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Ensaios-->Da tradução: caminhando e cantando -- 29/07/2002 - 11:07 (José Pedro Antunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O meu carteiro traz, no passo ligeiro e no semblante confiante, a mesma promessa de eficiência de um sedex. Verdade seja dita: se algo funciona neste país, é o serviço de correios. Inatacável. Caro? Talvez. Mas não se lhe pode negar a excelência. Tudo muito óbvio. Funciona.

Pois 'o meu carteiro' parece ter incorporado o personagem, o protagonista dessa história de sucesso junto ao grande público. Depois de dizer o seu nome completo, um aposto: 'o seu carteiro'. E é o que me autoriza a escrever, a usar sem pejo 'o meu carteiro', como se se tratasse de uma relação pessoal, afetiva.

Depois desse aposto, com um gesto perfeitamente consciente e elegante, coisa de quem bem se sabe no papel que representa, ele completa: 'Movido a ...'.

(Deixa a frase no ar, espaço para a participação do cliente, agora um seu espectador, para só então conclui-la, como todo bom entertainer: '... maus tratos!')

No momento em que esse prodigioso número se realiza, nesse lapso de tempo por mim colocado entre parênteses é de suspense absoluto. É fundamental o gestual empregado, o braço esquerdo estendido como quem descreve no ar a duração da fala, mas salvaguardando igualmente seus silêncios, enquanto a cabeça, inclinada, perfaz uma vênia marota, antes da entrega, com a mão direita, da correspondência ansiada. O olhar, de soslaio, analisa as reações do agora espectador boquiaberto.

É assim que ele se apresenta, o 'meu carteiro', e assim ele percorre o mundo, a sua pequena porção de mundo, com graça, leveza e, repito, a eficiência de um sedex. Depois que se ausenta, fica no ar o impacto da construção de um nosso personagem do dia a dia, mas para além dele, para sempre.

Certa vez, em Paris, tendo sido chamado a compor as letras de um disco brasileiro do chansonnier Georges Moustaqui, a minha chanson preferida tinha um problema insolúvel. O tema, para nós inusitado e improvável: 'Le facteur' [O carteiro]. Pode? Sim. E é claro que eu também já era conhecedor e fã daquele sucesso da 'personalíssima', Isaura Garcia:

'Quando o carteiro chegou
e meu nome gritou,
com uma carta na mão,
ante tristeza tão rude,
não sei como pude
prestar atenção.'

Na minha infância, havia canções incríveis, de incomensurável sucesso. Hoje os parâmetros são outros, um sucesso durando quinze minutos, se tanto. Uma canção de que me lembro, por tê-la decorado com um prazer que hoje já não tenho, tinha por título 'O tintureiro':

Segunda-feira
logo de manhã cedinho,
vai lá em casa um baixinho
e eu me ponho a atender.
Eu abro a porta
e ele todo prazenteiro
com um sorriso vai dizer:
Tintureiro, tem roupa pra lavar?
(Não, não senhor...)
Camisa pra engomar?
(Não, não senhor...)


A canção de Georges Moustaqui começa com 'Et maintenant le facteur est mort' [E agora o carteiro está morto]. Um dia eu disse ao compositor que, no Brasil, ficava difícil imaginar um carteiro, ou a morte de um carteiro, a ponto de virem a se transformar em tema para uma composição popular. Mesmo porque, hoje sei, não é todo mundo que tem a sorte desta intimidade que eu tenho, a ponto de dizer, como no início deste texto: 'o meu carteiro'. Não temos todos uma relação assim pessoal. Se um carteiro morrer, começa a vir um outro, e assim por diante.

Entre nós, tudo tende à desconsideração, ao desmazelo. Como tantos outros prestadores de serviços à coletividade, um carteiro não costuma ser visto ou notado. Quando muito, sofrerá maus tratos por alguma coisa que venha a dar errado. Por isso, mais ainda admiro a forma como 'o meu carteiro' sabe se fazer notar, a ponto de transformar-se em assunto para mais uma crônica de um obscuro autor num site que se pretende literário. Hoje, obra dele, talvez não me fosse mais tão difícil imaginar, em português, uma letra para a canção de Georges Moustaqui.

Chego a pensar que as boas letras de música popular, como toda a grande poesia verdadeiramente representativa do idioma em que se produz, seriam intraduzíveis. Mesmo porque o autor da versão dificilmente poderá transportar para o outro universo poético e musical, os aspectos não verbais da criação, alguns deles decisivos, fundamentais para a recepção das obras.

De Georges Moustaqui, seria preciso dizer que teve sucesso, comparável nos anos 60 ao de um Chico Buarque entre nós, porque dominou, sem ser francês, o dialeto parisiense, seus estilemas. Caiu no gosto do público. Quando o conheci, já não era mais atual, mas mantinha um público médio de três mil pessoas por espetáculo. E ele me deu a oportunidade de ter para mim, por alguns instantes, pela duração de três músicas, esse seu público, nas vezes em que me apresentou como parte do seu show, cantando a versão da sua música de maior sucesso nos anos pós-68, 'Bahia', que tem música de Mário Lima, um ex-colega meu de adolescência:

'Bahia da ladeira pro mar
Bahia de sangue, sonho e suor
Bahia seus ventos de inventar
Bahia de São Salvador.'

O paraíso é feito de grandes coisas pequenas,
pé, povo, capoeira, pó e pau,
em sangue, em luta, em morte, morenas,
o côco na barriga, berimbau.'

Sobre a música de Georges Moustaqui, eu diria tratar-se de um universo que, absolutamente, não se deixa transpor sem traumas para o nosso cenário. Muito do nosso cancioneiro tem diretamente a ver com a tradição da chanson francesa. Mas, hoje, é a chanson francesa a buscar na nossa expressão musical popular as suas próprias raízes, que aqui se fincaram e produziram frutos para um imenso futuro. São as mesmas raízes que, lá, já não resistem mais em solo que um dia foi tão fértil, nem são capazes de produzir frutos tão saborosos.

Antes de mim, a cantora Nara Leão e o cineasta Cacá Diegues fizeram suas tentativas, que só não foi inteiramente inglória porque, gravada por Rita Lee, a canção 'José' acabou por trannsformar-se em hit ao longo de, hoje, impensáveis meses a fio:

'Olha que foi
meu bom José
se apaixonar
pela donzela,
dentre todas
a mais bela,
de toda a sua
Galiléia.'

Essa canção foi composta, originalmente, para a interpretação da musa existencialista Juliette Greco. Foi uma das revelações que me fez o compositor ao longo de uma longa convivência. A musa não queria correr o risco de, com tal gravação, afrontar a Igreja, a tradição católica francesa. Pode? A canção fazia o que tantos depois fizeram, que é imaginar José e Maria, a Sagrada Família, como uma família humana qualquer, com os nossos mesmos humanos dilemas:

'Por que será, meu bom José,
que esse teu pobre filho, um dia,
andou com estranhas idéias
que fizeram chorar Maria.'

Um compacto duplo reuniu os magros resultados da dupla famosa que assina essa versão. A própria Nara Leão deixou registrada a sua interpretação, num compacto duplo que trazia 'Le Metèque', o maior sucesso do compositor e cantor em todo o mundo, e que aqui não virou nada:

'Com minha cara de estrangeiro,
judeu errante e aventureiro...'

O LP brasileiro do compositor, que ficou sendo o meu sonho de grandeza por alguns meses, acabou não acontecendo. Hoje posso admitir, distante daquela minha sufocante temporada parisiense, que aquilo (eu) não tinha mesmo nenhum futuro, que não era, não podia ser. Certa vez, num dos meus piores momentos na Cidade Luz, liguei para o compositor, querendo dar um jeito em tudo, um rolê, uma guinada.

Eu havia concluído duas letras, duas versões, e queria que ele as ouvisse. Respondeu que tinha sido bom eu ter ligado, pois no dia seguinte estariam em sua casa Jorge Amado e Zélia Gattai, que almoçaríamos juntos. Quem sabe eu não poderia mostrar para todos eles o que havia conseguido. E assim foi. E foram extremamente elogiosas as palavras do escritor baiano, que, de imediato, comparou aqueles meus dois magros resultados ao que havia de melhor na nossa música popular.

Hoje, à distância, posso ter a certeza de ter conhecido um homem generoso. Sabia que aquelas duas letras não estavam prontas, e suspeitava inclusive de que nunca estariam no ponto. Relê-las, hoje, é também um ato de humildade, sendo ao mesmo tempo um lampejo de esperança. É como se a mim mesmo eu declarasse que ainda não está bom, mas que sei disso e posso seguir tranqüilamente adiante, pois o caminho é meu, de ninguém mais. Quem sabe um dia!

Mas Jorge Amado gostou muito mesmo de um poema que medrosamente eu lhe mostrei, aproveitando um momento de desatenção dos outros circunstantes:

'O nosso amor foi espanto,
cavalos soltos e chão,
ruas cruzadas na noite,
por entre rimas em ão.'

É quase inverossímil pensar, hoje, que aquele meu ilustre leitor, agora defunto, tenha ficado realmente entusiasmado com a simplicidade daqueles versos. E não foi algo para a pequena e prestigiosa platéia ali presente, que ninguém estava olhando. E nem foi algo para mim, para que eu ficasse contente, ou para que, no futuro, disso me lembrasse, como agora me lembro. Foi uma reação inteiramente pessoal, coisa só dele mesmo, como se também deles se lembrasse.

E já que estamos em plena Île Saint Louis, atrás de Notre Dame, no coração de Paris, e nesse apartamento amplo de cobertura em que vivi depois alguns meses como poeta convidado, a compor letras para um disco brasileiro do seu proprietário, e já que os circunstantes eram pessoas da mais alta estima, não seria inconfidente lembrar que, naquela tarde, também houve lágrimas sentidas.

Foi um momento de grande comoção para este que escreve, e que naquele tempo era cantor na noite do Quartier Latin, no bar brasileiro Le Discophage. Foram tocantes as lágrimas de Zélia Gattai, na época para mim apenas a esposa do escritor famoso. Enquanto eu cantava, vi que ela estava chorando, e por pouco a voz não se me embargava. Ao nos despedirmos, Zélia me agradeçou por tê-la feito ficar emocionada. Da mesma forma como eu agora revelo ao leitor a minha gratidão para com 'o meu carteiro, movido a... maus tratos'.

Vejo que, depois daquela cena cheia de comoção, eu também precisei seguir adiante, em meio ao inverno rigoroso daquele ano de 1979, sapateando na neve numa Paris em que brasileiros disputavam o mercado da música praticamente no tapa, e eu ali apenas por acaso, de passagem, indo.

Logo mais, à noite, eu teria de tentar, no palco do Le Discophage, fazer o mesmo, comover cantando. Mas para lá eu me dirigi com a quase certeza de que isso não haveria. Eu seria apenas mais um entre tantos brasileiros caminhando e cantando e seguindo a canção. O palco era o mesmo que já tivera Geraldo Vandré e Tuca em seus tempos de exílio. O mesmo palco que viu surgir a semente do que mais tarde viria a ser o Quinteto Violado. O mesmo que abrigara por tantos anos a cantora Teca Calazans, então parceira de Ricardo. À minha frente, um bar repleto e enfumaçado, cada pequeno grupo ao redor de uma mesa, sem ouvidos de ouvir, incapazes de qualquer sensibilidade. Às vezes, como era inevitável, um grito estridente, o pedido de música de algum brasileiro, quase sempre famoso. Os pratos eram feijoada, xinxim de galinha, vatapá. A bebida era a caipirinha, é claro. Como comover nessas circuntâncias, eu pergunto. Cantar na noite é sobretudo heróico.

Fiz isso durante alguns anos. Hoje lamento a sorte dos meus amigos que cantam na noite araraquarense. Tive platéias as mais diversas, gentes de todos os quadrantes do mundo. Cantei nos piores moquifos, inferninhos de Lisboa, buracos, ruas de aldeias turcas, boites em Genebra, restaurantes iugoslavos, locais alemães ou latinoamericanos em Munique. Já compus programas com números de fado e strip-tease. Até a umbigada eu já dancei, e de maneira folgazã, com uma 'carioca' de Niquite, digo, Nictheroy, Marilza, que também era cantora e viajante, e que não sei mais por onde anda. Não foi bolinho.

Paris, o mundo não é somente uma festa. Pois foi preciso que houvesse aquela tarde improvável na Île Saint-Louis, chez Georges Moustaqui, à côté de chez Monsieur Piazolla, na vizinhança de alguns de meus ídolos, como Françoise Hardy, para que eu me soubesse emocionante, patético talvez, nesse meu percurso inglório como tantos outros percusos humanos. Cenas como essa, de que muito bem me recordo, não são hoje quadros na parede, e nem dóem. São a minha certeza interior de ter vivido, de ter me emocionado tanto tantas vezes. São também a minha certeza maior de que ainda estou pronto para as emoções que virão, de que não estou, como não poderia estar, completo.

Como 'o meu carteiro', sigo adiante. Na casa adiante, alguém ainda me espera com alguma mensagem de esperança, alguém espera que eu cumpra a minha tarefa. Mas no fundo, de mim para comigo mesmo, sei que estou no cumprimento da minha missão pessoal e intransferível, e torço por encontrar no caminho, um belo dia, algum cliente que também saiba se deixar transformar em espectador generoso para o meu número improvável, e que se comova, e que me ajude a transformar esse meu percurso diário num espetáculo vibrante e inesquecível.

Quem assina este texto é um escritor como milhares de outros, sem qualquer garantia de que terá um dia compensação ou reconhecimento. Quem assina este texto é um escrevinhador qualquer, um quixotezinho interiorano. Como o 'meu' carteiro, movido a maus tratos.
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