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Ensaios-->Casa-Grande & Senzala - Um Elogio da Escravidão? -- 21/01/2003 - 12:21 (Márcio Scheel) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A Escravidão em Gilberto Freyre: uma Análise Crítica.


O objetivo do ensaio que aqui segue é procurar discutir uma questão, tratando de um assunto que não é reader frindly: será que a concepção de escravo encontrada na obra Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, é válida até os dias de hoje diante de alguns outros autores que trataram fundamentalmente do assunto, levando em consideração a estrutura, a economia, a cultura, enfim, o sistema colonial como um todo? A obra de Gilberto Freyre sempre foi vista com certo receio pela crítica acadêmica especializada, principalmente Casa-Grande & Senzala, por conter muito mais de sociologia ou antropologia, do que fundamentos históricos mais precisos. Essa é a acusação feita pelos historiadores. Os sociólogos vão, ao contrário, acusa-lo de romancear a história colonial brasileira, em especial a do negro, já que o estilo de Freyre, característicos, acaba mesmo por se confundir com a escrita literária, menos científica e mais livre, embora, talvez, não menos determinante que os escritos ditos, científicos.
Gilberto Freyre vai mostrar em seu livro as influências culturais que formaram a sociedade e a consciência brasileiras ao longo dos séculos, analisando as principais culturas que contribuíram para a formação de nossas características mais marcantes. A organização social da cultura no Brasil se deu de acordo com as inter-relações entre africanos, árabes, culturas europeizantes, como a portuguesa, holandesa, francesa e espanhola, por exemplo, indígenas da América e, depois dos primeiros contatos, do mestiço. Valores religiosos, de costumes, estéticos, e todos aqueles que constituem o pano de fundo da Cultura, com m maiúsculo, brasileira assim como a conhecemos. Então Freyre comenta, por exemplo, a importância que teve o fato do escravo conservar a liberdade, nas festas, das formas e acessórios de sua mítica, de sua cultura fetichista e totêmica, aproximando-se da cultura branca, do senhor de escravo.
A cultura do indígena, com seus traços peculiares e suas formas de crença primitivas, também passaram a conviver com os traços da cultura negra e branca, determinando decisivamente uma forma de convívio que se estenderia para além das relações de dominação e chegaria, como demonstra Gilberto Freyre, aos quartos e à cama dos grandes senhores. Desse convívio cultural mais ou menos livre é que surge e se consagra o ideal de permissividade sempre associado ao caráter do brasileiro. E esse mesmo convívio determinou a organização social da cultura brasileira de forma decisiva: a liberdade no contato e na convivência, excetuada as relações senhoriais do latifundiário sobre a terra, os escravos e os indígenas, fez com que se delineasse a mistura de valores tão diversos que constituem a essência mais funda de nossa brasilidade.
Explicando a escravidão, por exemplo, Gilberto Freyre afirma que:

“se há hábito que faça o monge é o do escravo; e o africano foi muitas vezes obrigado a despir sua camisola de male para vir de tanga, nos negreiros imundos, da África para o Brasil. Para de tanga ou calça de estopa tornar-se carregador de “tigre”. A escravidão desenraizou o negro de seu meio social e de família, soltando-o entre gente estranha e muitas vezes hostil. Dentro de tal ambiente, no contato de forças tão dissolventes, seria absurdo esperar do escravo outro comportamento senão o imoral, de que tanto o acusam”.(V.2 Pág. 537)


Dessa forma, Freyre demonstra como a escravidão fez com que o negro se desvinculasse, sob muitos aspectos, de suas raízes mais fundas, mais permanentes, para se aculturar de acordo com as exigências e necessidades do escravocrata para quem, irremediavelmente, era obrigado a servir. A subserviência do negro à opressão do senhor chegou, com freqüência, as imposições de ordem sexual, não só econômicas ou sociais. Mas isso, de acordo com Freyre, nada tem a ver com a idéia falaciosa de que o negro era luxurioso ou permissivo, como alguns quiseram fazer acreditar. O autor chega mesmo a comentar o fato de que, nesse sentido, no civilizado o apetite sexual se excitava sem grandes provocações, ao contrário do negro, que precisava sempre de estímulos picantes, danças afrodisíacas, cultos fálicos.
Gilberto Freyre reconhece assim que não há escravidão sem depravação sexual, localizando esse fato na essência mesmo do regime, porque havia um interesse econômico do proprietário em favorecer a depravação, já que esta era uma forma de aumentar o número de crias e, por conseqüência, a mão-de-obra escrava responsável pela produção nas terras.
Mas Eduardo Etzel, em seu livro Escravidão negra e Branca, vai afirmar que:

“A escravidão tornou-se sinônimo de violência, pois a severidade do senhor era a chave do seu poder. Esta severidade foi institucionalizada pelas leis feitas pelos brancos que, negando ao escravo a condição de cidadão, deixaram à discrição do senhor os instrumentos para forçar e manter sua submissão ainda que com a hipócrita ressalva que recomendava moderação no seu uso. A resultante desta prerrogativa legal foi a adoção de toda sorte de instrumentos de correção, já bem conhecidos das masmorras européias da Idade Média e tão empregadas na antiga Roma.” (Etzel, pág. 31)

Essa perspectiva já nos faz reconsiderar um pouco as descrições feitas por Gilberto Freyre em sua obra máxima sobre a escravidão brasileira. Freyre, ao escolher o viés sexual para sua pesquisa, deixa de abordar esse outro modo de jugo do senhor contra o escravo: a dominação pela violência, adotando a agressão física indiscriminada como forma de manter o controle sobre as escravos, punindo-os de forma severa e cruel, maneira encontrado pelo senhor de afirmar-lhes essa espécie de poder constituído que esses mesmos donos do poder tinham sobre a vida de seus escravos. Os escravos, temerosos por suas vidas, infelizmente, entraram no jogo da agressão:

“A moeda corrente da escravidão em todos os tempos foi o medo da reação do ser humano dominado. O medo é inerente à natureza humana, e em face do receio da vingança do negro só a severidade, com aplicação de castigos corporais, pode manter o equilíbrio, tranqüilizar o senhor e ter o escravo obediente e passivo.
O branco, desde que adotou a escravidão como recurso econômico, não pode prescindir da violência para mantê-la. Tal fato, conhecido e reconhecido, não o exime da culpa pelo uso e abuso dessa mesma violência, mas é mister reconhecer que sem ela a escravidão não poderia subsistir. Fosse a severidade na disciplina dos escravos moderada, a escravidão teria sido uma pílula amarga mas de qualquer forma suportável. Mas temos que contar com as anomalias da natureza humana que existiram entre brancos e pretos, daí resultando os pontos de atrito e os pretextos para o desencadeamento da crueldade nas relações entre o forte e o fraco.” (Etzel, pág. 31-32)

O mais interessante, na posição de Eduardo Etzel, diz respeito ao fato de ele lançar mão de uma certa justiça ao afirmar que a maioria dos escravos não estavam submetidos às sevícias de seus senhores ou eram tratados com algum respeito, o suficiente para não se verem subjugados pela força física, pela agressão, pela violência cruel das torturas impostas como castigos por desobediência, fugas, conflitos, desrespeito as ordens dos senhores, ou por maldade pura e simplesmente.
É claro que Eduardo Etzel não procura justificar a escravidão brasileira porque isso seria o mesmo que procurar justificar o injustificável. O fato é que a escravidão é uma chaga moral na história da humanidade e, particularmente, em nossa história. Não há justificativas ou explicações para o cerceamento da liberdade individual, para a negociação do homem pelo homem, para a crueldade ou o simples cativeiro, para a brutalidade com que um ser humano subjuga outro, seja pela agressão e pela violência física, incutindo na vítima a lembrança exasperante da dor, seja pela humilhação e pela tortura psicológicas de lançar o cativo a uma realidade desumana e degradante. Assim, se a escravidão não era apenas a lascívia sexual que descreve Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala, o universo de permissividade e luxúria em que o negro terminava na alcova do senhor, também não foi simplesmente a brutalidade gratuita na qual muitos acreditam. Esse é o ponto de vista de Eduardo Etzel:

“Antonil, em 1711, cita o ‘provérbio’ que diz: ‘Que o Brasil é o Inferno dos Negros, o Purgatório dos Brancos e o Paraíso dos Mulatos e Mulatas’. Há verdades parciais nesta afirmativa pois o negro, em seu ‘inferno’, viveu também uma existência com as amenidades que lhe correspondiam em sua condição de escravo. Não forma só gemidos e lágrimas, e aí estão até hoje as congadas, atestando suas alegrias na dança e nas festas do sincretismo religioso. Os brancos, por sua vez, purgaram suas culpas, por certo, tanto como morrem de enfarte pelo stress na luta pela riqueza capitalista; nem por isso os capitães de indústria e os burgueses ricos vivem num purgatório, a penar por suas riquezas; pelo contrário, há muita amenidade e felicidade, apesar das agruras do giro do dinheiro. O paraíso dos mulatos também encontrou sua contra-partida na multidão de mestiços que vegetavam na miséria do dia a dia, sem obrigações mas também sem ganhos, exercendo profissões de biscate em plena vida vegetativa – os famosos ‘vadios’ do Brasil colônia. Toda medalha tem seu reverso, mas na estigmatização da escravatura omite-se o que é óbvio, o reverso.” (Etzel, pág. 35-36)

Não se trata de minimizar a importância ou os efeitos cruéis da escravidão sobre a sociedade brasileira, não é isso que importa a Eduardo Etzel, mas simplesmente demonstrar que há alguns enganos, exageros e excessos na historiografia a respeito da escravidão no Brasil. Enganos, exageros e excessos que podem provocar graves distorções históricas, o que não quer dizer que se deva fechar os olhos para a mazela, para a chaga moral que foi a escravidão no Brasil e em toda a América Latina.
O fato que não pode ser desconsiderado é o de que o escravo foi o motor econômico do Brasil colônia e Império, já que da exploração da mão-de-obra negra, não-remunerada, foi possível o acúmulo de uma grande quantia de capitais nas mãos de uma minoria que decidia os destinos políticos e sociais da Brasil do século XIX, bem como os destinos dos próprios negros escravizados, daí a legalidade quase explícita da sevícia e dos castigos mais cruéis. Os donos do poder são também os donos dos destinos, responsáveis pela vida e pela morte, pela criação dos primeiros abismos sociais no país. Nesse sentido que Darcy Ribeiro afirma em seu livro O Processo Civilizatório:

“A presença de escravos tomados a outros povos e despersonalizados para serem possuídos como instrumentos de produção afeta profundamente todo o modo de vida dessas sociedades, que deixam de ser igualitárias, ao mesmo tempo que se transformam em comunidades multiétnicas caracterizadas pela polarização de escravos em contraposição a senhores e em competição com os trabalhadores livres.
Das primitivas comunidades agrícolas igualitárias e das hordas pastoris, fundadas ambas na propriedade coletiva da terra e dos rebanhos e na garantia a cada unidade familiar dos produtos do seu trabalho, passa-se, assim, progressivamente, a sociedades de classe, assentadas na propriedade privada ou em outras formas de apropriação e acumulação do produto do trabalho social. Umas e outras tornam-se cada vez menos solidárias internamente, porque as relações entre pessoas, antes reguladas pelo parentesco, começam a ser condicionadas por considerações de ordem econômica.” (Ribeiro, pág. 51)

Darcy Ribeiro trata, em seu livro, da questão do desenvolvimento da civilização principalmente como essa é entendida em todo o mundo ocidental. Mas a questão da escravidão, colocada em sua síntese mais precisa é bastante ilustrativa em relação ao que discutimos até aqui. O escravo é o instrumento de produção durante toda a história da colônia e do Império até fins do segundo reinado. A abolição só veio mesmo criar uma sociedade altamente estratificada em que o negro, liberto, não era menos violado em seus direitos do que quando habitante da senzala. Nesse sentido, a alforria foi só uma nova forma de violência, talvez mais cruel, da que era posta em prática nas grandes fazendas, nas grandes propriedades do país.
A marginalização do negro pelo processo de abolição também foi uma crueldade injustificável, porque as leis garantiram-lhes a liberdade mas não possibilitaram a inserção do negro na vida social da República, anos mais tarde, e este acabou condenado a uma espécie de ostracismo dentro de sua própria realidade, relegado que ficou à condições de vida e subsistência sub-humanas. A miséria acabou sendo a única vitória real trazida com um processo de libertação dado aos tropeços, sem a inclusão e a participação gradativa do negro na nova sociedade da qual, teoricamente, passava a fazer parte.
Curioso é pensar que a escravidão no Brasil, apesar desse abismo de desigualdades que gerou, não criou animosidades sociais como as vistas no Estados Unidos, por exemplo, em que a segregação, após a libertação dos escravos, ganhou contornos institucionais. Assim, ainda em fins do século XIX, Joaquim Nabuco afirmaria em sua principal obra O Abolicionismo:

“A escravidão, por felicidade nossa, não azedou nunca a alma do escravo contra o senhor – falando coletivamente – nem criou entre as duas raças o ódio recíproco que existe naturalmente entre os opressores e oprimidos. Por esse motivo, o contato entre elas foi sempre isento de asperezas, fora da escravidão, e o homem de cor achou todas as avenidas abertas diante de si.” (Nabuco, pág. 16)

Sob este aspecto, Joaquim Nabuco tem razão, não se criaram conflitos generalizados e coletivos entre negros e brancos, não se viu manifestações públicas em que negros exigiam seus direitos e brancos reivindicavam lugares separadas nos coletivos, nas escolas, nas praças públicas e etc. Não houve a institucionalização do racismo em movimentos brancos organizados ou sob a forma de leis e princípios impostos pelo governo como forma de manter a maioria branca em estado de graça, como se deu nos Estados Unidos. O que não quer dizer, como já afirmamos, que o negro não tenha se marginalizado com o processo de abolição.
Dos males, o menor: abolir o escravismo foi uma forma de se libertar, não de todo, do ônus moral que a escravidão impunha a toda a sociedade, e não apenas aos senhores de terra. Era impossível administrar forças tão antagônicas como as exigências cada vez mais cruéis dos senhores de escravo e a insatisfação generalizada que ia se espalhando e contaminando todo o ambiente da senzala. E havia ainda a necessidade imposta pela classe burguesa e pelo capitalismo em formação que se liberasse a força de trabalho de modo que ela pudesse consumir os bens e os produtos, fossem importados das metrópoles européias, fossem produzidos, agora, internamente. Principiam então os grandes conflitos de trabalho, motivados por insatisfações surgidas de todos os lados da ordem social brasileira, conflitos estes que vão alterar profundamente essa mesma ordem social a partir da liberação da força de trabalho e da organização das novas formas de produção econômicas.
A principal crítica feita à obra de Gilberto Freyre vem de Octávio Ianini, em seu livro Escravidão e Racismo, em que ele acusa Freyre de uma postura que deixa permear seus estudo de ideologias, o que acaba por lhe conferir uma certa a-historicidade:

“A decadência da perspectiva histórica, ou mesmo um puro e simples a-historicismo, parece ser um fenômeno cada vez mais generalizado nas ciências sociais. E o paradoxo é que a própria historiografia não tem escapado a esse processo de a-historização. É o que revelam trabalhos como Time on the Crosso, de Fogel e Engerman, sobre a economia da escravidão no sul dos Estados Unidos, e Casa-Grande & Senzala, de Giberto Freyre, sobre a história social da escravatura no Brasil. A economia e a sociologia já caminharam bastante nesse abandono da perspectiva histórica. Esse é um processo antigo, que se revela em praticamente todas as teorias propostas para negar ou corrigir a interpretação marxista do capitalismo; e das relações entre escravatura nas Américas e Antilhas com o capitalismo. As obras de Freyre e Fogel-Engerman inscrevem-se nesse debate.” (Ianini, pág. 119)

A crítica de Ianini diz respeito ao fato de que Freyre preocupou-se muito mais com a perspectiva do indivíduo, e escreveu de acordo com a classe a que pertencia, a dos homens brancos, que exploraram a escravidão ao longo dos séculos e depois passaram a procurar justificativas para ela.

“Tenho a impressão de que na obra de Freyre sobre a escravatura há uma mescla de duas ilusões. Uma é a ilusão que lhe é dada pelo seu presente, pela perspectiva de classe dominante na qual ele se põe. Não é por acaso que o pensamento de Freyre está próximo, exprime ou alimenta a ideologia dos governantes no Brasil. Nessa hipótese, ele vai ao passado iluminado por categorias ideológicas de permeio às categorias sociológicas. Outra, é a ilusão que lhe é conferida pelas memórias, testamentos e testemunhos de membros da casta dos senhores brancos, relativamente ao negro, mulato, menino, mulher, efeminado e escravo. Os próprios relatos dos viajantes e cronistas retiveram e elaboraram (em inglês, francês e alemão) boa parte das ilusões, ou auto-representações, que os senhores da casa-grande e do sobrado lhes transmitiram de forma deliberada, ou no acaso dos repastos. Assim, na análise de Freyre parecem combinar-se duas ilusões. Ou melhor, em sua interpretação da escravatura está presente a ideologia dos senhores da época de Gilberto Freyre.” (Ianini, pág. 113)

Octávio Ianini não poupa críticas ao modelo de interpretação sociológica de que se vale Gilberto Freyre para analisar a ida social do Brasil colônia, em especial as questões que envolviam o negro e o escravo. Ianini não admite a metodologia sociológica de Freyre, que se orienta muito mais pela ideologia do que pela história na interpretação do sistema escravocrata brasileiro. Para Ianini é preciso considerar os conflitos, as descontinuidades, as rupturas e contradições que envolvem a história imanente dos fatos. É preciso considerar o processo como um todo, e não partir de individuações sempre perigosas para qualquer relato historiográfico.

“Em Freyre, o que se movimentam são as pessoas, nos limites e dimensões de um sociologismo psicologístico e culturalista, bastante sensível para o incidental humano sui generis, insólito, anedótico ou exótico. Aliás, o próprio Freyre encarrega-se de indicar os dois núcleos ideológicos da sua interpretação da sociedade escravocrata. Por um lado, o escravo é visto de forma sentimental, na perspectiva da casa-grande. Reconheceu que Casa-Grande & Senzala pudesse ser classificada de um trabalho negrófilo. Mas é uma interpretação compreensiva, sentimental, patriarcal, desde cima, do negro, escravo ou párvulo. Por outro lado, a escravatura é entendida como uma realidade supra-histórica. Ocorre que ele estava preocupado em formular uma interpretação do ‘ethos da gente brasileira’. Essa é, aliás, a preocupação principal de boa parte de toda a sua obra: encontrar o que seria o caráter nacional de uma sociedade que as classes dominantes sempre pensaram como mestiça. De fato, uma parte dos intelectuais da geração de Gilberto Freyre esteve muito preocupada com a mistura racial e os impedimentos, ou possibilidades, que a mistura racial pudesse criar para o pregresso burguês.” (Ianini, pág. 111)

Essa formação patriarcal não teria sido possível sem a ação organizadora da família, centro de onde se irradia as principais determinações de poder, seja ele político, econômico ou simplesmente cultural, centralizadora e tirânica no trato com a mão-de-obra escrava enquanto fonte exclusiva e decisiva para a produção e formação de renda, mas muitas vezes lasciva no trato pessoal, quebrando os limites da opressão sócio-econômica em favor da permissividade sexual que, inútil dizer, tinha uma componente de dominação e força que mal se disfarçavam.
Assim sendo, é preciso notar então que o título da obra – Casa-Grande e Senzala – nada representa em termos de dicotomia explícita, como querem alguns, já que esse “e” é uma conjunção aditiva que mais soma do que afasta ou distancia os dois termos, responsável por aproximar duas realidades teoricamente excludentes e contraditórias, mas que Gilberto Freyre, de forma consciente e precisa, compreendeu e estudou-as de modo a aproxima-las numa relação de interdependência até então impensada em um estudo desse tipo.
O problema maior na interpretação de Freyre parece mesmo ser essa perspectiva acentuadamente culturalista e psicologista como afirma Octávio Ianini. O indivíduo ganha destaque em detrimento da análise histórica mais profunda, das forças que geraram a escravidão e que fizeram com que ela, gradativamente, cedesse lugar ao trabalho livre no processo de formação do capitalismo brasileiro.

“Da mesma forma maneira, em Casa-Grande & Senzala, Sobrados e Mocambos e Ordem e Pregresso, a Gilberto Freyre escapa a dialética das relações externas e internas, nos desenvolvimentos da formação social escravista no Brasil. O seu sociologismo não capta a formação social capitalista que – ao logo do século XIX – surge, desenvolve-se e impõe-se à formação social escravista. Não apanha o processo de constituição e desenvolvimento de relações e formas capitalistas por dentro do escravismo, precisamente nos movimentos das suas relações internas e externas. Esse deve ser o motivo porque em Freyre não há uma interpretação da abolição. Ou melhor, ele transmite a impressão de que a escravatura vai se extinguindo por si, por suas virtualidades humanitárias e pela sua faculdade de generalização à miscigenação na sociedade brasileira.” (Ianini, pág. 123)

Por isso interessa tanto a Gilberto Freyre a questão sexual que envolveu escravos e senhores durante toda a vigência da escravatura no Brasil colonial. A permissividade que engendrou nossa raça miscigenada e que principiava na senzala para terminar em uma das alcovas da casa-grande.
Dessa forma, Freyre demonstra como a escravidão fez com que o negro se desvinculasse, sob muitos aspectos, de suas raízes mais fundas, mais permanentes, para se aculturar de acordo com as exigências e necessidades do escravocrata para quem, irremediavelmente, era obrigado a servir. A subserviência do negro à opressão do senhor chegou, com freqüência, as imposições de ordem sexual, não só econômicas ou sociais. Mas isso, de acordo com Freyre, nada tem a ver com a idéia falaciosa de que o negro era luxurioso ou permissivo, como alguns quiseram fazer acreditar. O autor chega mesmo a comentar o fato de que, nesse sentido, no civilizado o apetite sexual se excitava sem grandes provocações, ao contrário do negro, que precisava sempre de estímulos picantes, danças afrodisíacas, cultos fálicos.
Gilberto Freyre reconhece assim que não há escravidão sem depravação sexual, localizando esse fato na essência mesmo do regime, porque havia um interesse econômico do proprietário em favorecer a depravação, já que esta era uma forma de aumentar o número de crias e, por conseqüência, a mão-de-obra escrava responsável pela produção nas terras. As relações sociais, políticas, econômicas e culturais, responsáveis pela estruturação e dinâmica da sociedade brasileira se deram através da formação patriarcal do Brasil, que equacionou os problemas nacionais e procurou resolve-los segundo a ótica do pater famílias.
E sobre a extinção do regime escravista, Octávio Ianini conclui que:

“No Brasil, a escravatura não foi extinta porque se tornou improdutiva em si, mas sim em relação com outras formas de organização social e técnica das relações de produção emergentes no país e em expansão no âmbito do capitalismo mundial. Em nível lógico, o colapso final da formação social escravista (nos Estados Unidos e em outros países) seria o resultado do desenvolvimento de contradições político-econômicas configuradas nas seguintes categorias: escravidão e liberdade, escravo e mercadoria, cooperação e divisão social do trabalho, mais-valia absoluta e mais-valia relativa.” (Ianini. Pág. 126)

Produção latifundiária monocultural, trabalho escravo, vida familiar centralizadora e patriarcal, política de compadres, aristocracia cafeeira – esse o cenário de formação e organização da economia colonial brasileira. Aliás, esses fatores atendiam muito bem ao modo de produção colonial, em que a exploração sistemática da terra e da mão-de-obra escrava geravam lucros e excedente incalculáveis, mas que estava, cedo ou tarde, fadado à falência, porque insustentável, a longo prazo, uma economia agrária e escravista, principalmente depois do avanço da industrialização, das meios de transporte, das comunicações, das liberdades sociais advindas na esteira do liberalismo político e econômico, e do surgimento, no Brasil, de uma classe nova de comerciantes ricos, donos de grande capital, e disposto a repensar as relações de poder dentro de um contexto em que a mão-de-obra escrava sequer poderia servir à lógica de consumo que se instalava com o capitalismo incipiente que se formava no país.
A mão-obra-escrava foi, pelo mundo afora, sendo abolida gradativamente, a Revolução Americana e a Guerra Civil, por exemplo, tiveram suas razões, co como pano de fundo, no confronto entre as colônias e suas posições contraditórias com relação ao escravismo. O Brasil caminhou nessa mesma direção, mas os conflitos se davam entre os senhores e os escravos, que já não podiam suportar sozinhos o ônus do descaso e da opressão, tendo que ser mais ou menos coniventes com uma certa “exploração” sexual sem limites ou restrições, sofrendo ainda a culpa que o clero lhes atribuía na suposta “degradação moral” pela qual passava o país.
Esses conflitos de classe acabariam gerando seus excluídos, aqueles que não resistiriam à medição de forças entre uma aristocracia latifundiária e tradicional e uma burguesia comercial em processo de fortalecimento enquanto classe reconhecida, com seus direitos inalienáveis, gerados pelo próprio sistema capitalista. Os excluídos foram uma nação de negros libertos sem orientação ou condições mínimas de aceitação por parte dos descendentes das civilizações adiantadas que colonizaram o país, uma maioria de brancos europeus que, apesar de nascidos e criados na terra, ainda mantinham o mesmo comportamento de seus pais ou avós, os primeiros colonizadores. O indígena também engrossou o universo de excluídos dessa nova ordem social. O negro ficou sem o trabalho e, muitas vezes, sem as mínimas condições de sobrevivência que a vida na senzala ainda lhes garantia. O indígena, num processo de expropriação que já vinha desde o início da colonização, e que se acentuou em fins do século XIX, perdeu mais terras e, principalmente, seu lastro cultural em contato com o homem branco e urbanizado.
Assim, vimos em Joaquim Nabuco, ainda em fins do século passado, uma perspectiva da escravatura, do abolicionismo e das questões sócio-econômicas e culturais que envolviam a vida do negro da colônia, bem distinta já da perspectiva que assumiria Gilberto Freyre muitos anos depois. Eduardo Etzel tem uma forma particular de perceber a questão da escravatura e da barbárie cometida contra o negro durante a vigência da escravidão no Brasil que também não condiz em muito ou se coaduna com os ponto de vista de Freyre. Mas Octávio Ianini é, sem dúvidas, o crítico mais ferrenho dos métodos e formas de abordagem utilizadas por Gilberto Freyre, em que a dimensão histórica cede lugar a ideologia e a escravidão e o negro acabam sendo vistos com sentimentalismo, de forma romantizada, que acaba contribuindo para a criação de uma idéia falaciosa do que foi a escravatura em nosso país.
Por fim, é preciso salientar que, de um modo ou de outro, Gilberto Freyre acabou dando uma contribuição decisiva para os atuais estudos sobre o período colonial e, em especial, sobre o regime escravista que se definiu, durante anos, como o principal modelo de exploração da terra e do desenvolvimento econômico do Brasil colonial, possibilitando o assentamento das bases de nosso capitalismo moderno, antes da liberação das forças de produção e do advento das industrialização mais forte. Gilberto Freyre contribui nos mostrando a dimensão individual dos homens envolvidos direta ou indiretamente com a escravidão.





























Bibliografia Básica.

- Freyre, Gilberto. Casa-Grande e Senzala. Livraria José Olympio Editora: Rio de Janeiro, 1954. 8ª edição. Volume 1.

- _____________. Casa-Grande e Senzala. Livraria José Olympio Editora: Rio de Janeiro: 1954. 8ª edição. Volume 2.


- _____________. Seleta Para Jovens. Livraria José Olympio Editora e Instituto Nacional do Livro: Rio de Janeiro, 1941. 4ª edição.

- Etzel, Eduardo. Escravidão Negra e Branca, o passado através do presente. São Paulo: Editora Global, 1976.

- Ianini, Octávio. Escravidão e Racismo, 2ª edição, revista e aumentada.

- Nabuco, Joaquim. O Abolicionismo. São Paulo: Publifolha, 2000.

- Ribeiro, Darcy. O Processo Civilizatório. São Paulo: Publifolha, 2000.

- Gorender, Jacob. O Escravismo Colonial. São Paulo: Ática, 1978.
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