Usina de Letras
Usina de Letras
167 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62214 )

Cartas ( 21334)

Contos (13260)

Cordel (10450)

Cronicas (22535)

Discursos (3238)

Ensaios - (10356)

Erótico (13569)

Frases (50607)

Humor (20029)

Infantil (5429)

Infanto Juvenil (4764)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140799)

Redação (3303)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1960)

Textos Religiosos/Sermões (6186)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->GUERRILHA, OU O SONHO DA BORBOLETA..... -- 16/08/2002 - 04:23 (Lenine de Carvalho) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
GUERRILHA, OU O SONHO DA BORBOLETA


Autor: Lenine de Carvalho

PERDOA-ME SENHOR, SE É QUE TU EXISTES,
MAS AMANHÃ EU TEREI DE MATAR.
Já MATEI MUITAS VEZES SENHOR,
E CONTINUAREI A MATAR,
ATÉ QUE EU MESMO SEJA MORTO,
OU QUE SE ACABE A MATANÇA...
TENHO MATADO SENHOR,PARA QUE AS MORTES ACABEM,
AS TORTURAS TERMINEM, E A ESPERANÇA
POSSA RENASCER...
AMANHÃ, NOVAMENTE SENHOR, EU TEREI DE MATAR.
PERDOA-ME PORTANTO SENHOR,
SE É QUE TU EXISTES,
E EU TE PERDOAREI TAMBÉM...




(DO DIÁRIO DE UM GUERRILHEIRO...)


I


Deitado entre os arbustos da encosta do monte, observava através do binóculo o quartel a 500 metros a sua frente.
Focalizou o grande portão de madeira maciça, onde ficavam permanentemente duas sentinelas armadas, e mais acima, no muro sobre o portão a grande metralhadora ponto 50 guarnecida por dois soldados, um atirador e um municiador.
Estes eram seus alvos principais.
Tinha que silenciar aquela metralhadora no momento exato, ou todo o ataque falharia e seus companheiros seriam varridos a bala antes de alcançarem o portão do quartel.
Mudou de posição cuidadosamente, evitando que os arbustos se movessem sobre sua cabeça e deitou-se de costas fitando o céu de um azul intenso e sem nuvens.
Fechou os olhos e pensou se no Brasil, o céu estaria tão azul assim.
O Brasil estava tão longe, mas as dolorosas recordações o haviam acompanhado, por todas as partes, tirando-lhe o sono, umedecendo-lhe os olhos, e deixando-o sempre tenso, sempre alerta...
Com os olhos fechados sentiu a presença de Juan, que rastejava em sua direção com o rifle cruzado sobre os antebraços.
"___Brasilero, está todo bién?"
"___Si Juan, está todo bién. "
Olhou para o relógio no pulso. Eram duas horas da tarde. O ataque começaria às três.
Pegou o fuzil tcheco de longo alcance e começou a colocar a mira telescópica.
Deitado de bruços, apoiado sobre os cotovelos, apontou o fuzil para o quartel e começou a regular a mira até obter uma imagem nítida dos dois homens sentados atrás da metralhadora.
Eram ambos jovens, muito jovens, e isso o desgostou.


II

Era impressionante a nitidez com que podia vê-los através da mira telescópica de seu fuzil.
Um deles estava rindo, enquanto gesticulava para o outro que o ouvia aparentemente com grande interesse.
Pensou em qual deles atiraria primeiro, teria de ser no que estava sentado atrás da metralhadora e que deveria ser o atirador principal.
Já matara antes, muitas vêzes, mas nunca gostava de fazê-lo, sempre sentia-se mal depois, principalmente se quem tinha de matar era jovem, como o eram aqueles dois soldadinhos, provavelmente cumprindo o serviço militar.
Quantos meses faltariam para que fossem dispensados do Exército?
Provavelmente teriam mães, pais, que se preocupavam com eles, amigos, namoradas, e toda uma vida de sonhos pela frente...
Forçou-se a não pensar sobre isso, mas o desagradável nó que apertava a garganta já se havia formado.
E mais tarde, quando tudo estivesse terminado sabia que seria pior ainda...
Aquele era um lugar estúpido para se construir um quartel.
Os fundos do quartel davam para um rio de considerável largura e profundidade, e a frente, batida com razoável movimento de camponeses a pé, a cavalo, carroças e alguns carros antigos.
Depois da estrada, ainda de frente para o quartel, havia o monte com um aclive suave e coberto de arbustos de um metro a um metro e meio de altura, e mais além o bosque de imensas árvores onde Ramón e mais quarenta cavaleiros armados até os dentes estavam ocultos, esperando o momento de precipitarem-se a galope, atravessarem o portão e tomarem o quartel.
Sentiu Juan tocar seu ombro e apontar para o alto da estrada onde duas grandes carroças puxadas por quatro cavalos cada uma e carregadas de fardos de algodão vinham descendo e logo mais estariam na frente do portão do quartel.
Fez um aceno de cabeça e posicionou-se com o fuzil enquanto Juan afastava-se alguns metros, rastejando silenciosamente para tomar posição alguns metros à direita e a sua frente.

III

As duas carroças haviam parado em frente ao portão do quartel e o condutor da primeira delas havia descido para perguntar alguma coisa a um dos sentinelas.
Tirou o grande chapéu de palha da cabeça e fez um largo gesto com ele no ar.
Era o sinal.
Rapidamente focalizou o rosto do atirador que estava atrás da metralhadora, viu que ele ainda estava rindo e gesticulando para o outro soldado
Fez com que o centro das linhas cruzadas da mira telescópica se imobilizasse um pouco acima do nariz daquele rosto e apertou o gatilho.
Viu através das lentes aquele rosto sorridente explodir em fragmentos de ossos brancos, massa encefálica e esguichos de sangue.
Apontou imediatamente para o outro soldado e captou a expressão de espanto e terror daqueles olhos, pois não entendia o que estava acontecendo por que sendo a bala mais veloz do que o som, o barulho do tiro não havia ainda chegado até ele.
Mirou dentro da orelha esquerda e atirou, vendo o soldado ser erguido no ar pela bala e atirado para dentro do quartel.
Nesse instante, o condutor da primeira carroça havia sacado de uma pistola e disparado dois tiros rápidos contra o primeiro dos dois sentinelas que estavam no portão e antes que este caísse, disparava mais dois tiros contra o outro.
Então, a camuflagem de algodão das carroças se abriu e uma porção de homens armados saiu de dentro delas correndo para os portões.
Ao mesmo tempo, saindo do bosque à direita, Ramón a frente de seus cavaleiros galopava a toda velocidade em direção aos portões.
Ergueu o binóculo e observou a metralhadora abandonada em cima do muro, sobre o portão, então começou a correr também para o quartel, com Juan ao seu lado, enquanto ouvia as primeiras granadas explodirem em meio às rajadas de metralhadoras e alguns gritos trazidos pelo vento.
Atravessou o portão e olhou rapidamente ao redor, com o fuzil preparado para disparar.
A primeira coisa que viu foi os dois soldadinhos caídos na terra batida do pátio do quartel, com poças de sangue formando-se sob suas cabeças.
Viu mais alguns soldados caídos pelo chão, percebeu que a batalha continuava nas dependências internas do quartel, e dirigiu-se para a esquerda para uma sala envidraçada.
Percebeu que era a sala de rádio, e que haviam jogado uma granada lá dentro, o operador do rádio estava caído num canto com o peito dilacerado e várias costelas muito brancas sobressaindo-se entre pedaços rosados de pulmões que não respiravam mais.
O aparelho de rádio havia sido destroçado a coronhadas de fuzil.
Pendurou o rifle no ombro e sacou do coldre sua
velha pistola Luger, calibre nove milímetros, pois num combate corpo a corpo ou de curta distancia a pistola era mais eficiente, porque podia ser movida e apontada com mais rapidez.
Juan o havia ultrapassado e desviado para a direita, onde num edifício baixo e comprido ficava o alojamento dos soldados e suboficiais.
Em sua frente havia outra construção, que devia ser o centro administrativo e de comando do quartel.
Entrou pelo corredor com a pistola na mão e todos os sentidos alerta, enquanto ainda se ouviam gritos, disparos e explosões em algumas partes do quartel.
Deparou-se com uma porta fechada sobre a qual estava escrita a palavra "COMANDANTE".
Afastou-se dois passos e desferiu-lhe um violento pontapé e ao mesmo tempo em que a porta se abria, mergulhou para dentro do aposento, rolando no chão, e levantando-se sobre o joelho direito na posição de tiro.
Debruçado sobre uma escrivaninha estava um homem de meia-idade, vestindo uniforme de coronel do exército e girando freneticamente uma manivela de um telefone de campanha tentando conseguir uma ligação.
Sobre a mesa, uma pistola Colt 45.
O coronel imobilizou-se, e seus olhares se cruzaram por uma fração de segundo.
Moveu a Luger alguns centímetros e apertou o gatilho atingindo o telefone que foi arrancado da mesa e jogado em pedaços contra a parede.
O coronel ergueu rapidamente os dois braços para cima, muito pálido e gritando: __Não atire! Não atire!
Levantou-se, pegou a pistola de cima da mesa e guardou-a na cintura, e apontando a Luger para o coronel ordenou-lhe que se deitasse no chão, de bruços, com as mãos na nuca.
Revistou-o rapidamente e verificou que não trazia nenhuma outra arma oculta.
Abriu as gavetas da mesa e entre papéis e documentos descobriu um par de algemas. Eram algemas de um tipo especial, com a parte interna dos anéis cheias de agudas pontas de aço, que quando colocadas nos pulsos de alguém penetravam na carne, provocando grande sofrimento.
Usou-as para algemar o coronel, com os pulsos nas costas e quando as fechou ouviu deste um gemido de dor.
Empurrou-o a sua frente e saiu com ele para o pátio do quartel.
O combate já havia acabado.
Mais uma vez o fator surpresa havia determinado o desfecho da ação.
Na terra dura e batida do pátio, os soldados sobreviventes estavam sendo colocados de joelhos, com as mãos na cabeça, formando uma fila vigiada pelas armas dos
guerrilheiros. Em frente aos prisioneiros, Ramón estava de pé, alto, moreno claro, com cabelos e olhos negros e brilhantes e um revólver 38 cano longo na mão direita.
Atrás da fila de prisioneiros ajoelhados, vários guerrilheiros, com as armas apontadas movimentavam-se num lento vai e vem.
Quando entrou no pátio conduzindo o coronel a sua frente, todos olharam para eles e percebeu que a expressão de Ramón se modificava instantaneamente.
A pele do rosto empalideceu, os olhos negros tornaram-se mais líquidos, como as águas de uma lagoa em noite escura, e, a mão apertou com mais força a coronha do revólver.
"__Coronel Gomez! Mas que surpresa!"
Notou que o coronel começou a tremer dos pés a cabeça.
"__ Onde o encontrou Brasilero?"
Nunca o chamavam de brasileño, como seria o correto em espanhol, mas de brasilero, e havia demorado a descobrir que este era um tratamento carinhoso, afetivo, pois brasileño seria qualquer um vindo do Brasil, seria impessoal, ao passo que Brasilero, era ele, apenas ele, o amigo, o companheiro de lutas, perigos, sofrimentos, incertezas, e que apesar de estrangeiro, era um deles.
"__Estava na sala de comando tentando usar um telefone. Você o conhece Ramón? "
"__Sim, nós o conhecemos de longo tempo, até o ano passado ele era o chefe de um centro de torturas na Capital.
Não imagino o que esteja fazendo aqui tão longe, num quartelzinho perdido nas montanhas, mas ele nos dirá."
Sentiu então o ódio começar a avolumar-se dentro de si.
Um ódio pesado, pegajoso, com lampejos negros e vermelhos.
O velho ódio que o acompanhava há tanto tempo, o desejo de destruição.
Olhou para as algemas ponteagudas nos pulsos do coronel, que começavam a tingir-se de vermelho, passou a Luger para mão esquerda e fechando o punho direito desfechou um golpe rápido contra seus rins.
Com um grito de dor o coronel caiu de joelhos, então agarrou brutalmente os pulsos algemados, ergueu-os violentamente para cima e arrastou-o para junto dos outros prisioneiros ajoelhados no chão.
Não conseguia continuar olhando para a cara
lívida de medo do coronel, então afastou-se andando em direção à única árvore que havia no pátio do quartel e sentou-se com as costas apoiadas em seu tronco.
Observava os homens de Ramón reunindo as armas e munições arrecadadas do quartel e transportando-as para as carroças e lombos dos cavalos.
O que não pudesse ser transportado seria destruído.
A resistência no quartel havia sido muito pequena, a maioria dos soldados, pega de surpresa havia se rendido sem lutar, alguns entretanto tinham conseguido pegar suas armas e haviam lutado bravamente, e enquanto tinham munição não se renderam.
Os guerrilheiros haviam perdido quatro homens e seis deles tinham sido feridos sem gravidade.
Ouviu que Ramón o chamava.
Levantou-se e foi até ele.
"__Imagine o que o nosso querido coronel estava fazendo neste lugar."
"__Não tenho idéia."
"__Pois preparava a construção de um enorme pavilhão com salas especiais e equipadas com os mais sofisticados instrumentos para o interrogatório de presos políticos.
Sabe o que isso significa?"
"__Sei, tive amigos que passaram por esses lugares no Brasil." Disse amargamente."
"__Pois então, os presos políticos mais conhecidos e outros também seriam transferidos secretamente da Capital e outros lugares, e ninguém iria pensar em procurá-los neste fim de mundo.
Estes dois ao lado dele são o tenente Varela e o capitão Escobar, seus assessores especiais."
Olhou com nojo e ódio para os dois oficiais ajoelhados ao lado do coronel.
Ramón ordenou aos outros prisioneiros que se levantassem e ficassem na posição de descansar.
Fez um pequeno porém eloqüente discurso para os soldados denunciando a tirania da ditadura militar, os centros de tortura espalhados pelo país, falou das pessoas simples e humildes e de outros inocentes, homens e mulheres, mutilados e assassinados pelo governo dos militares, pelo fato de lutarem por uma pátria livre.
Falou também das imensas potencialidades do país, das enormes riquezas em matérias primas que pertenciam ao povo, e que estavam sendo entregues à potência estrangeira que mantinha e assessorava os generais no poder.
Os homens haviam colocado cargas de dinamite, encontradas em profusão no próprio quartel, minando todos os edifícios e construções, até os muros e o grande portão de entrada deviam ir pelos ares.
A grande metralhadora calibre 50 já estava em
uma das carroças, com inúmeras fitas de munição contendo milhares de balas.
Aquela arma seria de grande utilidade quando os aviões viessem atacá-los, coisa que inevitavelmente iria acontecer e nem seria a primeira vez.
O pelotão de fuzilamento estava formado.
De pé contra o muro do quartel, os três oficiais torturadores olhavam desesperados para todos os lados.
Ramón postou-se diante deles e disse:
"__Coronel Gomez, Capitão Escobar, Tenente Varela, vocês são acusados dos mais abjetos e hediondos crimes contra o ser humano. Vocês não mataram em combate, em igualdade de condições, nem eliminaram inimigos armados que significassem um perigo imediato contra vocês ou seus companheiros. Vocês torturaram, mutilaram, violentaram e assassinaram prisioneiros indefesos, desarmados e imobilizados. Sabemos que fizeram isso com grande prazer, por sadismo e perversidade, contra homens e mulheres, a maioria jovens inocentes, que apenas queriam transformar este país, nossa pátria, em um lugar melhor, onde todos pudessem viver em paz e dignamente. Com a autoridade de comandante deste grupo de patriotas guerrilheiros, eu os condeno à morte por fuzilamento e lamento apenas não poder enfileirar junto com vocês todos os outros malditos
torturadores deste país e executá-los também por crimes contra a Humanidade."
Afastou-se alguns passos para a esquerda, e o pelotão formado por doze homens armados de fuzis tomou posição.
Então o coronel caiu de joelhos chorando e suplicando que não o matassem.
Dizia que apenas havia cumprido ordens de seus superiores, e entre lágrimas e soluços afirmava que não lhe cabia culpa pelos acontecimentos.
Todos notaram então que uma grande mancha marrom ia se espalhando pela parte de trás de suas calças e um cheiro fétido começava a se fazer sentir.
Ele estava evacuando, defecando de puro medo!
"__Levante-se e pelo menos morra como homem seu covarde, gritou-lhe Ramón."
Mas o coronel continuava ajoelhado e chorando agora em altos brados.
"__Pelotão, preparar! " Os ferrolhos de doze fuzis manobraram colocando uma bala ponteaguda em cada câmara.
"__Apontar, FOGO! "
Os dois homens que estavam de pé foram projetados contra o muro e o coronel que estava de joelhos foi jogado para trás, de costas.
Os três homens estavam caídos no chão, entre estertores e convulsões.
Propositalmente os guerrilheiros não haviam atirado em nenhum lugar mortal, e isso não havia sido combinado entre eles, tinha sido espontâneo, fruto do ódio.
As balas todas haviam atingido do estômago para baixo.
Ramón então começou a retirar do coldre seu revólver
38.
Em grandes passadas alcançou Ramón e segurou-lhe o pulso.
Olhou-o nos olhos e disse:
"__Deixe-me fazer isso!"
Ramón apenas assentiu com a cabeça.
Empunhou a Luger e aproximou-se dos homens caídos.
O coronel ainda estava lúcido, segurando o ventre e olhou-o com os olhos dilatados de terror.
Olhou por algum tempo para o homem caído aos seus pés e então falou em português:
"__Isto é pela mulher que eu amei, por todos os meus amigos e companheiros que homens como vocês torturaram e mataram. E é também por mim mesmo."
Ergueu a Luger, apontou entre os olhos e disparou duas vêzes, vendo aquela cabeça se esfacelar com o impacto das balas.
Então atirou também nas cabeças dos outros dois homens e ficou observando-os se imobilizarem.
Foi rápido demais, pensou.
Comparando-se com todos os sofrimentos que causaram a tanta gente, mesmo que eu pudesse matá-los mil vêzes não seria suficiente, não seria o bastante.
Ramón ordenou então que todos os soldados ficassem nus, que suas roupas fossem amontoadas e queimadas, e que fossem conduzidos até o rio nos fundos do quartel e se atirassem na água, pois o quartel todo ia ser dinamitado.
As carroças carregadas de armas e munições já haviam partido rumo às montanhas e enquanto Ramón dava as ordens finais, Juan trouxe um cavalo para ele.
Ao passar pelo portão olhou para os dois soldadinhos que havia matado, caídos no mesmo lugar.
Tinham idade para serem meus filhos, poderiam ter sido meus filhos, pensou.
Sentiu então o estômago se contrair, a garganta apertar-se mais, as mãos começarem a tremer, e a primeira lágrima caiu...
Pararam todos na encosta do monte e olharam o quartel lá embaixo.
Então, as explosões começaram em seqüência, fazendo
o solo tremer e assustando os cavalos.
Enormes línguas alaranjadas de fogo subiam para o alto, depois de cada explosão.
Quando tudo terminou, reiniciaram a marcha rumo às longínquas montanhas, cheias de grandes cavernas, rumo ao acampamento guerrilheiro.
Com as comunicações cortadas, o governo na capital demoraria pelo menos três dias até ficar sabendo do que acontecera e isso era tempo suficiente para que estivessem em segurança, em relativa segurança.
Juan cavalgava ao seu lado, quando a trilha assim o permitia, e olhava-o de soslaio de vez em quando.
Há bastante tempo já que combatiam juntos e aprendera a admirar e respeitar aquele brasilero por sua coragem, capacidade de luta e desprendimento para com os companheiros.
Mas, acima de tudo, havia aprendido a estimar aquele homem por sua sensibilidade, sua capacidade de comover-se às vêzes com coisas tão pequenas que passavam despercebidas aos outros, e a terrível luta, que travava consigo mesmo, o tempo todo, para abafar, neutralizar, vencer essas emoções, no muitas vêzes trágico dia a dia da guerrilha.
Um por do sol sangrento anunciava a chegada da noite...

IV

O capitão Diego estava na cantina dos oficiais, sentado sozinho a uma mesa, tomando um enorme copo de limonada gelada e imerso em sombrios pensamentos, quando um soldado pediu licença para entrar, postou-se a sua frente perfilando-se e batendo continência e comunicou-lhe que o coronel Oviedo pedia-lhe que se apresentasse em sua sala imediatamente.
Agradeceu, dispensou o soldado e continuou lentamente a tomar sua limonada.
Quando o copo ficou vazio acendeu um cigarro e fumou-o até o fim com os olhos perdidos no vazio.
Só então, saiu caminhando sem pressa até a sala do coronel, respondendo condignamente às continências de todos os soldados com quem cruzava.
Os soldados e oficiais subalternos o apreciavam muito por isso, pois era o único oficial em todo o quartel que sempre respondia às continências de seus subalternos.
O coronel Oviedo, baixo e gordo, encontrava-se na companhia de um sujeito de estatura mediana, musculoso, cabelos louros cortados muito curtos e frios olhos azuis.
"__Ah, capitão Diego, por favor, entre e fique a vontade, quero apresentar-lhe Mr. Ironfield, um assessor especial de seu país junto ao nosso governo."
Entrou na sala, parou a três passos do coronel, perfilou-se e bateu continência, o assessor que estava em trajes civis sentado com o coronel num sofá, levantou-se e estendeu a mão, olhando-o com um misto de curiosidade e suspeita.
Virou-se para o assessor e ainda perfilado prestou-lhe continência também, enquanto dizia: "__Como vai, senhor? " e deixando-o com a mão no ar.
Os olhos azuis tornaram-se gélidos, enquanto o assessor recolhia lentamente a mão sem deixar de fitá-lo dentro dos olhos.
O coronel, embaraçado, apressou-se a dizer: "___ Mr. Ironfield, este é o capitão Diego, um de nossos mais promissores oficiais. Sente-se capitão, preciso informá-lo de alguns graves acontecimentos. Acabo de ficar sabendo que um pequeno quartel nosso, entre as montanhas no interior do país, foi atacado e completamente destruído pelos guerrilheiros há três dias atrás. O coronel Gomez que era muito amigo de Mr. Ironfield, junto com mais dois auxiliares estava inspecionando o quartel e foram covardemente assassinados por esses miseráveis."
"__Sabe quantos homens participaram do ataque?
Que tipo de armamento tinham? Possuíam alguma artilharia, morteiros talvez? Perguntou o capitão. "
"__Não, não sabemos de nada com certeza, as informações são poucas e desencontradas, por isso decidi enviá-lo para lá para descobrir o que aconteceu e tomar as providências necessárias. Mr. Ironfield como especialista anti-guerrilha, e assessor especial junto ao nosso governo irá acompanhá-lo para prestar-lhe toda ajuda necessária, alguma pergunta? "
"__Sim, creio não haver necessidade de Mr. Ironfield acompanhar-me, posso fazer isso muito bem sem precisar de interferências estranhas em meu trabalho. "
Pela primeira vez então, o gringo falou, num espanhol fluente mas com carregado sotaque: "___ Capitão Diego, não me considere como uma interferência estranha, pois como especialista no assunto, fui formalmente solicitado pelo seu governo para colaborar na elaboração de estratégias de combate ao movimento guerrilheiro, que está desestabilizando política e economicamente seu país. Estou aqui como colaborador, como técnico, convidado e solicitado pelo seu governo, e como o coronel Gomez era meu particular amigo, pois fui seu instrutor em vários cursos que ele fêz em meu país, pedi ao coronel Oviedo permissão para acompanhá-lo nessa missão, e ele concordou, isto é, se o senhor não se opõe, capitão. "
"__É verdade, ele pediu e eu autorizei, disse o coronel. "
"__Não posso me opor a uma ordem do coronel como bem sabe, Mr. Ironfield. Quando devo partir coronel, perguntou o capitão. "
"__Esteja pronto para partir dentro de dois dias, pois antes disso quero dar uma festa em minha casa e
apresentar Mr. Ironfield a algumas garotas que eu conheço. Esta dispensado capitão."
Assim que o capitão saiu, depois de perfilar-se e respeitosamente prestar continência ao coronel, ignorando completamente Ironfield, este virou-se para o coronel e disse: "___ Fale-me sobre esse oficial, conhece-o há muito tempo? É amigo seu? "
"___ Diego? Ora, é um excelente sujeito, peço-lhe que o desculpe por seu comportamento, mas é que divorciou-se há pouco tempo da esposa, uma das mulheres mais bonitas e ricas deste país e acho que ainda esta um tanto abalado, por isso anda um pouco amargo e agressivo. Mas é um ótimo soldado, brilhante oficial e muito disciplinado. Na verdade é um modelo para o nosso exército. "
"___ Não duvido do senhor coronel, mas gostaria de uma investigação completa e sigilosa sobre esse homem."
"__Sobre o capitão Diego? Está maluco ou paranóico, Ironfield? Esse é o capitão Diego de Alzatorres Fuentes Y Alcazár. É filho único do senador da república Don Carlos de Alzatorres Fuentes Y Alcazár, um dos homens mais influentes e ricos deste país, descendente direto dos próprios conquistadores espanhóis. Se quisesse usar a influência política do pai, Diego já poderia ser até um coronel, como eu, ou talvez até mais, quem sabe? Com a imensa fortuna que tem, nunca entendi o que faz no exército, num simples posto de capitão. É um homem muito culto, fala vários idiomas e é formado numa universidade do seu país, Ironfield.
"__E sabe em que ele é formado, coronel?"
"__Não tenho certeza, mas me parece que ele é formado em Filosofia e Literatura."
"__Filosofia e Literatura? Espantou-se Ironfield. É incrível."
"__Mas, chega de falarmos sobre o capitão Diego, vamos embora para minha casa para tomarmos um banho e nos preparar para as garotas que encomendei e vão chegar à noite. Vamos nos divertir.
V

"__BUENOS DIAS, DON DIA! "
Acordou sobressaltado com os gritos de Pepe, El Gordo, que como fazia todas as manhas saudava o dia, gritando a plenos pulmões: "__Bom dia, Senhor Dia! " antes que qualquer um tivesse acordado.
Pepe, chamado de El Gordo era uma impressionante figura, com dois metros de altura e mais de cento e cinqüenta quilos de peso.
Tinha uma força descomunal e certa vez após um combate com uma pequena patrulha de reconhecimento do exército em que todos os soldados foram mortos, descobriu que um dos cavalos havia sido ferido levemente numa das pernas, estava assustado e tinha medo de firmar a pata no chão.
Pepe entrou embaixo da barriga do cavalo, ergueu-o nos ombros, carregou-o nas costas dezenas de metros e depois ficou acariciando-o e falando baixinho com ele, até o animal se acalmar, mandou os companheiros seguirem sem ele e voltou a pé até o acampamento puxando o cavalo atrás de si e conversando com ele o tempo todo.
No acampamento, cuidou carinhosamente do cavalo até que sarasse.
Dentro da pequena barraca, sentou-se na cama de palha onde uma larga manta servia de lençol e outra de cobertor.
Os cabelos negros, lisos e compridos de Carmen, estavam espalhados sobre a manta e ela resonava suavemente, não tendo acordado com a estrepitosa saudação de Pepe.
Olhou-a com carinho.
Desde que havia se juntado a esse grupo de guerrilheiros há bastante tempo já, que ela havia despertado sua atenção, primeiro pela beleza física, a pele morena clara, suave, a cintura muito fina, os quadris arredondados, os seios nem grandes nem pequenos, altos, empinados, o corpo esbelto e os cabelos negros, lisos, compridos até a cintura.
O rosto tinha traços quase que orientais, herança da mãe indígena e os olhos amendoados, quase oblíquos eram de um azul claro, límpidos e expressivos, como os do pai, que era um poeta ruivo, nascido no norte da Espanha.
O pai era dono de um pequeno jornal na cidadezinha onde moravam e um dia teve a infeliz coragem de escrever um artigo denunciando o governo pela sistemática pratica de desrespeito aos direitos humanos.
No dia seguinte, soldados armados invadiram o jornal e levaram seu pai preso para a capital.
Uma semana depois, as autoridades informaram que ele havia se suicidado na prisão, no corpo, as marcas das torturas.
Após o enterro, ela havia procurado os guerrilheiros e se unido a eles.
Quando chegara de volta do bem sucedido ataque e destruição do quartel já estava anoitecendo.
Não conseguia tirar da mente os rostos risonhos dos dois jovens soldados que havia matado, seus corpos caídos no chão, o sangue esvaindo-se de suas cabeças.
Quanto sangue seria necessário derramar ainda, até que a ditadura militar fosse vencida, derrubada, e um governo democrático, justo, voltado para o povo fosse instalado?
Quantas vidas ainda teriam de ser ceifadas, quantos sonhos interrompidos, quantas esperanças destruídas, na estúpida brutalidade dos combates?
Quantas vezes ele ainda teria de matar?
Um pouco atrás do acampamento guerrilheiro corria um pequeno riacho, de águas frias, que vinham das montanhas.
Pegou uma toalha e no escuro começou a caminhar em direção ao riacho para banhar-se.
Tirou a roupa e entrou na água fria sentindo o corpo protestar em arrepios.
Banhou-se longamente e ao sair da água sentou-se numa pedra grande, lisa, chata, para enxugar-se.
Aqueles dois soldadinhos nunca mais poderão banhar-se num riacho das montanhas, pensou, nunca mais sentirão frio ou calor, tampouco poderão fazer planos, e principalmente nunca mais rirão.
Se um dia, após a guerra acabar, e ele sobrevivesse e encontrasse seus pais, o que poderia dizer-lhes?
Fechou os olhos e sentiu as lágrimas quentes escorrerem pelo seu rosto.
Ajoelhou-se sobre a pedra e com o corpo encolhido deixou os soluços sacudirem-no, sem tentar lutar contra o pranto que era maior do que ele.
Foi assim, ajoelhado sobre uma pedra, nu e chorando sozinho no escuro, desamparado e vulnerável, que Carmen o encontrou, acariciou seu rosto, enrolou-o na toalha e conduziu-o pela mão até a barraca.
Então ela também se despiu, deitou-se abraçada a ele, colocou sua cabeça entre os seios e começou a falar com ele baixinho, suavemente, em sua língua indígena materna.
O suave calor, a tepidez do corpo nu de Carmencita colado ao seu, foi lentamente afastando os fantasmas de sua mente, todos os fantasmas.
Ao acariciar os seios rijos e acetinados, a pele incrivelmente lisa, o sexo com poucos pelos pubianos, foi tomado por uma intensa excitação, pois há muito tempo não fazia amor com ninguém.
Possuiu-a alternando ternura e violência, movimentos suaves e bruscos e depois adormeceu em seu ombro, um sono agitado e irrequieto até despertar bruscamente com Pepe saudando estrepitosamente o dia que nascia.


VI

O capitão Diego estava de pé no centro do pátio observando as ruínas do que fora o quartel.
"__ Tenho de admitir que fizeram um bom trabalho, na verdade muito bom." Disse mentalmente para si mesmo.
Várias barracas de diversos tamanhos haviam sido erguidas para abrigar o capitão Diego e a equipe que o havia acompanhado, para investigar o que realmente havia acontecido.
Em frente a maior das barracas, uma silenciosa fila, com os soldados sobreviventes, havia se formado esperando a vez de serem interrogados por um tenente e por Mr. Ironfield.
O capitão sentia uma aversão cada vez maior pele assessor especial que se metia em tudo, queria saber de tudo, e às vêzes inclusive dava ordens aos soldados e a alguns oficiais.
Abominava o fato cada vez mais freqüente de militares e civis estrangeiros imiscuírem-se nos assuntos internos de seu país.
Era um nacionalista, a própria filosofia do exército era incutir um nacionalismo ferrenho em todos os soldados e oficiais.
Como sempre havia gostado de armas, de aventuras arriscadas, de disciplina e organização, resolvera anos atrás entrar para o exército, para grande desespero e frustração do pai, um proeminente senador da república, que desejava ardentemente lançá-lo na carreira política.
Formara-se com distinção na escola de oficiais e em pouco tempo chegara ao posto de capitão, recebendo o comando de uma companhia de cem homens entre oficiais, sargentos cabos e soldados.
Seus homens o veneravam, porque não era arrogante, mostrava-se sempre amigo deles pronto para ajudá-los inclusive em seus problemas pessoais, e exercia sua autoridade com dignidade e respeito sobre seus comandados.
Como resultado, era muito querido e respeitado por todos.
Quando os generais deram o golpe, e a ditadura militar tomou conta do país, encheu-se de tristeza e indignação, colocando-se abertamente a favor da volta da democracia.
Apenas a enorme influência política do pai o salvara de perseguições e retaliações.
Quando os primeiros horrores sobre as prisões arbitrárias e as torturas que eram praticadas contra os prisioneiros políticos, começaram a circular veladamente nos quartéis, sua indignação começou a beirar um ódio violento e perigoso.
Sentiu-se traído pelo exército que tanto amava, mesmo sabendo que a imensa maioria dos oficiais e soldados era visceralmente contra as terríveis violações aos direitos humanos, que uma minoria sádica e mentalmente desequilibrada, insistia em usar para aterrorizar a população e tentar calar a oposição política.
Olhava ainda as ruínas do quartel e admirava-se da coragem e determinação dos homens que haviam conseguido fazer aquilo, arriscando a própria vida e arriscando-se a coisas muito piores se fossem agarrados vivos e caíssem nas mãos do coronel Gomez e seus auxiliares.
Não sentia pena e nem lamentava o que havia acontecido com os três oficiais torturadores.
Achava que tinham merecido o que lhes tinha acontecido, pois outros oficiais do quartel por ocasião do ataque haviam sido feitos prisioneiros e não tinham sido maltratados.
Ouviu passos apressados atrás de si e voltou-se rapidamente, encarando o sargento Rodriguez que parou abruptamente, fez uma rápida continência e muito pálido num tom de urgência na voz, quase como que pedindo socorro disse-lhe:
__Capitão, por favor, venha depressa, o gringo esta torturando um velho na barraca maior.
__ O quê?
__ Sim, Capitão, ele acha que como o velho mora aqui há muitos anos, possivelmente forneceu informações para os guerrilheiros e deve conhecê-los, por isso o esta torturando, para que fale.
__ Vamos, disse o Capitão, e começou a correr em direção à barraca maior, seguido pelo sargento.
`A medida que se aproximava da barraca, começou a ouvir horripilantes gritos de dor. O que viu deixou-o primeiro estarrecido, depois indignado e em seguida uma violenta onda de ódio apossou-se dele.
No centro da barraca, nu e pendurado de cabeça para baixo, os cabelos brancos roçando o chão, as pernas muito abertas presas por cordas, as mãos algemadas nas costas, estava um homem muito magro e de aspecto muito velho.
Um cassetete estava enfiado em seu ânus, fios elétricos estavam amarrados em seu pênis e numa das orelhas, ligados a uma máquina de choques, um dos olhos havia sido arrancado, e da órbita vazia escorria um filete de sangue.
Com um brilho de loucura e sadismo no olhar, Ironfield com uma barra de chumbo curta e redonda desferia golpes no cassetete, nos rins do velho, nos testículos, chutava-lhe o rosto, a cabeça, o abdomem e gritava-lhe palavras desconexas em inglês, idioma que o velho com certeza não entendia.
Montando guarda, dois soldados armados de metralhadoras não disfarçavam seu mal estar em assistir aquilo.
Ao vê-lo, Ironfield deu-lhe um sorriso demoníaco, como que convidando-o a participar daquilo.
Arrancou a metralhadora das mãos de um dos soldados e desferiu uma coronhada no rosto de Ironfield que cambaleou cuspindo pedaços dos dentes, em seguida aplicou-lhe um pontapé nos testículos fazendo-o dobrar-se em dois, outro chute no rosto derrubou-o sentado no chão, outra coronhada na cabeça terminou por fazê-lo estender-se de comprido.
Então o Capitão Diego começou a chutar-lhe a cabeça, as costelas, o abdomem enquanto gritava:
__ Gringo ordinário, covarde, torturador assassino!
Destravou então a metralhadora e esvaziou o pente disparando ao redor de Ironfield, e por mais que quisesse matá-lo, não conseguia atirar num homem indefeso.
Foi contido por seus próprios homens que tomaram-lhe a metralhadora e levaram-no para fora da barraca pedindo-lhe que se acalmasse, pois se matasse o gringo certamente enfrentaria uma corte marcial, com conseqüências imprevisíveis.
Ordenou então que o pobre velho fosse solto, cuidado por um médico e levado para o mais próximo hospital para que recebesse um tratamento adequado.


VII

No acampamento guerrilheiro, sentados em círculo e no chão, Ramón e seus auxiliares mais próximos ouviam atentamente o relato de um jovem camponês que contava minuciosamente tudo o que havia ocorrido nas ruínas do quartel quando os militares chegaram para investigar o que havia acontecido.
Deu o nome completo do capitão Diego e para espanto de todos narrou em detalhes a reação enfurecida do capitão contra o gringo torturador.
Todos concordaram que era preciso muita coragem ou loucura para que alguém do próprio exército se atrevesse a atacar fisicamente um dos temidos assessores especiais da ditadura pelo prestígio e poderes quase ilimitados que eles tinham junto ao governo dos generais.
Era um nome para ser lembrado, o desse capitão.

A enorme borboleta azul adejava sobre as águas límpidas do pequeno riacho, depois veio voando sobre a grama próximo onde estavam...
Em silêncio olhavam as evoluções do vôo da borboleta azul...
Carmen acomodou-se melhor em seu colo e ele abraçou-a sentindo um carinho imenso por ela.
Estava sentado, com as costas apoiadas numa grande pedra e Carmencita tinha o tronco em seu colo, abraçada a ele e sentia-se feliz pela primeira vez em muito tempo...
"__Tão bonita a borboleta Brasilero..
"__Si Carmen...bonita e efêmera...efêmera como todas as coisas bonitas...
"__É verdade...a felicidade nunca costuma durar muito tempo, nem as coisas bonitas demais, por isso é necessário vivê-las intensamente, durante o tempo que o Destino o permite...
"__O Destino Carmen...às vêzes me pergunto quem maneja O Acaso...e na verdade, espero nunca saber.
Veja a borboleta Carmencita...primeiro uma simples lagarta que depois transforma-se em borboleta e consegue voar...conhecer uma pequena parte do mundo, encantar talvez os olhos de quem sabe ver, mas...tudo tão rápido...um tempo tão curto, então tudo se acaba, sem deixar memória...
__Talvez para ela, o tempo seja diferente, seja tão longo quanto é para nós o transcorrer de uma vida...diga-me Brasilero...você acha que uma borboleta consegue sonhar?
Dentre todos os mistérios do mundo, poderá haver um sonho de borboleta?
__Acho que nunca o saberemos Carmen, como nunca saberemos também em que ponto do Universo são fabricados os sonhos, de onde é tirado esse material tão tênue, tão diáfano e ao mesmo tempo tão denso e poderoso de que são feitos os sonhos...
__Acho que você é feito desse mesmo material Brasilero..
__Que material Carmencita?
__O material de que são feitos os sonhos..
Os olhos azuis olhavam-no intensamente, ele sentiu seus próprios olhos encherem-se de lágrimas, inclinou-se e beijou suavemente aqueles lábios macios e úmidos.
Sabia que estavam cometendo um grande erro, permitindo-se aproximarem-se emocionalmente daquela maneira, amanhã, uma bala, um estilhaço de granada, uma rajada de metralhadora, poderia matar a um deles, ou aos dois o que seria menos pior.
Laços de amizade dentro do cotidiano da guerrilha, já podiam se transformar na origem de tanta dor psíquica, laços de amor então podiam desencadear desesperos intensos demais, mas, quem consegue dominar, comandar, o coração?
"__Carmen...Carmen... talvez, o próprio amor seja um sonho de borboleta...a guerrilha, as lutas, a determinação de lutar para mudar as coisas, os sacrifícios, as lágrimas, o riso, a felicidade e a tristeza, a alegria e o desespero, a esperança.. Carmen...talvez a própria Vida em si, não passe de um sonho de borboleta...que se extingue rápido, na maioria das vezes, sem deixar memória...
__Não quero pensar sobre isso Brasilero, acho que é melhor amar as pessoas como se não houvesse amanhã...
Olhou a Cordilheira ao longe...as flores de Amancay já estavam florindo, por todos os lados...tão bonitas, tão delicadas...
Colocou a mão esquerda dentro da blusa de Carmencita e acariciou um seio firme e macio, ficou com seio dela em sua mão, mas o desejo foi sublimado pela ternura e sentiu contente que Carmen havia compreendido isso...
A grande borboleta azul veio voando e pousou sobre sua mão direita...
"__Diga-me Brasilero... porque veio lutar ao nosso lado? Porque não ficou em seu país lutando contra a ditadura de lá? "
Olhou novamente para as montanhas ao longe... deixou o pensamento voltar... voltar... a garganta apertou-se... o peito oprimido... a voz se fez trêmula...

"__Eu... amava muito a uma garota... tínhamos um relacionamento há vários anos já...então... ela ficou muito doente... Tudo foi feito, tudo foi tentado... para que ela pudesse se recuperar... mas, foi tudo inútil... ela suicidou-se com um tiro na cabeça...

"__Mas, que doença ela tinha?

"__Uma doença mental... esquizofrenia e paranóia... perdia o contato com a realidade... transformava-se em outra pessoa... completamente diferente... um dia matou-se... com uma arma que eu lhe havia dado de presente...

"__Deve Ter sido muito duro para você, muito doloroso..

"__Sim, foi muito doloroso... muito triste... tentei seguí-la...

"__Seguí-la? Como assim?

"__Eu costumava andar sozinho pela selva amazônica pelo menos uma vez por ano, embora morasse longe da Amazônia... era sozinho no meio da selva que eu costumava escrever meus livros...

"__Escrever livros? Você é um escritor, Brasilero?

"__Sim... sou... ou fui... há muito tempo que não consigo escrever nada... mantenho apenas um diário... entre minhas coisas...mas, sem citar nomes nem lugares...por motivos de segurança... caso me aconteça algo... e alguém pegar o diário...

"__Isso explica então essa sua sensibilidade... diferente dos outros... você é diferente de todos os outros homens... mas, você disse que tentou seguí-la... como?

"__Logo após ela Ter morrido, voltei para a selva...perambulei sozinho por lugares tão remotos que acho que ninguém havia estado lá antes... encontrei-me com um grupamento indígena... eles se chamavam de "Neherethày..." O líder espiritual deles chamava-se Arauá... olhou demoradamente dentro de meus olhos e determinou que eu fosse aceito entre eles...

"__Deve Ter sido uma experiência fascinante o contato com pessoas não contaminadas pela chamada civilização...

"__Sim, foi... os valores deles eram outros... mais puros... mais nobres... Mas, então... uma noite, a lua cheia estava belíssima no céu... a lembrança, a saudade dela, começou a ferir muito fundo... havia uma cachoeira, um pequeno lago após a cachoeira, onde havia uma grande pedra escura... Até hoje, não entendo bem o que aconteceu... eu nadei até a pedra no meio do lago, com uma pistola automática na mão... Comecei a entoar o cântico dos mortos que eu havia aprendido com os Neherethày... encostei a pistola na cabeça e apertei o gatilho...

"__Meu Deus!!! Mas, e daí? O que aconteceu?

"__A pistola falhou... e eu... não consegui mais apertar o gatilho novamente...

Carmen ajoelhou-se então em sua frente...dos olhos azuis rios de lágrimas rolavam... pegou o seu rosto entre suas mãos, beijou-o e abraçou-o carinhosamente, ficou com sua cabeça em seu ombro... ele chorava também... ficaram abraçados... misturando suas lágrimas...
A borboleta azul... graciosamente voava ao redor deles...

"__Arauá disse-me então: Nahara Kungô Eckthà?... Quem maneja o Acaso?... Disse-me também que havia um "Ká"... ou Destino a ser cumprido e que a Vida ainda iria exigir muita coisa de mim... Que a Vida ainda seria obrigada a exigir-me muita coisa... Coisas bonitas e coisas tristes, como a própria Vida...

"__Mas, então, o que aconteceu depois, que fez você acabar vindo lutar junto conosco?

"__Quando voltei para a cidade onde eu morava, descobrí que vários amigos meus haviam sido presos pelos agentes da ditadura, foram torturados, alguns foram mortos... foram obrigados sob tortura a dar nomes de pessoas... tivessem elas ou não alguma ligação com os movimentos armados que enfrentavam corajosamente a ditadura... eu não tinha nenhuma ligação com nenhum grupo, mas meu nome havia sido citado não se sabia por quem... Eu descobrí então que estava sendo procurado... sem ter culpa nenhuma de nada... Mas, sabia o que me aconteceria se fosse pego...
Eu tinha algum dinheiro guardado... Saí do Brasil e entrei como turista, num país vizinho... Pretendia trabalhar como professor de linguas estrangeiras, até que as coisas se normalizassem em meu país para voltar...

"__Mas, o que fez com você acabasse entrando para a guerrilha?

"__Percebi que a raiz do Mal era a mesma... o governo gringo derrubando os governos democráticos em toda a América Latina, colocando generais e políticos vendidos aos seus interesses econômicos no lugar de governantes eleitos pelo povo... e que queriam o bem de seus povos... mas contrariavam os interesses dos gringos... lutando aqui, estou lutando também por meu país, pelos países vizinhos, e de certa forma, por toda a humanidade... pelos que sonham um dia com justiça, paz, alegria, felicidade, oportunidades de realizar os sonhos... Sei que provavelmente não chegarei a ver esse dia... mas, devo essa luta à minha consciência, ao meu Eu Interior...

Levantaram-se e de mãos dadas caminharam em direção ao acampamento...

A borboleta azul havia desaparecido, levando junto talvez um sonho de borboleta...






VIII


O Capitão Diego sentado uma poltrona observava o Coronel Oviedo caminhar nervosamente pela sala de seu gabinete.
Estava visivelmente constrangido e tentava encontrar as palavras adequadas a situação.
"__Diego meu amigo, gosto muito de você e tenho um grande respeito pelo seu pai o Senador, mas o que você fez foi muito sério e grave.
Mr. Ironfield esta muito mal, foi levado de avião para seu país para ser tratado em um grande hospital das forças armadas deles.
Esta com várias costelas quebradas que perfuraram seus pulmões, esmagamento dos genitais e suspeita-se de danos neurológicos irreversíveis, os gringos agora pressionam a cúpula de nosso exército, querem a sua cabeça meu amigo.
Recebi ordens de prendê-lo, parece que querem levá-lo a corte marcial.
"__Coronel, apenas fui em defesa de um cidadão de nosso país, que estava sendo barbaramente torturado, por um cidadão estrangeiro em nosso próprio país, com a agravante que o torturado era um senhor muito velho, provavelmente doente e que merecia todo o respeito como ser humano.
Como oficial de nosso exército, e como homem de bem, eu não poderia Ter agido de outra maneira, minha consciência não permitiria que eu me omitisse, que não fizesse nada e por falar nisso, sabe como esta o velho? Eu ordenei que fosse levado a um hospital.
"__O velho morreu." ...disse o Coronel.
O capitão Diego sentiu o ódio invadir seu coração..
"__Mas, diga-me Capitão, é verdade que havia um estrangeiro entre os guerrilheiros?
"__Sim, um brasileiro. Parece ser o atirador de elite deles e esta com eles já há algum tempo.
Não conseguimos descobrir seu nome, pois todos o chamavam apenas de "Brasilero" e foi ele quem deu os tiros finais no Coronel Gomez e seus auxiliares. Descobrimos também que foi o grupo de Ramón que executou o ataque contra o quartel e levaram consigo todo armamento e munição que conseguiram carregar. Mas, diga-me, então estou preso?
"__Diego, acho que é injusto prender alguém igual a você, mas tenho de dar satisfações aos meus superiores como você bem o sabe, então vamos fazer o seguinte: Você fica livre dentro do quartel, mas não poderá sair daqui durante uns dias, depois, eu permitirei que saia, mas você deverá vir dormir todas as noites aqui no quartel no alojamento dos oficiais, enquanto isso, entre em contato com seu pai e peça-lhe para usar sua influência política junto ao governo, para tentar neutralizar essa situação, que lhe parece?
"__Parece-me muito bem Coronel e eu agradeço-lhe por toda essa deferência.
Sentado na Cantina dos Oficiais, com um imenso copo de limonada a sua frente, o olhar perdido no vazio, O Capitão Diego refletia sobre os últimos acontecimentos de sua vida.
Pensava na ex-esposa e em seu casamento frustrado, pensava em como havia podido se enganar tanto em relação a uma pessoa como o havia feito com sua ex-mulher.
Ela era belíssima, filha de uma família muito rica, acostumada a freqüentar a alta sociedade, a bailes, viagens de lazer pelo exterior, era culta, inteligente e tinha uma conversa interessante.
Haviam-se conhecido numa festa numa embaixada estrangeira, onde o pai praticamente o havia obrigado a ir, pois as mais importantes personalidades políticas e empresariais do país estariam presentes e o pai ainda tinha esperanças de que ele se licenciasse do exército e acabasse entrando para a política.
O que ele não sabia era que o pai dele e o pai dela haviam combinado de fazerem-nos se encontrarem, se aproximarem e se disso resultasse um casamento, a união das duas fortunas, dos grupos empresariais, de todos os interesses financeiros dentro e fora do país que os dois tinham, fariam deles os herdeiros talvez da maior fortuna do país e consequentemente a maior força política também...
Ele havia sucumbido ante a beleza loura natural dela, as formas perfeitas, o rosto muito bonito.
Depois, impressionara-se com sua conversa culta e inteligente e passaram a se encontrar com cada vez mais freqüência, a passearem juntos...
Não conseguiu dar a devida importância ao primeiro aviso, quando ela fez-lhe ver ainda que veladamente que sentia-se de certa forma decepcionada, por ele contentar-se em ser apenas um oficial do exército...
Outros avisos vieram em seguida... a irritação dela por motivos fúteis, às vêzes um tom de arrogância e superioridade na voz ao falar com pessoas mais simples e humildes...avisos que não conseguiu perceber a tempo, deslumbrado por sua beleza física e achando que estava se apaixonando por ela...
Então, uma tarde ele fez amor com ela...e ela fez sexo com ele...
Foi para ele uma espécie de choque...
Não era nenhum ingênuo e sabia que uma mulher como ela independente, rica, bonita, culta e viajada certamente já deveria Ter tido experiências amorosas e sexuais em sua vida, mas não esperava dela tanta desenvoltura e experiência na cama logo na primeira vez com ele... na verdade, muito mais experiência e desenvoltura do que ele próprio...
Não se considerava nenhum machista, procurava não Ter preconceitos contra nada nem ninguém neste mundo, mas achando-se apaixonado por ela, de certa forma o desgostou imaginar a quantos homens ela deveria ter se entregado até adquirir tão vasta experiência sexual, mostrada sem constrangimentos e nenhuma espécie de timidez em gestos, posições, palavras, exigências, criatividade, imaginação, de quem já havia feito aquilo vezes sem conta.
Mas, no fundo percebeu, sentiu, quase que uma ausência de sentimentos por parte dela... como se ela quisesse apenas satisfazer a sua vontade de sentir prazer, e dele fosse o pênis escolhido para isso naquele momento... Percebeu a escassez de carinho por parte dela...antes, durante e principalmente depois... nenhum romantismo... nenhum olhar de ternura... nenhuma "magia"... como ele havia imaginado que pudesse haver na primeira vez... e em todas as outras...
Acabou emocionalmente e espiritualmente frustrado sem querer admitir isso para si mesmo... sem se dar conta mais uma vez de que um outro aviso acabava de ser-lhe mostrado.
Acabaram se casando dentro de alguns meses e uma enorme e importante festa foi dada para marcar o acontecimento.
Não demorou para que os problemas surgissem e se agravassem...
Ao falar com ela sobre quando ela achava que seria conveniente terem um filho recebeu uma resposta dura e cortante.
Ela disse-lhe que não pensava em arruinar a beleza de seu corpo com uma gravidez, que um filho iria limitá-la, atrapalhar sua intensa vida social e impedi-la de continuar a levar a vida à qual estava acostumada.
Depois, foi ríspida e agressiva com ele, perguntando-lhe se ele achava que havia se casado com alguém com vocação para ser dona de casa e parideira de uma prole.
Foi também muito cruel ao dizer-lhe que queria que ele abandonasse o exército, que se lançasse na política e começasse a gerenciar os enormes interesses econômicos da familia.
Ponderadamente ele respondeu-lhe que o pai se desincumbia muito bem da condução dos negócios e que quando fosse o momento ele assumiria esse posto, estava no exército porque gostava e sentia-se bem naquele ambiente e quanto a iniciar-se na política, tinha um nojo tão grande de todos os políticos que dificilmente conseguiria conviver pacificamente com aquele tipo de gente, portanto estava descartada por enquanto a possibilidade dele misturar-se com aquela gente.
A partir daí sua vida com ela mudou.
Ela começou de certa forma a negar-se como esposa para ele, a negar-se como mulher... raramente tinha vontade de fazer sexo com ele, quase não saíam mais juntos, não passeavam juntos... não ficavam de mãos dadas... ela passou a reclamar de tudo e de todos... saía cada vez mais para seus compromissos sociais, como dizia... Começou a viajar sem ele... foi se tornando fria e distante... cada vez mais fria e mais distante.
Começou a passar noites fora de casa, dizendo que iria dormir na casa de uma amiga.
Seu orgulho próprio, seu brio como homem, impedia-o de investigar se ela estava saindo com outro homem ou não...
Começou a se sentir cada vez mais sozinho... cada vez mais solitário...
Até que resolveram se divorciar, para grande alívio dela...
IX

Três dias depois, o Coronel Oviedo comunicou ao Capitão com um grande sorriso nos lábios que as acusações contra ele haviam sido retiradas, não estava mais preso nem cogitavam em submetê-lo a nenhuma corte marcial.
O Senador da República havia ameaçado chamar a imprensa internacional, denunciar os abusos que Mr. Ironfield havia cometido com a anuência dos governantes, relatar a tortura e a morte do velho camponês, mostrar aos repórteres onde havia sido enterrado o corpo, exigir a exumação do cadáver e uma necrópsia séria e independente.
Mais ainda do que isso, havia ameaçado passar para a oposição política e principalmente interromper por tempo indeterminado as propinas e auxilios financeiros particulares para membros do alto escalão do governo.
Foi o suficiente.
Só faltaram pedir-lhe desculpas pelo equívoco em relação ao Capitão Diego, único filho do Senador.
Bem, não estava mais preso.
Lembrou-se então de que alguns meses após Ter-se divorciado, andando a esmo pela cidade havia se deparado com um circo e resolvido entrar.
Lembrou-se também que quando criança, ninguém nunca o havia levado a um circo...
Estava em trajes civis, pois usava a farda apenas quando estava no quartel ou em manobras militares
Ao invés de comprar uma entrada para as cadeiras numeradas, resolvera sentar-se nas arquibandas gerais, junto com as pessoas comuns do povo.
Um pouco antes de começar o espetáculo, uma moça morena clara, vestida com simplicidade, pediu-lhe licença e sentou-se ao seu lado.
Tinha os cabelos negros compridos e um rosto de uma beleza calma e serena, onde sobressaíam uns olhos doces e uma boca muito bem feita.
Começaram a conversar e ela falava sem erros, demonstrando ser uma pessoa de bastante leitura, tinha uma voz agradável e transmitia uma sensação de paz, de equilíbrio, de harmonia e parecia haver toda uma aura irradiando tranqüilidade e boas vibrações em torno dela.
Durante a conversa ficou sabendo que ela trabalhava numa fábrica durante o dia e à noite freqüentava a Universidade, onde estudava Linguas Estrangeiras e Comércio Exterior.
Na verdade, segundo ela, gostaria mesmo é de formar-se em Medicina, para ajudar a tratar dos pobres do país, mas não tinha condições financeiras de fazer o curso, que ocuparia o dia inteiro e ela precisava trabalhar.
Ele omitiu-lhe sua condição de militar, de oficial do exército e disse que trabalhava numa pequena empresa que pertencia ao seu pai.
Após pouco tempo de conversa, tinham a impressão que se conheciam já há muito tempo, tanta foi a sintonia psíquica e espiritual que se fez presente entre eles.
Após o espetáculo do circo ter se acabado, ofereceu-se para acompanhá-la até a sua casa, ficou sabendo então que ela se chamava Maria González e morava ali perto.
Não lhe contou que ele tinha vindo de carro e ao saírem do circo, ofereceu o braço a ela, que timidamente aceitou.
Logo depois, tomou a mão dela e de mãos dadas foram caminhando até onde ela morava.
Sentia uma sensação muito agradável junto àquela garota bastante jovem ainda, mas que revelava uma grande maturidade.
Ela disse-lhe que morava com os pais e um único irmão que fazia parte do sindicato de uma fábrica onde trabalhava e que aquela noite estava em reunião na fábrica.
Pediu-lhe mil perdões por não convidá-lo para entrar em sua modesta casa, mas os pais estavam sozinhos e ela que nem sequer tinha namorado, não podia assim de repente, convidar um estranho para entrar em sua casa.
Ele disse que compreendia, que ela não ficasse constrangida com isso, perguntou se poderia vê-la novamente um dia e ela disse-lhe que sim, mas que poderia ser apenas em algum final de semana, pois trabalhava o dia inteiro e estudava à noite.
Ao se despedirem, abraçou-a levemente, olhou para aquela boca tão bonita e inclinou-se para beijá-la.
Ela desviou o rosto educadamente e ele beijou-lhe apenas a face...
Voltou para a casa com a imagem daquela moça simples e tão bonita na cabeça, tentando analisar o porque de ter-se sentido tão bem junto a ela.











X

No acampamento guerrilheiro o clima era de apreensão.
Notícias trazidas por simpatizantes e informantes davam conta que toda uma companhia de soldados gringos, das chamadas Forças Especiais deles, em breve chegaria ao país para caçar os guerrilheiros.
Eram homens com treinamento e equipamentos especiais, usados exclusivamente para ações no exterior e conhecidos por sua frieza e crueldade, além de serem temíveis combatentes, capazes de lutar em qualquer tipo de terreno.
Ficaram sabendo também que Mr. Ironfield que quase havia sido liquidado pelo capitão Diego e que continuava internado em estado crítico num hospital militar de seu país, era integrante também dessas chamadas Forças Especiais.
Os cuidados no acampamento foram redobrados, aumentou-se o número de sentinelas que escondidos e camuflados vigiavam todos os possíveis caminhos por onde se podia chegar ao acampamento.
Mas, estava todo mundo tenso e alerta.

"__Você esta preocupado Brasilero...

"Foi surpreendido pela voz doce de Carmen que havia se aproximado dele por trás, silenciosamente, enquanto ele desmontava e limpava uma metralhadora.

"__Sim, Carmencita...se formos atacados por essas tropas especiais teremos um combate muito difícil, muitos dos nossos provavelmente morrerão e na verdade eu estou preocupado por você minha querida.

"__Preocupado por mim? "

"__Sim, não quero que lhe aconteça nada de ruim, não quero que voce acabe sendo ferida ou coisa pior Carmen. "

"__Fico comovida Brasilero, mas sempre soubemos que quando nos decidimos por esse tipo de luta, o pior poderia acontecer, eu também não quero que lhe aconteça nada...voce acabou se tornando uma pessoa muito especial...importante para mim..."
"__Você também Carmencita....não imagina o quanto...se tornou importante e especial para mim....diga-me, gostaria de conhecer o Brasil um dia? "

Os olhos oblíquos e azuis brilharam por um momento e ela disse:

"__Ah, eu adoraria...principalmente estando com vc... mas, isso só seria possível depois que nossa luta terminasse, depois de conseguirmos derrubar a ditadura militar... e também... se sobrevivermos..."

Uma nuvem de tristeza repentinamente toldou os olhos azuis...

Abraçou-a carinhosamente, sentindo os seios jovens e rijos contra seu peito e de repente passou-lhe pela cabeça que poderiam estar se despedindo sem o saber e uma dolorosa angústia começou a apertar-lhe a garganta e o coração.
O acampamento estava localizado estrategicamente entre as montanhas, onde haviam inúmeras cavernas e trilhas que levavam para o outro lado e do outro lado das montanhas era um outro país, um país vizinho onde ainda não havia nenhuma ditadura, em último caso, era uma rota de fuga pois ninguém se atreveria a perseguí-los além das montanhas, do outro lado da fronteira.
As flores de Amancay resplandeciam as cores da vida por todos os lados...

XI

No domingo à tarde, o capitão Diego resolveu ir até a casa da garota que havia conhecido no circo há semanas atrás.
Como ela não tinha telefone, não havia como ligar para ela e perguntar se podia ir visitá-la ou não.
Mas, era final de semana e ela lhe havia dito que ele poderia ir visitá-la num sábado ou domingo, pois estudava e trabalhava a semana inteira.
Vestindo trajes civis, simples mas de bom gosto, bateu levemente na porta da modesta casa, sentindo estranhamente o coração acelerar-se agradavelmente ante a expectativa de encontrar-se novamente com ela, de convidá-la para passear, de caminharem de mãos dadas novamente, conversarem tranqüilamente, jantarem juntos talvez...
A lembrança daquela beleza calma, doce e serena atraía-o como um oásis a um caminhante exausto e sedento... aquela garota transmitia uma estranha paz, harmonia, equilíbrio e deixava intuir uma inesgotável capacidade de dar e receber amor...
Um casal quase idoso, com olhares assustados abriu temerosamente a porta.
Ambos tinham os olhos vermelhos de chorar.
Inquieto, disse-lhes que se chamava Diego, que havia conhecido a Maria Gonzáles há algumas semanas atrás e ela lhe havia dito que ele poderia visitá-la em algum final de semana e ele tinha vindo ver se ela estava e se poderia recebê-lo.
Notou que o homem e a mulher, pais de Maria olharam inseguros um para o outro e então a mulher explodiu em prantos, contando-lhe que no dia anterior, sábado, logo pela manhã um grupo de soldados comandados por um tal de tenente Ortiz, havia invadido a casa à procura do filho deles, Pablo que era um sindicalista e estava ausente.
Havia também um homem de olhos claros, em trajes civis que parecia ser um gringo, junto com os soldados e que havia interrogado exaustivamente a todos perguntando sobre o paradeiro de seu filho Pablo.
Como não haviam encontrado Pablo, levaram presa a Maria para interrogá-la no quartel da rua Miraflores deixando o recado para que quando Pablo aparecesse, se apresentasse no quartel e soltariam sua irmã.
O pai de Maria perguntou-lhe então se ele poderia ajudar de alguma maneira, se conhecia alguém entre os militares, se tinha porventura algum amigo no quartel.
Sim, ele disse que o pai dele conhecia alguns oficiais e que ele imediatamente iria ver o que poderia fazer.
A mãe de Maria chorando, pegou-lhe as duas mãos, beijou-as antes que ele pudesse retirá-las e implorou-lhe para ajudar a filha, para tentar tirá-la de lá...
Ela havia sido presa na manhã do dia anterior... sabe-se lá Deus o que já poderiam ter feito com ela...
Dirigiu em alta velocidade como um louco até o quartel da rua Miraflores, estando em trajes civis, foi barrado grosseiramente por um sentinela armado que perfilou-se e prestou continência respeitosamente, quando ele identificou-se como capitão do exército e exigiu ser levado imediatamente à presença do tenente Ortiz.
Numa pequena sala onde havia apenas uma escrivaninha cheia de papéis e um sofá em péssimo estado o tenente Ortiz perfilou-se e bateu continência para o capitão Diego.
Era um tipo alto e gordo, moreno com dentes estragados e profundas olheiras permanentes que o transformavam numa visão desagradável de se ver.

"__O senhor e seus homens prenderam ontem pela manhã uma garota chamada Maria Gonzáles tenente?"

"__Sim, capitão, ela é irmã de um subversivo chamado Pablo, na verdade fomos para prendê-lo mas como não o encontramos trouxemos a irmã, esperando que ele se apresente, coisa que esses idiotas geralmente fazem quando pegamos alguém da familia... disse com uma risadinha de deboche.
Mas, os senhores também estão interessados nesse Pablo?"

"__Não, no momento eu quero saber o que foi feito com a moça, Maria Gonzáles."

"__Ah, capitão... foi muito divertido!!!"... desta vez o tenente deu uma grande gargalhada, mostrando os dentes podres e enegrecidos.

"__Divertido???...

"__Sim, logo que a trouxemos a colocamos numa cela onde há uma cama e quando começamos a arrancar-lhe as roupas, ela gritava que era virgem, que não a molestássemos, implorava pelo amor de Deus que não fizéssemos nada com ela..." disse rindo o tenente.

"__E daí?" perguntou o capitão sentindo um ódio frio ir tomando conta dele.

"__Daí que eu pessoalmente resolvi verificar se era verdade... gosto de virgens... gosto de arrebentá-las... e ela era realmente virgem... um corpo escultural capitão... foi muito divertido... e ela gritava e gritava... gostei muito!!!
Depois que me cansei deixei os soldados se divertirem com ela também, fazerem tudo o que tivessem vontade, até o assessor gringo participou, dizia que no país dele não existem mulheres tão saborosas quanto as nossas.
Depois, a interrogamos para descobrir o paradeiro do irmão, mas ela realmente não sabia onde ele pode estar, até os cães especiais foram usados, mas não adiantaram de nada."

"__Cães especiais tenente?"

"__Sim, coisa dos gringos, eles que trouxeram, são uns cães enormes com um pênis imenso e adestrados para violentarem, estuprarem mulheres e homens também, pois bem, ela estava nua e amarrada e os cães a violentaram e morderam-na toda, precisava ver como ela gritava capitão, fazia tempo que eu não me divertia tanto!!!" ... o tenente continuava rindo ao contar os detalhes.

"__E onde ela esta agora tenente?"

"__Ah, morreu faz algumas horas capitão, acho que os rapazes exageraram um pouco na "diversão"... disse ainda rindo o tenente... e o assessor gringo queria demonstrar umas técnicas novas para se interrogar mulheres... acho que se entusiasmaram demais..." novamente a risada asquerosa... O senhor quer vê-la capitão?"

"__Não, não quero tenente" disse o capitão... uma dor fina e aguda dilacerando-lhe o peito... o coração..." E o que o senhor vai dizer à familia dela tenente?"

"__Ora, o de praxe capitão, que ela suicidou-se na cela, ou foi atropelada por um carro que fugiu quando a libertamos, ou que conseguiu pegar a arma de um dos soldados e atirou contra nós... temos várias escolhas, isso nunca foi problema. Mas, desculpe por perguntar capitão, qual era o seu interesse nessa garota? "

O capitão Diego não respondeu...apenas olhou fixamente por um longo tempo para os olhos do tenente e sem dizer uma única palavra saiu da sala e do quartel.
Aquela madrugada, quando o tenente Ortiz saia meio bêbado de um prostíbulo, um desconhecido aproximou-se dele no meio da rua e disparou vários tiros de uma pistola 45 militar entre suas pernas, destroçando-lhe o pênis e os testículos e deixando-o caído na rua urrando de dor e esvaindo-se em sangue, enquanto o desconhecido sem dizer uma única palavra desaparecia numa esquina...


Pela manhã, um atônito coronel Oviedo assistia em seu gabinete ao capitão Diego, com um rosto duro como pedra, assinar todos os papéis desligando-se do exército...





XII

Poderosos binóculos e lunetas focalizaram e acompanharam o cavaleiro solitário que cavalgava a meio galope por uma trilha entre as montanhas.
Tinha um magnífico fuzil austríaco de longo alcance preso junto a sela do cavalo, portava um cinturão com uma pistola no quadril direito e na cabeça um quépi amarelo, tipo militar.

"__Alguém sabe quem é?" perguntou Ramón aos sentinelas. "__Alguém o reconhece? "

Não, ninguém sabia quem poderia ser...quem poderia estar andando sozinho e tão bem armado numa região que todos sabiam que era território dominado pela guerrilha... Continuaram a observá-lo atentamente, pois poderia ser algum truque, alguma armadilha, para fazer com que se expusessem e fossem atacados por tropas que poderiam estar ocultas...

Então, um dos sentinelas que estava com um binóculos deixou escapar uma exclamação de assombro!

"__Mas, não é possível!! É o capitão Diego!!!"

"__Tem certeza?" Perguntou Ramón.

"__Sim, não há dúvidas! Eu o vi bem lá no quartel que destruímos aquela vez, quando os militares vieram investigar. É ele sim! É aquele oficial que agrediu e quase matou o gringo torturador. Tenho certeza que é ele! Mas, o que estará fazendo por aqui e além disso sozinho?"


A trilha estreitava-se entre enormes pedras e era necessário ir mais devagar... de repente o cavalo refugou e parou.

Vários homens surgiram de entre as pedras e ele viu fuzis, metralhadoras e pistolas engatilhadas apontadas para ele... os homens o cercaram em silêncio, sempre apontando-lhe as armas.

Com as mãos cruzadas sobre a sela do cavalo, olhou para todos sem fixar-se em ninguém em particular, respirou fundo e com uma voz calma e bem timbrada disse:

"__Meu nome é Diego de Alzatorres Fuentes Y Alcazár e eu vim até aqui para juntar-me a vocês, para lutar, combater ao lado de vocês, se me aceitarem..."

"__Nós sabemos quem você é Capitão." disse Ramón..." __Desça do cavalo e nos acompanhe, acho que temos muito a conversar..."...


XIII

A inquietante sensação de perigo iminente, a dolorosa intuição de perda importante, continuava a perturbá-lo...

Sem que Carmencita o percebesse, olhava demoradamente para ela, admirava-lhe o corpo tão bem feito, o porte de rainha ao andar, a flexibilidade dos movimentos, sua juventude, os luminosos olhos azuis dos quais era difícil desviar o olhar.
Olhava o acampamento, os homens e as poucas mulheres que haviam abandonado tudo, familia, amigos, sonhos para um futuro pessoal, projetos de vida, risos, alegrias, tudo enfim, para se dedicarem à luta armada contra as malditas forças da opressão, do obscurantismo, do retrocesso histórico.
Como os admirava... como os respeitava... havia desde intelectuais a operários e artesãos, gente do povo, simples e humildes, mas com uma dignidade e brio pessoais que faziam com que fossem capazes de dar a própria vida, pensando não apenas neles mesmos, mas principalmente em seus filhos, netos, nas gerações vindouras, no sentimento de PÁTRIA... para que os que pudessem vir depois, nunca mais sentissem o pavor de que poderiam ser presos arbitrariamente, torturados, assassinados impunemente e principalmente, lutavam para que um dia ninguém mais pudesse ser roubado em sua cidadania e que os sonhos pessoais de cada um pudessem ao menos, encontrar um terreno menos inóspito, onde tivessem alguma chance de florescerem, de acontecerem, de se realizarem...
Era muito triste ver e sentir o negro manto de maldades que havia coberto a maior parte dos países da América do Sul naquele momento histórico.
Quantos abraços, quantos beijos, quantos encontros, quanto amor, quantos carinhos, quanta ternura, quanta felicidade havia deixado de acontecer, por culpa dos Senhores do Medo, dos Donos do Medo, quantas angústias e desesperos, quantas estúpidas renúncias, quantos gritos horrendos, haviam acontecido, provocados impunemente pelos Senhores das Dores, pelos Donos das Dores... de todas as Dores....
Olhou demoradamente para todo o acampamento, sob a luz de um sol que começava a se por, tingindo de róseo os cumes nevados das montanhas, olhou as pessoas... as armas... e as cores todas de repente assumiram uma importância que não sabia como explicar... aquele lugar... aquela gente... aquele momento único em sua vida... o olhar, observar, sentir... a magia do instante como que paralisando o Tempo...
Olhou para as flores de Amancay que expodiam em beleza por por todos os lados... por toda a Cordilheira... observou tudo... demoradamente, sabendo que aquela visão, daquela tarde, daquele momento, daquelas cores, daquelas montanhas, de todas aquelas pessoas, estava se imprimindo para sempre em sua mente, em seu coração, em seu espírito...e que se sobrevivesse aos combates que com certeza ainda viriam, sabia que aquele momento, aquela tarde, voltaria vezes sem conta à sua memória...
Então, de repente soube... Entendeu dolorosamente... que aquilo era uma despedida que estava silenciosamente acontecendo... que seu espírito estava lhe mostrando, que era um Adeus...que estava olhando tudo com olhos de última vez... que algo terrível ia acontecer... que provavelmente ele iria ser morto... logo... que sem o saber, seus olhos e mente estavam se despedindo daquelas montanhas, da Cordilheira que ele havia aprendido a amar tanto... daquelas pessoas, com quem havia dividido, compartilhado, partes tão importantes de sua vida...
Sobressaltou-se com o toque da mão de Carmen em seu braço, virou-se e foi apanhado pelo impacto dos olhos azuis que o olhavam interrogativamente.
Deixou-se mergulhar dentro daquele azul... daqueles azuis... e ao sentir as lágrimas escorrerem pelo seu rosto, abraçou a Carmen com toda força, até senti-la dar um pequeno gemido de dor, apanhou aquele rosto entre as mãos e beijou-a com uma ternura infinita.
Carmen olhou-o fixamente por alguns instantes e pareceu compreender, advinhar tudo e abraçou-o fortemente também, sem dizer nenhuma palavra. Ficaram abraçados silenciosamente por um longo tempo e por sobre os ombros e os cabelos de Carmen, seus olhos continuaram a captar e a imprimir a paisagem em sua mente... em sua memória... A tarde cor de ouro... a tarde dourada... até o próprio ar parecia dourado... A tarde tão bonita, gravando-se em sua mente, em seu coração, para sempre...

IVX


Como fazia todas as manhãs, como um ritual a ser rigorosamente cumprido, Pepe el Gordo, levantou-se antes de todos, postou-se no centro do acampamento, abriu os braços em cruz e com sua voz forte e poderosa, gritou a plenos pulmões:

"__BUENOS DIAS, DON DIA!!!"

Então, uma fileira de pontos vermelhos apareceu subitamente em sua camisa branca, do quadril esquerdo até o ombro direito, fazendo-o rodopiar sobre si mesmo e cair de comprido no chão, com uma expressão de surpresa no rosto e os olhos vidrados e já sem vida, olhando um sol que nascia enquanto um sangue vermelho brotava aos borbotões dos buracos de balas em sua camisa branca...
Logo a seguir ouviram-se as primeiras rajadas de metralhadoras e várias granadas explodiram dentro do acampamento.
"__Brasilero!!!"... gritou Carmen que dormia abraçada a ele dentro da pequena barraca, levantando-se rapidamente!
"__Esconda-se entre as pedras Carmencita!" gritou para ela enquanto pegava uma metralhadora, afivelava o cinturão com a Luger e colocava um punhal de trincheira na cintura, saindo rapidamente da barraca.
O acampamento estava em polvorosa, não entendia como quem os atacava havia conseguido passar pelas sentinelas todas, atacando-os assim de surprêsa.
Ao sair da barraca, correu em zigue-zague para o local onde pelo barulho e pelos gritos se desenrolava a luta, então como que brotando do chão um soldado vestindo um uniforme camuflado ergueu-se à sua direita, apertou o gatilho da metralhadora disparando uma rajada curta de três tiros e viu o soldado rodopiar no ar.
O sopro quente de uma bala passou roçando-lhe o rosto, obrigando-o a fechar os olhos por um momento.
Percebeu que estavam praticamente cercados pelos inimigos, uma rajada de balas levantou poeira e pedras perto de seus pés, procurou abrigar-se junto a uma pedra enorme e divisou os soldados que subiam a encosta atirando contra eles.
Apontou a metralhadora e começou a disparar rajadas curtas vendo os soldados caírem sob suas balas.
Esvaziou um, dois, três pentes de balas evitando contar o número de soldados que derrubava, pois não queria depois um número macabro dançando em sua mente então ficou sem munição para a metralhadora.
Virou-se para voltar à barraca buscar mais munição e viu Carmen correndo em sua direção trazendo vários pentes da metralhadora nas mãos.
"__Carmen, deite-se no chão!!! Abaixe-se!!!" Gritou!!!

A granada de mão explodiu quase aos pés de Carmencita levantando-a no ar e atirando-a longe como se fosse uma boneca de pano...
Correu para junto dela, sentou-se no chão e pegou-a no colo.
Havia sangue em sua face esquerda e ele viu uma horrível ferida nas costas dela, provocada pelos estilhaços da granada de fragmentação, na altura dos rins, que havia destroçado sua coluna e parte do quadril.
Carmen estava lúcida e consciente, olhou-o com os olhos azuis e disse-lhe:
"__Não consigo mover as pernas Brasilero! Não deixe que me apanhem viva, por favor, sabe o que farão comigo!!! Atire em mim meu amor!!! Por favor, atire em mim!!!
"__CARMEN!!!"
" Atire em mim, eu lhe peço!!! Sabe que eu faria isso por você!!! BRASILERO, ATIRE EM MIM!!!
Não queria acreditar que aquilo estivesse realmente acontecendo!!! Não! Não podia! Não a Carmencita meu Deus!!!
"__Querido, quero que voce se salve, quero que você viva, atire em mim e fuja antes que seja tarde demais!!! ATIRE!!!

"__CAAAARRRMMMEEEENNNN!!!!!!!!!!!" Seu grito perdeu-se entre as montanhas... Um grito AZUL, como o ar da manhã...

Então um lado NEGRO que havia dentro dele, surgiu, tomou conta de seu corpo, de sua mente, de seu espírito, apoderou-se de suas ações, assumiu o comando... Ele já não era mais ele... ou talvez o fosse, agora mais que nunca...
Tirou a Luger do coldre, encostou o cano na nuca de Carmencita e apertou duas vezes o gatilho, sem olhar para o rosto dela destroçado pelas balas que haviam atravessado-lhe a cabeça.

Levantou-se como um autômato e olhou em volta com a Luger na mão.

Gritos e mais gritos se sucediam entre os tiros e explosões, gritos em espanhol e em antigos idiomas indígenas...
A LA MUERTE HIJOS DE PUTA!!! A LA MUERTE!!!
POR LA PÁTRIA HEMANOS!!!
MUERTE!!! MUERTE!!! MUERTE!!!

LIBERTAD!!! LIBERTAD!!!

HATA HORÊ! HORÊ!
HATA HORÊ!
HORÊ! HORÊ!!!

...E o Diabo gargalhava na Cordilheira....

Começou a caminhar para o centro do confronto, mal deu alguns passos e uma cabeça loura com olhos claros assomou entre as pedras, sem apontar, com a Luger empunhada na altura da cintura, apertou o gatilho e viu a cabeça loura ser jogada para trás...
Sentiu as balas zunirem em volta de sua cabeça e viu um soldado agachado no chão com uma metralhadora nas mãos disparando contra ele.
Não sentia medo, apenas um estranho torpor, uma quase que indiferença, ainda pensou como ele pode errar a um distancia tão curta? E caminhou em direção ao soldado que atirava contra ele, apertando o gatilho da Luger duas vezes e vendo o impacto das balas contra o rosto do soldado.
Brotando do chão apareceram outros soldados, todos atirando contra ele e inexplicavelmente as balas não o atingiam e a cada vez que ele apertava o gatilho da velha pistola Luger, um uniforme camuflado se estendia imóvel no chão, até que ficou sem balas...
Um par de olhos verdes, sob um quepi militar cinza que cobria uma cabeça ruiva apareceu em sua frente... viu que ele estava sem munição e com um sorriso diabólico apontou sem pressa uma pistola para seu rosto.
O soldado gringo apertou o gatilho e o percursor bateu numa câmara vazia.
O punhal de trincheira penetrou no abdômem do soldado e ele rasgou para cima, sentindo um sangue quente esguichar em sua mão enquanto o soldado se ajoelhava com uma expressão de espanto no olhar...

Então sentiu o impacto brutal em seu flanco direito e foi jogado no chão...
Viu através do negro orifício em sua camisa, um sangue espesso correndo, borbulhando... colocou a mão sobre o ferimento e viu o sangue brotando por entre seus dedos... ainda não sentia dor... apenas uma espécie de paralisia no lugar atingido...

Então é o fim, pensou... mas, não podem me pegar vivo... não tinha nenhuma arma consigo... olhou em volta e também não encontrou nenhuma...

Viu um par de pernas não uniformizadas pararem ao seu lado...
Ergueu os olhos.
Juan...
"__Brasilero..."

Juan, atire em mim...
Não quero que me peguem vivo Juan... atire em mim... por favor...
Viu os olhos de Juan hesitarem...
Juan, dispare sobre mi...
DISPARE HERMANO!!! EN LA CABEZA!!! DISPARE!!!
JUAN, POR DIÓS, DISPARE SOBRE MI!!!

Sentia-se enfraquecendo cada vez mais pela perda de sangue.

Então sentiu que Juan o erguia do chão e colocava-o atravessado nos próprios ombros...

Juan, você não vai conseguir meu amigo... coloque-me no chão e atire em mim... salve-se Juan... salve-se amigo...

Com a cabeça pendurada para baixo, nos ombros de Juan, a última coisa que seus olhos viram foram as flores de Amancay manchadas de sangue... antes que a escuridão tomasse conta dele...


XV

Lentamente abriu os olhos... um teto branco... paredes brancas... ele estava deitado numa cama branca... havia algo preso em seu braço... um tubo plástico subindo até um frasco de soro...
Estava num Hospital... mas, como podia?
Passou-lhe então pela cabeça a aterrorizante idéia que podia estar num hospital militar, preso, e que assim que ele se recuperasse um pouco começariam os interrogatórios e as torturas.
A porta do quarto se abriu e ele viu Juan entrando na companhia de um homem de estatura mediana, com um jaleco branco e barba grisalha.
"__Olá Brasilero! Acordou enfim? Como esta se sentindo?"

Não conseguiu responder.

Os dois aproximaram-se da cama e Juan disse:

"__Este é o Dr. Robledo, ele é irmão de Ramón, foi ele quem salvou sua vida."

"__Não, quem salvou sua vida foi Juan, na verdade não pensei que você fosse sobreviver, tal a quantidade de sangue que perdeu... Como se sente?"

O Dr. Robledo tinha uma voz bonita, calma e tranquilizadora..."

"__Não sei bem ainda como me sinto Doutor... mas, agradeço-lhe de coração o que o senhor fez por mim e a você também, Juan meu amigo!!!

O Doutor Robledo então disse:

"__Você teve muita sorte, foi possível reparar os estragos que a bala fez em seu corpo, não vai ficar nenhuma seqüela do ferimento, apenas uma longa cicatriz em seu abdômem, mas se um dia perguntarem e você não quiser contar o que aconteceu, poderá dizer que foi uma cirurgia digamos, de vesícula, pois deixa uma cicatriz semelhante, mas o orifício de entrada da bala, não há como disfarçar..."

"__Juan, conte-me tudo o que aconteceu... como conseguiram nos surpreender daquela maneira? E os nossos sentinelas? Quantos dos nossos morreram? Ramón, conseguiu escapar?"

"__Brasilero... sinto muito por Carmencita, disse Juan com os olhos úmidos, todos nós gostávamos muito dela, não se culpe pelo que aconteceu... você fez o que tinha de fazer naquele momento... não havia escolha..."

A lembrança de Carmencita quis explodir em sua mente, mas ele não permitiu... não ainda... não desta vez... ainda não... enquanto ele conseguisse evitar, as últimas imagens ficariam escondidas em algum canto da memória...

Juan continuou contando... Os soldados das tropas especiais haviam chegado... com fuzis de longo alcance e grande precisão, munidos de silenciadores e com balas expansivas, haviam matado os sentinelas atirando de praticamente dois quilômetros de distância... então, junto com os soldados do governo militar, haviam se aproximado do acampamento e iniciado o ataque.
Ramón havia conseguido escapar, estava em algum lugar do país, organizando mais um novo grupo de guerrilha...
A resistência à ditadura militar continuaria...
Juan o havia carregado nos ombros por uma longa distancia, depois, conseguido um cavalo, colocado-o atravessado no cavalo e cruzado a fronteira entre as montanhas, até chegar a um pequeno vilarejo que ele já conhecia e à pequena clínica pertencente ao Dr. Robledo, que era irmão de Ramón.

"__Muitos dos nossos morreram Brasilero, alguns poucos foram presos, Deus tenha piedade deles, alguns se mataram para não serem aprisionados vivos... e... Brasilero... o capitão também morreu..."

"__Quem? Diego? O capitão Diego foi morto?"

"__Sim, lutou como um bravo, matou muitos soldados do governo e alguns gringos também, até ser praticamente cortado ao meio por uma rajada de metralhadora, foi uma grande perda, era um homem muito valente, um nobre, um cavalheiro e um guerreiro..."

O capitão Diego pensou ele... que havia se tornado um grande amigo seu nos poucos dias em que esteve com eles no acampamento... Acabaram sentindo um grande respeito e admiração um pelo outro... Diego... que abandonou uma fortuna pessoal incalculável, posição social, prestígio, um posto de oficial do exército, uma vida que poderia ter sido desfrutada para sempre em meio a luxos e mordomias, sem preocupações materiais e que havia abandonado tudo para lutar pelo que havia subitamente descoberto, os valores humanos mais profundos... Diego... o grande capitão... havia escolhido morrer junto com eles nas montanhas, um anacrônico Don Quixote, deixando seu sangue espanhol derramar-se sobre o solo escuro da Cordilheira...
Sentiu uma grande tristeza...por Carmen, Diego e por todos os companheiros que haviam tombado... sentiu a garganta apertando-se, o coração querendo sair do peito...

Uma semana depois, já estava suficientemente restabelecido para partir...

Juan veio visitá-lo e perguntou:

"__O que pretende fazer agora Brasilero?"

"__Vou retornar para o Brasil, Juan... a ditadura lá acabou de cair... uma incipiente democracia começa a se firmar, já não há mais perigo para mim... Vou voltar... vamos ver o que a VIDA ainda reserva para mim...vamos ver o que ainda terei de VIVER... Espero que o DESTINO já tenha esgotado a minha quota de grandes dores e sofrimentos... gosto de escrever... talvez um dia consiga escrever sobre tudo isto aqui... assim que a dor se cristalizar... talvez um dia consiga escrever sobre você meu amigo... e sobre os outros também..."

"__Ah, Brasilero... o Destino sempre nos reserva pequenas e curtas alegrias e longos e grandes sofrimentos, pessoas como nós não conseguem evitar isso... Somos Los Malditos... e você carrega como ninguém a Cruz da Sensibilidade... que Deus cuide de você amigo e alivie um pouco o peso de seu Sentir..."
Abraçou o Dr. Robledo e agradeceu-lhe por tudo o que havia feito por ele, por seu desprendimento, por seus cuidados, por sua humanidade tão bela e desinteressada materialmente...

Então abraçou fortemente a Juan... olhou dentro de seus olhos... e enquanto as lágrimas escorriam-lhe pelo rosto... disse-lhe:

"Gracias hermano... gracias por todo... Que Diós te bendiga... Hasta Siempre mi amigo!!!"

XVI

A estridente sirena do colégio soou exatamente às 23hs, avisando que a última aula da noite havia terminado.
Enquanto os alunos saíam, ele deixou-se ficar imóvel, sentado à mesa com os olhos fixos na enorme borboleta azul que atraída pela luz, havia vindo pousar sobre sua mão...
A borboleta parecia olhá-lo também, enquanto abria e fechava lenta e graciosamente as grandes asas azuis....
Fechou os olhos, lutando contra as lágrimas e mentalmente disse:
"___Carmen....estas aqui? Carmencita...donde estas? "
Levantou-se e caminhou até a janela com a borboleta azul pousada nas costas de sua mão e fez com que voasse para a noite cheia de estrelas...
O professor de Inglês deteve-se um momento na saída do colégio, cumprimentou alguns dos alunos e começou a colocar alguns livros em sua motocicleta.
Amarrou-os com uma pequena corda elástica, montou, deu partida, acendeu o farol e partiu...
A um quarteirão de distancia, um carro comum estacionado no escuro, com dois homens comuns dentro deu partida também acendendo apenas a meia luz.
Dentro do carro, um dos homens apanhou um microfone de rádio e disse:

"__Fantasma Dois para Fantasma Um, esta em QAP?"

"__Fantasma Um em QAP, prossiga..."

"__O elemento sob vigilância acaba de sair do colégio, esta se dirigindo para sua casa, onde deverá provavelmente passar a noite toda, já que pelo que vimos não tem amigos, nem se reúne com ninguém... Continuamos seguindo-o..."

"__QSL Fantasma Dois, continue a vigilância, dentro de uma hora serão substituídos por outra equipe, QSL?"

"__QSL total Fantasma Um. Ficaremos nas proximidades da casa dele aguardando a outra equipe.
Cambio final, desligo"

"__Ok, QSL..."

x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-



A LA MUERTE HIJOS DE PUTA!!!

POR LA LIBERTAD!!! POR LA PÁTRIA!!!

HATA HORÊ!!! HORÊ!!!

HORÊ!!!

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui