DESCRENTE



Não acredito em nada.

Sou tão descrente que não acredito nem que sou totalmente descrente.

Talvez lá no fundo exista alguma crença escondida.

Talvez eu acredite que Deus existe e tenha medo de reconhecer isto.

Porque, neste caso, teria que mudar radicalmente a minha vida.

Teria que despojar-me de todas as minhas posses

E dedicar-me ao serviço dos mais necessitados.

Não, eu não acredito,

Nem compreendo como alguém pode acreditar em Deus

E continuar tão insensível à miséria e ao sofrimento do próximo.

Talvez eu acredite que o amor existe.

Talvez eu acredite que um homem possa amar perdidamente uma mulher e ser correspondido ardentemente pela mesma.

Talvez eu acredite que este homem possa possuir esta mulher todos os dias durante o resto da sua vida com a mesma intensidade da primeira vez.

Talvez eu acredite que esta mulher possa amar cada dia um pouco mais este homem.

Quem sabe?

Talvez eu acredite em tudo isto e não queira confessá-lo nem a mim próprio.

Talvez eu acredite que um dia não haverá mais pobres.

Por ninguém nunca ter visto Deus ou por eu nunca ter amado durante longos períodos, não quer dizer que Deus e o amor eterno não existam.

Mas eu não acredito.



Recife, outubro de 1989.