Todo dia, à mesma hora
Lá vinha a meninazinha
Manhãzinha ao pé da aurora
De marmita na mãozinha
E o rapaz pra porta afora
Corria quando ela vinha
Levava da patroa
O almoço pro patrão
O vestidinho era curto
Simplesinho, pé no chão
Tinha um sorriso bonito
Covinhas e um coração
Que corria quando via
O moço lá no portão
Os negros cabelos curtos
Uma fita azul prendia
Dos braços finos, enxutos
Uma sacola pendia
Pernas lépidas, mais ainda
Apressada se fazia
Ao passar perto da porta
Pra qual o jovem corria.
Era um tal encantamento
Que aquele moço tinha
Por aquele simples momento
Por aquela pobre mocinha
Ele estava apaixonado
Mas falar-lhe não podia
Pois era um pobre coitado
Ganhava pouco por dia
E o que a ele fascinava
Era o jeito de menina
Modesta, quase uma escrava
Ainda assim pequenina
Ria a toa, até zoava
Não ligava à triste sina
Que desde cedo largada
Só trabalho, só faxina
Aquelas mãos miudinhas
Aquele jeitinho doce
Aquele vestido de alcinhas
De um pano como se fosse
Só pra cobrir as anquinhas
Do esqueletinho, só osso
Olha que o tempo passou
E o rapaz se mudou
Mudou-se mas não casou
No grande centro ralou
Ganhou grana e estudou
Ficou rico, se formou
Pra terrinha ele voltou
E a menina procurou
Mas que surpresa ele teve
Ao saber que a moça pobre
Casara-se com Dr. Esteves
Um graúdo, sangue nobre
E tristonho se deteve
Pra não perder pro esnobe
Numa festa de São João
Ele viu, então, senhora
Que agora é de figurão
Respeitada Dona Flora
Um longo vestido azulão
Com broches de ouro na gola
O cabelo penteadão
Os sapatos altos da hora
Não era a mesma menina
Mas um detalhe notou
O sorriso de pequenina
Estava lá, não faltou
A mesma meiguice franzina
O mesmo olhar sedutor
Foi-se embora, bem ranzinza
Com a dor que quase o matou
Mas vejam o que arma o destino
Dr. Esteves se apagou
Ao saber, depressa, o menino
Pro tal lugar retornou
Feito um atrevido ladino
Atrás da mulher se voltou
Não precisou muito tino
Conversou e se casou
Na noite de lua de mel
Ansioso no quarto aguardando
Tirou com zelo o anel
E ela se preparando
Depois de muito esperar
Gritou-lhe: Está demorando
Então Flora, pra agradar
Vem com um longo e desfilando
Com sapatos altos a andar
Tentou fascinar, provocando
Mas ele não se tocou
Pediu-lhe: “Tire os sapatos”
E da maleta sacou
Um vestido de babados
Pobrezinho, com uma flor
Estampada num dos lados
Falou-lhe: “Vista, meu amor”
Com emoção, olhos molhados
“Que a esperei com ardor
Neste momento em meus braços”.
Agosto de 2003
Daniel Carrano Albuquerque
E-mail: notdam@bol.com.br