente,churro,refrigerante...- Melhor seria ter ficado quieto...
Siclano parecia me xingar por dentro.Acho que esqueceu que futebol é diversão,talvez...ou que pensava que estava zoando com aquilo que ele
considerava mais importante.
Só sei que ele não sabia no que aquele time havia se transformado pra mim.De simples entretenimento, aquilo também me trouxe á memória,além da metáfora do
Davi contra Golias,e do sonho de ver esse confronto novamente realizado,as minhas vitórias e derrotas naquele lugar.Estava experimentando a sensação de que,
assim como eles teriam de se superar para voltarem ao auge,eu teria de talvez trazer á tona tudo o que podia do passado para reconstruir o meu futuro ali. Lá vou
Eu botando problema no mundo,de novo...Será que é tão difícil pra mim admitir que esse lugar só é assim,calmo,bucólico,exatamente porquê ninguém quer pensar em
ter um problema?Porquê eu tenho de procurar defeito em tudo?Melhor não me preocupar em "entender",melhor só tentar viver,talvez...
Aí,Siclano, o jogo começou...Meu Deus,que tristeza...pra começar,o adversário era um time de uma cidade do litoral tão pequena que nem sabia possuir um time profis-
sional.Era canelada pra cá,passe errado pra lá,latinha de cerveja voando no técnico,no bandeirinha...e Eu me segurando,enquanto Siclano se contorcia em
profunda cólera pelo destino de sua paixão.Mas,lembre-se,ainda estávamos em um silêncio sepulcral.Daí ocorreu o lance crucial da partida.Desesperadamente,o zagueiro do
time da cidade levou ao extremo o jargão "bola para o mato,que o jogo é de campeonato",mandando a bola da sua área direto para fora do estádio...aí,não deu pra segurar.
Dei uma gargalhada tão gostosa que fui rolando arquibancada abaixo.Juro que fazia tempo que não me sentia tão leve a ponto de me liberar assim.Todo aquele papo de "volta
dos bons tempos" foi para o espaço.Pra quê estar saudoso de algo que não quero sentir de novo na minha vida?Ainda mais com a sensação que me veio naquele instante!
Quando recobrei meu fôlego,voltei ao meu novo-velho colega Siclano,que resolveu rir de leve e dizer:
- Sabia que há tempos eu não me divertia tanto aqui? Eu nunca me senti tão leve num jogo de futebol.E nunca vi você rir tanto assim...
Só sei que mais reconfortante que isso,e ver que o placar,apesar de tudo,foi bem elástico a nosso favor,foi ver me pegar pelo ombro no fim do jogo e dizer:
- Bem vindo de volta!
Não precisei dizer mais nada.Havíamos experimentado uma intimidade que até então não se revelara.E sem muito esforço...
Fazia parte de algo novamente.Novamente finquei minhas raízes.Não me importava que a cidade parecia morta,que tudo o que era velho
parecia distante,sentia que todo o novo havia aberto suas portas para mim.Mesmo que aquelas frases tenham voltado a fazer sentido pra mim,é algo diferente do que
talvez elas queriam me dizer naquela época.Ali,junto áquele velho e decadente time que via tentar o milagre da sobrevivência diária agora como algo realmente
próximo.Se não sofria sozinho,agora digo que talvez tenha encontrado intimidade com alguma coisa.Na alegria e na tristeza.Como um casamento.
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