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Contos-->Causo de Itararé: O OSSO -- 08/10/2002 - 22:14 (Silas Correa Leite) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Conto
O Osso

Quando morreu, de repente, a querida Dona Mariquinha Candoca Damião, seu marido, Carlito Eça Damião, bem que podia ter sossegado o facho, se reservado o direito de ser polido, discreto, disseram alguns entojados conterrâneos fofoqueiros, ali na Vila Luar de Itararé, vilarejo bucólico e pitoresco na agreste zona rural da cidade estância boêmia de Itararé, ao sul do Estado de São Paulo, vizinha de rabeira e divisa com o Paraná, do qual até já tinha seu geofísico por demais de parecido em tudo de bela natureza sósia.

Os três filhos mais velhos ficaram ressabiados, quando, sem mais nem menos, malemal a pranteada genitora fizera seis meses de finada e aquilo tanto de carpir uma saudade pegajenta, e o sem-vergonha do velhote Carlito Eça, sem um pingo de vergonha na fuça, sem medir arredios de meio, trouxe para casa a tal zinha, uns trinta anos mais nova que ele, a titulo de inoportuna madrasta, sem tirar nem por.

Foi muito socó para a tapera dos topetudos herdeiros que ficaram de tromba, e que, maleixos ou mesmo de toleima, onde já se viu, ara, ares de azedos, foram arar terras do clã noutra freguesia, deixando o filho-da-puta do pai com a lavoura de milho-pipoca para colher, uma praga de gafanhotos pra azedar o curtume da semana, uns porcos gordos para serem castrados, mais o guri caçula, o Jubileu, com suas berebas de imberbe na casa dos dez anos, se tanto.

Nem bem cismaram uns editais de proclamas em tempo corrido por paga por fora, e o velho safado se aprumou de casar de papel passado e tudo com a encalhada morena de seios grandes, ancas bem feitas e brilhantes cabelos crespos da cor de casca da tatu. O casório na Capela de São Benedito ali na fazenda mesmo, foi bem concorrido, mas os filhos mais velhos não deram a cara pro forfé, apenas o Jubileu, com sua feição de desenxabido, manteiga derretida, mais uma reinação de saudade da Dona Mariquinha e dos amados irmãos, os pés-vermelhos.

Depois a vidinha monótona dos três ali no sitio ganhou a rotina cotidiana da rameira trivial, e o velho continuou indo caçar preás e cervos silvestres, extrair gabirovas e ariticuns do mato a dentro, pescar lambaris e bagres cor da lua, arar roças de alqueires, além do que a nova senhora do eitão, por não poder gerar filhos, mas ter conservado o frescor de tez, olhar de jabuticaba, muito serviçal e prestimosa, quando era extremamente boa para a lida de uma casa-grande com galos, noites e quintais de alvoroços, fazia os serviços com esmero. A mocinhola, solteira encalhada, era pau pra toda obra ali ainda nos favos e gomos dos trinta alqueires de terra.

Mas, justiça seja feita, a bem da verdade, o entojado do guri foi ganhando peso, hormônio e viço no olhar silencioso de quem em idéias de jerico e pensamentos abusivos maroteava a intrusa em casa. Enquanto a madrasta de nome Zoraidinha Camargo punha roupas no varal, lá estava o piazote danado a colocar olhos curiosos e sapecas no vão do sovaco algo ruivo atrás dos fartos seios de manga-espada da senhora dona. Quando ela ia pegar ovos no galinheiro, tinha que pular um corguinho de meia-água ou abrir e fechar porteiras, lá o danado a sabia desajeitada e à vontade pra lhe dar o que cismar, sondar e, pior, põr acentuado reparo de filhote de cusarruim querendo calma pra se coçar. No começo o peste do Jubileu fazia isso sem dar na vista, de través, depois foi ganhando tesão e pouco se lixando para as corajosas empreitas da madrasta que era uma trabalhadora de mão cheia, e não tardou muito, crescendo a virilidade meio que precoce ou não, deu se por atinado e de forma tácita até, desejando a gostosa e pedaçuda mulher do pai valentão e bravo como só vendo. Mas isso foi só no começo, de-assim como vou contar, no vai da valsa, preparando meu pito.

A Zoraidinha, vivida, que muito cedo tinha se perdido com um professor de gramática que a levara na lábia e não apenas do verbo Amar, depois de engravidada pelo sujeito, tendo sido jogado na rua da amargura, perdendo o filhote e voltando pra casa do pai com cara de tacho, encalhada pra casório por causa da má fama que fizera de bubuia, restara-se por décadas em casa, ajudando o velho viúvo, Seu Ludovico Panteão, que um dia finalmente finara, e ela, com alguns bens e as terras de herança, ao ser sondada pelo Seu Carlito Eça Damião não se fez de rogada, pois que ainda estava na muda, era bonita, forte, e, aquele pé de meia do velho pelo menos poderia lhe dar um lar doce lar, já que, por ter perdido o filho de uma aventura, com os problemas todos, jamais poderia engravidar novamente, mas ainda podia ser caseira serviçal, de lavar, passar, cozinhar e dar muito bem no couro ainda em outras pelejas íntimas. Ora se podia.

Por outro lado, o velho, fogo aceso, atiçado nas ventas, se apaixonara por aquela zinha mal a vira numa feirinha perto de um brejo de várzea, num vilarejo adjacente, vendendo renda de linho feita em tear próprio, de –vereda topara enfrentação com os três filhos mais velhos, topetudos e encardidos, já que o Jubileu era muito rente de idade, e, pra fazer seu gosto e prazer de companhia e tudo, levou a moça pra casa, os filhos que fossem peidar nágua, e ali ele se dava por contente, viril, moça nova e fogosa na cama, um filé de capivara, enquanto ele lavrava a terra, pescava no rio Itararé, caçava nas terras do Seu Cananéia, e levava a vida na toada da rotina cotidiana, refeito, fora do luto oficial, renovado, panca de mocinho trancham tomando Vanadiol para agüentar o tranco, porque estava bem servido de qualquer jeito, e não era descendente de espanhol por acaso, bravo, valentão, bom de mira, determinado, resoluto, um trabalhador que não refugava atiço de forrobodó ou empreita impossível.

Jubileu, a bem dizer, mal entendeu a morte da mãe, pela qual era um grude, só sabia que certa feita ela anoiteceu em tempo de Endoenças, e foi levada pra Santa Casa de Misericórdia de Itararé, no outro dia diferente vindo parentes às pencas, flores, velas, gentarada, até que ele com mimos foi levado no lombo de um tordilho, com o irmão mais velho, o Saulo Ely, e viu a mãe dormindo serena num caixão de imbuia, depois choro e ranger de dentes por atacado, pregação do obeso e calvo Padre Levino, um salmo chique, uns abraços, apertos de peitos entrevados, depois a querida mãezinha ser jogada num buraco de sete palmos, tacarem terra cor de rosa por cima, veio um pedreiro e selou com tijolos a tumba, depois todos foram tomar umas tubaínas de limão, comer uns sanduíches de mortadela, e assim por diante, umas balas de anis, umas marias-moles, uns capilés ou quebra-queixos no Bar do Tunico Bittencourt ali na esquina em polvorosa, depois, por fim, cada um montou seu cavalo, tomou de sua charrete, seu ford bigode, uns de-apé mesmo, colocaram o chapéu de feltro, a turba se desfaz, o tropel finou, cada um foi arejar espírito pro seu canto, o que era ajuntamento acabou, ele veio pra casa no sítio na rabeira de uma lambreta, que um primo vereador no Palácio Vadico em Itararé lhe oferecera de carona.

Quando pintou a moça nova em casa, concubina de início, depois mulher oficial do pai substituindo a mãe insubstituível, Jubileu ainda lambido de tristeza, tatus no nariz, berebento e peidorreiro na muda dos dez e pouco, foi levando a botina da lida, que a Deus pertence. A moça era bonita, simpática, prestimosa, fazia polenta de milho branco melhor que a mãe, sabia outros pratos gostosos da cidade, caprichados, era adorada pelo pai, enquanto o pobre coitado, imberbe e feição de espantalho, ia aceitando as coisas, comendo, se aprumando, com o velho até meio viçado, com a moça gemendo noites a dentro como se espremida de sofrências, porque ele mal entendia das sabenças do amor, capiau e arigó de tudo brincava com sabugos de milho como se fossem bois brabos, ainda pulando córregos atrás de rãs-pimentas ou jaós, ainda tinha medo de lubisomem, de onça pintada, e quando o pai ocasionalmente lhe punha algum tino de carinho, algum préstimo de afeiçôo, ele chorava nos braços do velho e ranhento perguntava da adorada mãe. O velho, então, na dura realidade do momento, ficava sem seca, casca grossa, curto e grosso cortava o apreço físico e dizia pro piá entojado que a mãe tava no céu, na glória de Deus e da Santa Virgem Guadalupe, e que ele desmontasse o chororô e fosse pegar água fresca no poço, que fosse dar milho pras galinhas, que fosse rezar na capela de São Benedito, ou, aproveitando o desmanche do diálogo, pedia pro guri ir na venda do Deolindo Quirera a pouco menos de três quilômetros, buscar querosene pros candieiros, naftalina pros ternos de casimira, ou pilha para o rádio Semp com picumã e estática, e então aproveitava para um diurno ocasional desfrute no côncavo e convexo da patroa nova que tinha em casa, carne de primeira mesmo, de se comer e lamber os beiços moles com rósea dentadura dupla.

E assim se passaram os anos. O céu por testemunha. O velho caçando, a nova dona de casa com perfeitas reinações, e o Jubileu crescendo e ganhando os contornos do tempo na sua idade já entrando na adolescência, encorpando a voz e a testerona revelando ofício no seu psicossomático meio atiçado como puxara o pai. Afinal, a carne é fraca, diz o adágio popular.

Pois dera de sondar a mulher do pai, a graciosa madrasta. De primeiro por curiosidade, depois os gemidos de madrugada (ouvia - coração com um trem no dentro), a parte da coxa morena que o corte de morim cambraia da saia revelava, os seios fartos por entre os sovacos peludos, os crespos cabelos lindos feitos em coque na nuca alta, a boca fina e perfeita, o nariz pequeno, os ternos olhos de jabuticaba, quando se viu, Jubileu estava no entre uma inventada primeira paixão inédita e impossível, e a descoberta de sua masculinidade precoce, temporã. Descobrindo a indecência. Onde já se viu?

Sondava os momentos furtivos da madrasta desapercebida, sem se medir direito entre panos e varais, tachos e fogão de lenha, pernas levantadas e de croque entre garnisés, lavando roupa ou preparando doce de mandioca brava com cidra de abelha-tiê. Ele, Jubileu, a principio ficou só de assim, depois foi se assanhando aos poucos, até a Zoraidinha dar aquilo como uma curiosidade normal, uma descoberta comum, nem de se preocupar muito, porque era bem servida pelo velho, e gostava do menino que tratava como um filho do peito.

Ele andou se assanhando, atrevido, levantando a voz de meio fanho, mostrando a virilidade na cerzida calça cerzida, mas ela não foi na fiúza, deu uma de que não era com ela, não era pro seu tacho, e o moleque desesperado procurando fogo pra sua lenha juvenil. Será o impossível?

Passaram-se mais alguns meses, ele atreveu-se algumas vezes a tentar agarrá-la de supetão, ela, lépida, sem escândalo, feita serelepe desvencilhou-se, outras vezes ele, vermelho como peroba brava, colocou o médio membro virgem pra fora e ela virou as costas, pouco se incomodando na verdade, sem implicância qualquer, porque também sabia se virar sozinha, tinha força, saberia desmontar o enteado de intenções dúbias, preciso fosse sentava-lhe uns pésdouvidos, confiando também na sua temperança, enquanto o menino ora subia nas tamancas, ora com vergonha ocasional desmontava da pose, pois mesmo desejando-a sabia que ela não era de fritar bolinhos, muito menos pra sua cuia e situação de pertencimento.

Mas um dia bate a circunstancia do inconcebível, com a coincidência do hormônio a mil na cabeça e nos vãos das pernas, e Jubileu perdeu as estribeiras, foi longe demais, a bem dizer.

Louco varrido, partiu pra cima da madrasta, quando essa com uma saínha cor-de-rosa meio transparente mostrava os fundilhos bem torneados, no cuorador, e mal ajeitava umas peças de roupa de cama passadas de água de bica e sabão caseiro de cinzas. Ele veio pra cima babando, olhos virados, como se um estremelique entre desejo e tesão, mas ela escapou, assustando sem querer o garboso cavalo Maçarico, meio que gritando de susto, espantando as galinhas que fizeram uma fuzarca, e correu, porque boba ela não era, e sentiu que o menino tava com o capeta, talvez fosse preciso dar-lhe uns tapas pra conter a histeria sexual. Com essa caça caseira, foi um tropel generalizado, alguns vizinhos ao de longe notaram, vieram sondar o haver, os animais dos arredores fizeram um guaiú disgramado, uns pobres empregados que roçavam por perto viram o ataque do filho do Seu Eça dando em cima da mulher do pai, um bóia fria meio capataz de ocasião chispou chamar o velho bronco, enquanto o atrevido ia e via correndo aloprado e dando em cima da fêmea pedaçuda que, rápida, escapava, entre o paiol e o chiqueiro, entre a casa-grande e o quintal, por entre bosta de jericos no curral e por entre mangas podres no bosque, quando, bufando o cavalo, com a mão direita trêmula numa garrucha, machucando o relho e a rédea na outra, veio vindo o velho pai do guri, que, a bem dizer não era flor que se cheire, mas não era tolo de tudo. Ao mesmo tempo que o velho chegava pronto pra lavar a honra, fazer um desmonte, uma tragédia, veio chegando um vizinho rico, um padre que estava dando catecismo na capela de São Benedito que ficava perto, e um pandareco alardeou as imediações anunciando força bruta, sangue e gandaia de tristices por atacado.

Malemal o velho estava a poucos passos do quintal de casa, raivoso e sangue urdindo nos olhos de nódoa de terra cabocla e espanto, Jubileu que não era trouxa e nem nada, pôs-se de quatro pés e começou a latir como um cachorro louco. Desse jeito. Todo mundo reparou, e eu nem ouvi contar, estava por perto. Acredite se quiser. Era, de uma hora pra outra, um cachorro perfeito entre jaguaras iguais.

O velho apeou taciturno com o baio bufando e pondo grossas espumas pelas narinas alvas, a patroazinha já arfando a se desmontar da pose de caça arredia, o padre, os curiosos vizinhos, e o desacorçoado do agora arredio Jubileu de quatro pés, latindo feito um cachorro com encanto de lua cheia, olhos ainda virados, pisando bosta de galinha no terreiro entre os cães treinados que viam-no brincando como eles, ainda atarantados pelo forfé da correria que tudo aquilo rendera no espanto geral.

O padre Lazico correu e conteve o velho, argüindo que o menino por cabimento tava com o capeta no corpo, que o dianho vira cachorro mesmo quando não tem escape pro limbo. A prudente Zoraide, já refeita da pose querendo também contemporizar e evitar violência, mal falação, quando o velho então, ruim que só vendo, mas contendo ímpetos de acabar com aquilo tudo ao seu jeito, à bala, aceitou o fito de que o menino era ruim do juízo mesmo, só podia ser por estar tão louco de atrever-se a tanto, tirou toda roupa do cusarruim, amarrou uma coleira de couro cru no pescoço suado dele, e, de presto foi levar o filhote agora cão para um improvisado canil que malemal tinha montado atrás da casinha caiada de azul-biscate, que havia numa porção de terreno rente, fundos da casa.

E assim, por incrível que possa parecer, começou a nova vida inusitada do Jubileu. Como cachorro estava salvo de surra de relho e de morte por tiro de garrucha. Ali, entre vira latas, um policial, um pastor alemão e outras raças bem nutridas, livres, ele restou-se comendo com a boca em pratos rasos de folha-de-flandres, ora uma ração nojenta e mal cheirosa, ora resto de comida com cartilagens e sebos, enquanto bebia água de uma lata até onde a coleira no pescoço permitia o sair-se de si. Triste era de noite em Itararé, um frio lazarento, ora garoa, orvalho ou geada, lamuriando amontoava-se entre outros cães, cobria-se com folha de bananeira, ou escondia sua nudez em pelo atrás de tábuas e animais fedorentos como ele também acabou sendo, e, quando vinha alguém para ver sua doença de peste, ele tinha que latir, uivar, morder-se, rasgar grama de capim-tiririca, comer merda, dividir restos entre outros cães que não o entendiam ali, mas gostavam da parecença sonora.

Às vezes o velho tinha um tino de empreita na saudade, sofrência íntima pisando cacos de eventual consciência pesada, apesar de tudo, e vinha dois por dois sapear o filho num bestialismo de meio, entre o cio e a privada, ou encruado como cão vadio sem eira, e então Jubileu subia na pose, latia bonito como nunca, erguia os pés, fazia graça aprendida, talvez até abanasse um rabo imaginário, tal estava na situação de endemoninhado mas cheio de amor encruado no favo do peito. E depois, o seu dono era o seu pai de sangue. Então Jubileu sobrevivia bem, imitando seus amigos nos teréns do chão, erguendo as pernas cabeludas para urinar em talos de taquara, em mourões podres, os cabelos ouriçados numa gandaia, barbicha rala se encrespando, unhas pontudas como patas de bode. Bebendo fazia uma sujeira, comendo ração ou a bóia dos animais era guloso, defecava com eles, marcando território de sua sobrevivência a todo custo, porque o instinto animal nele revelara uma consciência tremenda do limite entre o nada e o zero, entre a morte e a fuga, entre a noite e a perda, entre os latidos e a atiçada consciência de si até o além de si. O aprendizado do instinto. Ver pra crer.

Passaram-se os anos, ele engordou com tanta ração diária, obrando seus troços fedidos aqui e ali como outros parceiros animais, se limpando com pedregulhos, sabugos ou folhas verdes de uma tiguera paredemeia, com o passar do tempo a inoportuna coleira rude e gasta estragou, o velho deixou que ele ficasse solto, como alguns outros animais domésticos, vagabundeasse por ermos dali, logo ele era como um galo de briga, um tatu caseiro, uma araponga, um cachorro vadio: fazia parte da casa, para graça de alguns passantes curiosos e cheios de gracezas, já que a história do causo correra mundão afora, e ele era agora o exótico filho-cão do Seu Eça, que o poupara porque ele tinha espírito do dianho no corpo, e ainda vivo, forte, foi crescendo, com medo, com frio, com raiva, ora de um grito de lobisomem que só ele ouvia, ou mesmo com bernes e doenças que pegara de seus companheiros caninos de vidinha caipora rente ao chão da sesmaria.

Passou-se um balaio de tempo, luas e chuvas, dormindo ora no porão, ora no paiol de trastes velhos, ora sob um pessegueiro florido ou um resto de trator quebrado, certa feita o velho teve um siricotico, foi internado - com tanto afrodisíaco pra peleja sexual noturna - que não resistiu, deu com os burros nágua, viajou fora do combinado, foi cantar na freguesia do céu. Morreu de infarto. Tiro e queda.

Os filhos sumidos voltaram, ressabiados, ora pro velório, ora pra reza a São Benedito, e acabou a Zoraide magricela e desenxabida se tocando, indo se aprumar num canto velho longe da casa-grande central, o insabido menino-cachorro foi trazido para o último olhar ao pai morto com rosário na mão murcha, depois o vestiram como gente que era, choraram juntos, deram tratos ao caçula recomposto ao redil, somas de caprichos de aprumos, tudo mudou, ele perdoado e no seio da família juntinha de novo. Mudança da água pro vinho.

O velho foi enterrado no Cemitério da Saudade de Itararé, os três irmãos aguerridos assumiram a fazenda, renegaram Zoraide, que a viuvinha fresca foi se entrincheirando nos cafundós do fundo de casa, um paiol, o Jubileu voltou a estudar, terminar o primário, aprendeu também sobre montarias, lavouras e empecilhos sazonais da terra, tornou-se pau pra toda obra num arado, mas, sinceramente nem pensa em garrar a cidade de Itararé para fazer vida com a grana do pai ou montar negócio de secos e molhados próprio, como se o feitiço se tivesse desfeito com a morte do genitor metido a sebo, e ele tivesse se saído bem, apesar de tudo.

No entanto e apesar de tudo, Jubileu às vezes ainda tem um siricotico de intenções (seria um disfarce inconsciente?) e sonha escondido – como uma defesa, um punhal de groselha preta no íntimo pisado - em ser um Mágico famoso, trabalhar num emboaba circo mambembe, exótico, pensa em rodar o mundão sem porteiras, morar na Espanha, na terra de seus antepassados avós imigrantes, e guarda com carinho, muito carinho (como uma doença, uma toleima, um crime e castigo) um embrulho quase butim, que seu finado pai lhe deixou de herança secreta, clandestina, para o caso de um dia ele voltar à si, sair de alguma forma de sua estranha e bizarra mimese, mas Jubileu, com medo, um medo inexplicavelmente bisonho, não quer abrir o Pacote de Restos, como chama o encardido embrulho amarrado em folhas secas de uvas, mais um barbante seboso e um antigo rosário falso já com estranho cupim.

Mas, falando sério, a bem da verdade, umas conversas fiadas já começam a correr nas vilas e adjacências da bela cidade de Itararé e região por atacado, encrencas afiadas penduradas na linha do ouvi-dizer, maledicências ou verdades saradinhas.

Zoraide, desacorçoada, insegura, sem chão, magra e abandonada que só vendo, nunca mais saiu da toca.

Pior.

Dizem que Jubileu está comendo o osso.

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Silas Corrêa Leite – de Itararé-SP - Membro da UBE-União Brasileira de Escritores
Causo da Série: Memórias de Itararé e Acontecências
E-mail: poesilas@terra.com.br
Autor do livro ELE ESTÁ NO MEIO DE NÓS no site
www.hotbook.com.br/rom01scl.htm (mais de 35 mil downloads)
Sites pessoais:
www.poetasilas.hpg.com.br
www.silaspoeta2222.kit.net
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