Desespero dentro das trevas. Lancinante grito atravessa o espaço. Inútil. O silêncio momentâneo se desfaz em lamúrias mil. Trevas. Escuridão absoluta. Gemidos, lamentações. Horrores perceptíveis. Temores a eriçar os cabelos. Asquerosos contactos desprendem a vontade da fuga. Odores estugam o passo, atrás do infeliz. Respirações arfantes. De repente, o vácuo, a terrível sensação da queda imponderável. Suspenso, o cadáver balouça fracamente iluminado. As carnes putrefactas a escorrerem sumo viscoso.
— Sou eu, Deus meu! Que fiz? Que fiz?
Soluço o arrependimento da morte estúpida. Queria repudiar a vida. Queria instigar a dor. Queria pôr em fúria os inimigos, desfalcados, empobrecidos.
Aperta-me o laço. Sufoco. Mas consigo saber que tenho domínio sobre o ar. Respiro. A sensação íntima é de extremo desespero. Agonizo. Choro. Esperneio. Vislumbro a mão cadavérica. Ossos brancos a despejar os respingos negros do sangue coagulado. Sinto-me leproso. Chaguento. As pústulas deixam escorrer a linfa malcheirosa.
— Santo Deus! Não deveria ter sido retirado da árvore? Não mereceria ter sido sepultado? Digno cristão.
— Pérfido suicida. Egoísta. Mesquinho. Como ousa empregar o Santo Nome? Quem lhe dá permissão? Não eu, a Consciência.
Lembranças, apenas. Tremendas lembranças. Quem me dera retratar o Sofrimento! Personalizado. Em carne e osso. Ainda sinto a carne lanhada, intumescida, a desfazer-se. Ao derredor, o bater de asas. Grossas asas. A ameaça de ser devorado vivo. E sabia-me suicida. Irrisão! Perversidade do destino, que grafei em letras de sangue e lavei em pranto.
— O irmão deseja seguir-me?
Era o oferecimento da libertação. Eu não sabia. Tive medo. Seguir para onde? Corri. Desabalei. Alegrava-me a separação do cadáver. Que fizessem o que quisessem com ele. Estava livre!
A penumbra foi quedando atrás e as trevas engolfaram-me. As impressões tácteis acentuaram. O que parecia áspero, tornava-se grosseiro. Feria-me. O mau cheiro punha-me tonto. Desmaiava. Caía em charcos de fezes, que penetravam pela boca. Levantava, cuspia.
— Deus, é mentira que sois misericordioso! Se fôsseis todo-poderoso, não deixaríeis este filho nesta desgraça!
Recebia funda cutilada no coração. O ferro escaldava ao penetrar. Cheiro de carne queimada. Apanhava o aguilhão e deixava nele as carnes. Buscava livrar-me. Outras formas pontiagudas me atingiam o corpo todo. Alguém me abria a boca. Derramavam fel. Ardia a garganta. O estômago esturricava. A cabeça batia o descompasso do coração. Procurava sustentar o crânio. Os ossos ficavam-me nas mãos. Sentia-lhes a dureza. Os miolos escorriam pela face.
— Quem me convida? Quem me convida? Eu quero ir. Ajudem-me. Quem me pode ouvir? Piedade, Senhor!
Recuperava a lucidez. As dores amainavam. A vista não alcançava divisar nenhuma luminosidade. Não podia reconhecer onde estava.
— O irmão deseja seguir-me?
A trégua da dor punha-me desconfiado. Repelia quem quer que se apresentasse. Naquele local, só seres malignos. Não haveria salvação. Precisava encontrar o meu caminho. Rastejava. Intenso frio subia pelos pulsos, atingia os cotovelos, paralisava os movimentos dos braços. E caía de bruços.
— Se fôsseis amor e bondade, Pai, não permitiríeis que os covardes me atingissem pelas costas. Sois vós mesmo quem me feris. Quem com maior poder? Quem mais vingativo? Quem vetou a entrada de Moisés na Terra da Promissão? Quem destruiu Jerusalém? Vós, Deus malvado!
Era levantado. Sentia o corpo enregelado. Sem movimentos. Pairava no ar. Se caísse, esfarelaria de encontro ao solo. O medo aprofundava-se alma adentro. Só o cérebro funcionava. E despencava do alto. Partia-me em mil pedaços. O olho, solto, buscava nas trevas os outros órgãos. E o castigo revelava-se integral. Via, apesar de tudo. E as pernas, os pés, as mãos, a cabeça eram gelo. E o calor aumentava. E todas as peças se derretiam e formavam pequeno lago onde vinham beber seres monstruosos. Brutais. Sugavam o meu espírito, como se desfizera o corpo. Eu era só um olho. E uma consciência.
— Senhor! A que estado me reduzis. Se tivésseis compaixão pelas vossas criaturas, seríeis só perdão! Enviai-me quem me restaure. Eu humildemente vos peço!
— O irmão deseja seguir-me?
Punha-me de pé. Esquecido da decomposição. E vagava de novo pelas trevas, caindo, sofrendo, acusando, prometendo, descumprindo.
Certa feita, desejei restabelecer passo a passo a inútil vida. Queria burlar o fim. Queria incendiar a corda que me dependurou no galho. Morri de novo, preso pelo pescoço. Em chamas. E revivi todas as cenas, com integral sofrimento. A memória participava dos horrores. As recordações reacendiam as misérias da alma.
Quanto tempo permaneci nesse estágio de dor? Jamais saberei. Nem quero reverenciar o sofrimento. Nem quero despertar para a possibilidade dele.