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Contos-->Fistfuck -- 22/06/2000 - 00:58 (Erasmo Junior) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Nada pode me ferir agora e ninguém vai me fazer parar, bando de desgraçados, como é que ela ficava falando mesmo, não, pára, não, pára, não, pára, não pára, não pára, não pára, dá para lembrar da cena toda com todos os detalhes, que coisa mais deprimente. O mundo se fecha ao meu redor, nada mais é novo porque a vida é sempre um erro.
Outro golpe no meu rosto, o punho dele parece um paralelepípedo estourando minha boca.
Como é que ela ficava falando mesmo? Gritando? Não pára, não pára
outro soco
filho da puta, eu comi a sua
outro soco
pode bater, filho da puta, eu comi a sua
outro, outro, outro
a sua namorada, ela não faz barulho para gozar
outro, outro, outro, estou quebrado
ela goza baixinho
...
você já desejou alguma vez nunca tê-la conhecido?
...
...
...
Durante as apresentações dela, eu ia para bem perto ficar olhando sem parar. Não queria perder movimento nenhum, movimento nenhum, e mesmo que o circo estivesse cheio, nada me faria perder o som emitido a cada manobra exaustiva no trapézio. Urros suaves, respiração ofegante, posso não escutar mas eu sinto o deslizar das mãos secas na barra de metal, borracha, sei lá. Faz tempo que eu venho aqui, e mesmo que não tenha mais idade para vir ao circo, mesmo que eu já tenha feito catorze, é uma necessidade vê-la nos fins de tarde, nas quartas-feiras e finais de semana.
Faz tempo que eu venho aqui, mal posso esperar a hora dela entrar. É tudo tão platônico, tão belamente platônico que nem faria muito sentido tocá-la de verdade.
Ela entra, o trapézio parece um véu tênue lá no alto. Ela nem parece entrar de verdade, era como se sempre tivesse estado ali, só que agora a sua presença se impõe contra os espectadores. Começa a brincar nas alturas, com as suas asas invisíveis, sozinha, sempre sozinha. Ninguém pode compartilhar do seu talento e o show sempre será só dela porque ela é o show e ela é o circo.
Gira, se solta, pula, faz acrobacias. Se ela cair, eu morro também. Mortais, saltos, pernas no ar, as asas delas não aparecem e pedem para surgir.
Brilha tão alto, tão alto que eu nunca vou conseguir tocar.
...
...
ainda estou apanhando?
ele bate forte, todo o colégio assistindo a minha surra, você vai ter que bater mais forte que isso, seu filho da puta corno, vai ter que bater com toda sua força, e chamar seus amigos para bater na minha cara também porque você nem me conhece
socos, chutes, todos me olham e eu não vou cair
você nem me conhece, não faz idéia do que eu posso suportar
chutes, eu só estou enxergando com um olho, tudo embaçado, não tem professores, inspetores para me ajudar
vão se foder
fodafodafodafodafodafodafoda
...
fodafodafoda é quando o meu irmão mais velho, o meu único irmão, que é meio doido do juízo porque demorou para nascer, foda é quando ele implica comigo, daqui da sala dá para escutar o barulho dele chegando, pisando duro no corredor do nosso andar e tocando a campanha histérico. Já vai entrando e me dando umas porradas na cabeça, como eu odeio isso, odeio, e senta no sofá para ver televisão e fuma, fuma, fuma, me força a ficar do lado dele sem camisa para apagar o cigarro nas minhas costas, que dói menos do que quando ele prendia os meus dedos no vão da porta, acho que desistiu disso depois daquela vez em que quebrou três e arrancou as unhas e eu fiquei no hospital por umas duas noites. E passa a noite assim, me queimando e vendo televisão, se eu cochilo, ele me acorda com a brasa.
Agora que amanheceu, eu tenho que dar os remédios dele.
Não é que eu tenha raiva, mas todos os meus brinquedos, até os prediletos, estão quebrados por causa dessa loucura, até as minhas pinturas, eu não pinto desde o final do ano passado, quando ele colocou fogo em todas as telas e eu nem mostrava para ninguém, nem para a mamãe porque ela andava muito ruim por causa da quimioterapia, é assim que fala? Quimioterapia, estava sem cabelo, emagrecida e só queria ficar na cadeirona dela, sozinha, o dia inteiro sem falar com ninguém, nem comigo que cuido dela. Isso não era justo, eu queria ter mostrado as pinturas para ela, tinha até um retrado dela, e um que eu tinha feito da trapezista do circo mas esse eu desmanchei.
Estou vendo ele queimar minhas pinturas, o fogo ardendo e ele gritando que eu não sei nada de arte e que tenho que ver os bonequinhos que ele faz, e que se eu chorar ou reclamar, apanho. Eu fico calado sem chorar e sem reclamar, eu tenho catorze mas já sou um homem, seu bosta, eu sou um homem, e dai ele me puxa pelo braço, como os meus colegas do colégio fazem sempre, empolgado, e me leva até o quarto dele que é o lugar mais fedorento que eu já vi. Puxa uma mala velha debaixo da cama e abre devagar, olha só, ele fala, olha só e você vai ver o que é arte, eu acho que você vai achar legal e se gostar mesmo, se inspira nos meus bonecos para pintar. Quando abre aquele negócio, tem um monte de vidro de maionese, sendo que dentro de cada um há uns bonequinhos meio tortos, feiosos e fedorentos e ele fala rindo, eu faço isso sabe com o que? Sabe com o que? Com merda, é com merda mesmo. A minha, a do gato, até da sua, eu fiz aquele ali com a sua, olha só, esse bonequinho menor, é o boneco irmão, ele me fala essas coisas muito empolgado e eu não sei se vomito ou se paro de prender o choro, mas eu não quero que mamãe me escute chorar, se inspira nisso aqui para pintar que dai a gente faz sociedade e fica rico, isso aqui é arte, fala alto e empolgado.
Agora é tarde e tenho que levar nossa mãe para a quimioterapia, levar uma vez por semana, e ela não fala mais comigo nem quer ir mais, só que eu insisto porque só assim ela vai ficar boa e ela acaba cedendo, tenho que levar
...
eu cai no chão, mas não posso ficar assim, eu sou uma árvore
de joelhos
outro golpe, ainda estão me batendo? Isso não vai acabar nunca
de joelhos
ele me derruba com força no chão.
eu tento levantar novamente, mas está ficando difícil, seu merda, seu boneco de merda
...
...
agora eu me lembro de hoje de manhã, saindo de casa triste porque ontem tinha ido para o circo vê-la e encontrei a lona sendo desmontada. Os artistas já tinham ido embora, quem sabe ano que vem a gente volte, me falaram, mas era tarde demais. Cheguei no colégio sem vontade de nada e não prestei atenção na aula, por que é que eu estou apanhando agora?
Por que é mesmo?
Eu tenho que pensar. Pensar um pouco, ah.
É o recreio e eu nem saio da sala, daí chega alguém dizendo que o meu irmão está me esperando lá fora muito nervoso, tinha vindo me buscar porque minha mãe estava passando muito mal, ele nunca tinha ido me buscar em canto nenhum, é estranho porque ele só sai de casa no final da tarde e fica dando voltas no quarteirão feito doido até cansar. Minha mãe passando mal, eu ainda lembro a bastante tempo ela cuidando de mim e sempre passando a mão no meu cabelo quando eu ia agradá-la, me enchendo de beijos e perguntando se eu tinha sonhado com ela a noite toda. Oh, eu sonho com você o tempo todo, acordado ou dormindo, meus sonhos parecem ser de dentro de você. São tantas memórias boas dela que não consigo organizar tudo dentro da minha cabeça e acaba voltando a imagem dela adoecendo e piorando com essa tal quimioterapia, era para terem operado mas não podia, acho. É câncer, é câncer? Eu não posso perdê-la agora, justo quando ela mais precisa de mim e não sei porque, não fala nem comigo nem com meu irmão maluco. Tirá-la de mim dói mais do que qualquer uma dessas surras, ou queimadas, ou humilhações, eu nem ligo mais, mas perdê-la agora é um pesadelo. Eu quero ficar no coração dela...ah...o coração dela.
Saio correndo desesperado, esqueci até a mochila na sala.
Sem querer, eu juro que sem querer, tropeço em um dos meninos da turma adiantada, ele estava comendo não sei o que e se suja inteiro. Começa logo me empurrando, eu não tenho tamanho para encarar alguém da minha idade, quanto mais alguém com dois ou três anos a mais
...
...
pararam de bater?
...
...
...de joelhos, ficar em pé como uma árvore, porque as árvores morrem em pé. Daí ele continua a me empurrar e começa a xingar, eu falo que tenho que ir embora, me chama de covarde e de bicha, puta merda eu nem conhecia o cara e ele vem logo falando besteira para cima de mim, meto um tapa no nariz dele e digo que bicha é ele e que é corno porque eu estou comendo a namorada dele. Eu não sou covarde, eu sou um homem e prendo o choro para soltar a raiva
eu acho que é isso.
...
...
meu deus, ela está passando mal, estou sem minhas pinturas, sem minha trapezista e continuo perdendo tudo o que eu ganho, será que já passou muito tempo
será que eu estou sonhando ou apanhando ainda
se eu estivesse sonhando
se eu estivesse sonhando, seria o tempo todo, acordado ou dormindo, meus sonhos parecem ser de dentro
...
de dentro de você, mesmo agora perdendo tudo, será que eu vou perdê-la também, será? E os bonequinhos de merda? Será que eu fico perdendo tudo o que eu ganho só porque tenho vergonha de tirar a camisa na frente dos outros, porque se não vão ver as marcas das pontas de cigarro e vão rir, ou porque agora que mamãe está piorando eu me sinto distante, distante. Ela não fala comigo, eu insisto mas quero estar distante, quer dizer
eu não quero estar distante
quer dizer, ela está distante, bem alto, brilhando tão alto...brilha alto. Estão me batendo ainda?
eu quero ficar no coração dela.
Será que estão ou já é tarde demais? Me acerta, seu corno, me acerta que você não vai conseguir me derrubar nunca. Já é tarde demais para tanta coisa...
...
...
...
Brilha tão alto, tão alto que eu nunca vou conseguir tocar.





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fico muito grato com a sua leitura! qualquer comentário ou crítica serão muito bemvindos.
Erasmo Júnior
teeth@uol.com.br
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