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Contos-->Vinho de Narguilê -- 24/08/2002 - 00:46 (Jactâncio Futrica) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Vinho de Narguilê


Era aniversário do nosso amigo, Alírio Belfaguer, artista plástico eclético, matador, boêmio e nefasto perversor de mentes. Na época, ele morava numa chácara esplêndida, à beira do rio Curimaçu, 6 quilômetros aqui de Guabiré; ele, mais uma companheira, um caseiro e uns quarenta tipos de animais _ inclusive uma cascavel horrenda e um urubu sem brevê. Destaque pro caseiro, sujeitinho porreta, um causo à parte. Este era uma espécie de faz-tudo, além de motorista, guarda-costas e companheirão de copo do patrão. Nortista, mulato, já cinquentão mas forte como um touro. Corria a conversa de que fora um profissional do gatilho lá na sua área.

Foi num sábado de janeiro, meados dos anos 80. A festa começou logo pela manhã, na chácara. A casa era imensa e ali, a cidade inteira sabia e comentava, reinava a lei do vale tudo. Na sala de visitas havia uma mesa rústica de quatro metros de comprimento, coalhada de iguarias de todo tipo, frutas e biritas várias. Self service. Só dava puta e maconheiro naquela disgrama!

Ainda me lembro da sensação que tive logo que cheguei. O bicho tava à solta! Na cabeça de um adolescente com certas perversões típicas, aquilo ali era o próprio paraíso,. A bagunça já rolando, a fina-flor da malucada ali reunida, a mulherada doida, e Carmina Burana tocando no volume máximo, em CD!!! (o CD era a última novidade do momento, troféu geralmente trazido de viagens ao exterior).

Eu havia cruzado, no caminho, com a Veraneio vermelha do Alírio. Fiquei sabendo depois que era Dagoberto, o caseiro, levando a primeira vítima do dia ao Pronto-Socorro. Um amigo nosso, mestre em se acidentar, havia trincado a testa; rolou a escada em caracol que descia do sótão (onde funcionava o mais aprazível matadouro da casa). Horas depois, quase a segunda baixa: um outro disinquieto teve a idéia de fumar um baseado em cima duma amendoeira. Escalou o pau, aninhou-se numa forquilha e lá ficou, fazendo fumacinha, muito tranqüilo... E pra descer?! Bateu o pânico, a maconha... O boca-boa entrou numas de horror! Foi um custo pra desagarrá-lo lá de cima! O pessoal gritava instruções, mas o cara não reagia. “Pula e bate asinha!” “Fuma mais um, que melhora!” São Dagoberto, traquejado e com iniciativa pra tudo, subiu por uma escada até a altura que deu; o resto, escalou à unha. Amarrou uma corda sob os braços do gatinho, passou a corda por sobre um galho mais ao alto, jogou a ponta pra turma da platéia e aí sim, o criativo jovem foi baixado à terra firme. Tive que deitar no chão, de rir, vendo o rapaz descendo dependurado, com aquela cara pamonha emaconhado!

À tardinha, apareceu por ali um papai zeloso, determinado a resgatar sua filha daquele ninho de hárpias. Já havia passado a hora do Nescauzinho... Na entrada da chácara, no portão, ele trombou com o Suçú, o cinismo em pessoa! Com voz e trejeitos de mordomo inglês, ele instruiu o sujeito: “A Fulaninha? Oh, sim! Pois não. Vá subindo tranqüilamente aquele morro ali... com toda calma, por favor. Em seguida, contorne suavemente aquele lindo bambuzal lá em cima, tá vendo?.. E o senhor provavelmente vai encontrar sua menina c-o-l-h-e-n-d-o f-l-o-r-e-s n-o b-o-s-q-u-e-e-e-e...” _ Suçú balançava as sobrancelhas sugestivamente, esfregando as mãozinhas, com um sorriso mefistofélico... O circunspecto progenitor saiu marchando, acelerado, na direção indicada, cheio de maus pressentimentos. Primeiro, se deparou com dois marmanjões _ filhos de pessoas sérias e honradas da comunidade _ correndo de sunguinha pelos campos, eufóricos, numa lúdica e inusitada batalha com espada de são-jorge; pá! pá! pá! a chibata cantando, um no outro, pernas e dorsos crivados de vergões sanguinolentos e os retardados achando a maior graça!.. O sistemático senhor achou aquilo nojento e deplorável (muitos achavam a mesma coisa quanto ao modo desse cavalheiro bajular os ‘figurões’ da cidade). E seguindo caminho, após contornar o dito bambuzal, se deparou com um espetáculo deveras ressabiante: sob a sombra dumas jaboticabeiras, sua pimpolha brincava de médico com um bando de festivos maconheiros. Uma cena pesada! Pouca vergonha! Carnificina!.. O sujeito ficou branco, depois vermelho, azul, verde, roxo; deu uma cambaleada tateando o ar à procura de apoio, a vista turvada por um momento: a coitadinha estava bêbada! Fora ardilosamente embriagada por aqueles patifes. A tenra couraça da honradez, desmantelada por meio de artimanhas contra as quais ela não tinha defesa, em seus brejeiros 16 aninhos...

Em meio à picaresca debandada de machinhos nus, o pai, já recobrado e absolutamente possesso, bravateava juras de morte e prometia cadeia pra todo mundo (se é que a PM anda aceitando a custódia de cadáveres). Como era de se esperar, no dia seguinte, com a cabeça mais fria, ele fez os cálculos da repercussão social que se daria caso cumprisse suas ameaças de retaliação. E concluiu que a coisa não tinha sido assim tão grave. “Deixa quieto!”. Deve ter vislumbrado o pesadelo que seria: a paranóia, as fofoquinhas diabólicas das comadres e compadres, o invencionismo, a multiplicação dos detalhes sórdidos na boca do povo, as piadinhas impagáveis, a nódoa eterna na reputação da donzela... Comprou um Opalão Diplomata 6 cilindros, zero-bala, e pronto. Fez uma bela barganha com a própria consciência.

Alta madrugada, o pessoal se reuniu num varandão coberto, anexo à cozinha. Fazíamos uma espécie de sopão apocalíptico com os restos do festim. Cada um acrescentava o que quisesse ao caldeirão, já fervendo no fogãozão de lenha. Entrou de tudo na receita: abacaxi, carne, vodka, creme de leite, figo, boldo, tufos de grama, abacate, chouriço, o diabo-a-quatro! Naturalmente, os distintos convivas já estavam pra lá de Marrakesh... Teve o Clebér, que despejou um bocado de desinfetante Ajax sobre a gororoba e depois caprichou um esguicho de Matox, inseticida aerosol. Por incrível que pareça, ficou bem gostosa aquela burundanga! Ninguém passou mal de envenenamento, ao que eu saiba. A sobremesa também fez sensação: uma papa quente de côco, cerveja, cachaça e açúcar. Obra do nosso amigo Tomba-Terra.

Sobre a mesa havia um narguilê belíssimo (estilizado de dragão, obra do Alírio) com seis bocais, e alguns comparsas mais animados confraternizando-se em torno do enigmático artefato. Quando terminaram a fumegação, resolvi por curiosidade dar uma provada no vinho que abastecia a cuba. Horrível! O sarro do fumo fica todo ali no líquido. Aí reparei que a Zezé tava com um copo vazio na mão, porradona, paradona... perplexa ante o impasse insolúvel que representava aquele copo vazio. Sentada numa banqueta alta, escorada à parede, o olhar vidrado, à beira do apagão. Enchi a tacinha da mademoiselle com o vinho do narguilê, ao que ela, mecanicamente, derrubou de um só trago e pumba!.. caiu dura pra trás. Muito magra, ficou encaixada entre os pés duma outra banqueta que havia atrás, numa posição maravilhosamente inusitada! dessas que valem o dia, o mês inteiro!

Havia um carrinho de mão abandonado ali no gramado, ao lado da varanda. Betão, o ‘maníaco da baioneta’, içou a escornada aos ombros, como uma pluma, e a acomodou no carrinho. “Vamo armazenar a moça lá no quartinho da churrasqueira.” E partiu em alta velocidade, fazendo manobras radicais em torno das árvores e canteiros, imitando sons de carro, como uma criança: aceleradas, freiadas, derrapadas, colisões. Run-ruuuuuunnn-rrrraaaaaaaaann... Deu uns 30 tombos na moça. Chegando ao tal quartinho, “Tem gente!”. Resolvemos então deixá-la no ateliê do Alírio... Trancado. Verificamos a janela. OK! fecharam mas não trancaram. Ela ficou por lá, babando num sofá felpudo.

Lá pelas 9 da manhã do dia seguinte, após um breve descanso, estávamos, eu e alguns amigos, espojados nas almofadas da sala, comentando os lances do dia anterior. Ouvimos um tropel avançando pelo corredor de tábua corrida. Eram o Mauro e o Coxinha, se desmanchando de rir. “Cacete! Cêis viram o que aconteceu lá no ateliê?!!” Corremos pra conferir, já prevendo a merda. Zezé tinha se levantado no meio da madrugada... Baixou o espírito de Juan Miró na vagabunda! Ela havia emporcalhado várias telas do Alírio. Tava tudo cheio de bolinhas coloridas, coraçõezinhos, piroquinhas, peixes, peixinhos, peixões (ela é mulher de um pescador bebum que mora nas redondezas).

Tivemos um ataque de riso vendo aquela borroqueira toda! Você deve saber: quando se acorda numa ressaca violenta, o sujeito se sente aéreo, dominado por uma inexplicável hilaridade nas primeiras horas do dia; depois é que vem a desgraça! Pois bem, estávamos ainda nesta fase preliminar ao revertério, achando tudo lindo e encantador. Gargalhávamos desbragadamente, indiferentes ao trágico da situação. Trágico, de verdade! A retardada tinha lambrecado uma tela magnífica de 6 metros quadrados, na qual Alírio havia se esmerado nos últimos 10 meses. Era um trabalho elaboradíssimo, uma cena hiper-realista num parque de diversões: dezenas de figuras humanas flagradas em diferentes situações; os sentimentos, do mais sutil ao mais grosseiro, revelados de maneira brilhante pelo artista. O quadro já estava vendido. Daria pro Alírio viver dois anos sem trabalhar com a grana da transação. DARIA!..

Outro quadro avariado foi uma cena histórica, encomendada a ele pela prefeitura de Ouro Preto. Mais lenha! Mais bolinhas, boquinhas, gaivotinhas etc... E havia um braço imenso e disforme emergindo da terra, dotado de um olho vermelhaço na palma da mão (surrealismo barato de maconheiro). Mas nós, rapazotes desmiolados, ainda pássaros nesta vida, não atinamos de imediato com o enguiço que aquilo tudo representava. Apenas ríamos, como não podia deixar de ser!

Alírio chegou correndo, enrolado num lençol, e começou a dar ataques. Gritava, xingava, arrancava os cabelos e acusava todo mundo pelo acontecido. Quando se controlou um pouco, entramos todos pela janela pra examinar mais de perto o estrago. Ele olhava a cena do crime, desconsolado, mudo, completamente alheio às nossas exclamações teatrais. Foi batendo uma real, uma tristeza, uma vergonha... Fez-se um completo silêncio. Alírio parecia em estado de choque...

De repente, ele dá uma viradinha pra trás e arregala um olho deste tamanho! Havia uma caixa de vidro aberta sobre a mesa. “SSSANTO CCCRISTO!!! A FILHA DA PUTA SOLTOU A MINHA CASCAVEL!!!!!” Ah, meu irmão! foi um rebuliço só! O velório virou pandemônio. Num segundinho, o inconsolável Jó se transformou no próprio Capitão Marvel! Só se via neguinho voando pela janela, gritando que nem mulher histérica!





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