Sem se anunciar, de repente, Bernardete bate à porta de Prisco. Tinha viajado sozinha, atendendo ao convite que ele lhe havia formulado.
Chegava uma semana após sua resposta à carta, não dando sequer tempo para que o artista digerisse direito a informação de que havia um namorado na parada.
Na verdade, Prisco estava encontrando palavras para renovar a oferta, incluindo a presença de feliz companheiro da moça, de forma que aquela maravilhosa criatura lhe causou tremendo impacto.
— Que maravilha! Você veio...
— Não podia perder a oportunidade.
— E o calor das praias nordestinas?
— Sempre haverá tempo para ele.
— Que disseram seus pais?
— Não se preocupe. Tive total apoio deles, inclusive, financeiro. Tenho condições de passar um ano inteiro viajando, sem lhe dar qualquer despesa.
— Isso é o de menos. Seu namorado sabe dessa sua aventura? Ou melhor: que disse ele a respeito? Na carta, você me conta que ele se sentiu muito interessado.
— Ele me incentivou. Quer que eu me divirta o mais que possa.
— Sem ele...
— Vim na frente. Ele estava sem passaporte. Assim que der, eu o chamo. Enquanto isso, nós dois iremos desfrutar de alguns bons momentos sozinhos.
Prisco foi levando para dentro do apartamento as malas maiores, uma a uma, porque se atrapalhava um pouco com as rodinhas nos degraus. Enquanto isso, considerava a situação bastante esquerda de agasalhar em casa uma jovem de extraordinárias beleza e desenvoltura, que mal conhecera em encontro de algumas horas e, mesmo assim, vigiados pelo olhar penetrante da irmã.
Assim que ela se livrou do pesado casaco com que enfrentava o frio de Madri, abraçou Prisco, procurando-lhe os lábios para selar a amizade com um beijo.
O guitarrista não estava acostumado com tal liberalidade feminina. A sua atitude mesma inibia a aproximação das mulheres: primeiro, quando vivia Eulália, a quem respeitava e era fidelíssimo.; depois, pelo ar compenetrado de viúvo sofredor.
Com o corpo da jovem nos braços, não sabia o que fazer. Esperou, portanto, que ela definisse toda a extensão dos carinhos que pretendia receber.
— Aperte-me contra o peito, que eu quero sentir o palpitar de seu coração — sussurrou ela ao ouvido do estupefato senhor, agora mais senhor e mais estupefato do que nunca.
A reação do homem foi educada e temerosa. Encostou o rosto na face da mocinha, prestando atenção nos seios a arfar.
Mas a sessão de afetuosos transbordamentos parou por ali. Ela se desprendeu dos braços dele, tomou-o por ambas as mãos e arrastou-o para o sofá, sentando-se de molde a poder olhá-lo nos olhos.
— Eu quero que você me conte, tintim por tintim, tudo o que vem fazendo na Espanha. Se tiver algum compromisso agora de manhã, leve-me junto. Eu não quero perder um instante sequer de sua companhia.
— Eu só vou ao estúdio depois da “siesta”. Teremos algumas horas para pô-la à vontade no apartamento.
— Então me conte como é que você se tem dado com as mulheres daqui. São “calientes, salerosas”?
— Menina, você é mesmo desabusada...
— Não me ofenda, por favor.
Bernardete fingia zanga, mas estava divertindo-se muito com o fato de Prisco ter-se encabulado.
— Retiro o “desabusada”...
— O “desabusada” me descreve bem. Retire o “menina”, que eu não gosto de ser assim considerada.
— Retiro tudo o que você quiser. Desculpe-me, mas você está me saindo melhor do que a encomenda.
— A expressão deveria ser “pior do que a encomenda”. Mas tudo bem. Responda o que perguntei.
— Eu não arrastei a asa para nenhuma mulher.
— Claro que não! Você vive ainda para sua defunta esposa, ainda mais agora que suspeita que o espírito dela possa estar sempre presente. Mas não foi isso que eu quis saber. Eu perguntei a respeito das mulheres. Elas têm tentado seduzi-lo?
Desconfiado de que a mocinha estava fazendo cena, entrou no jogo dela, finalmente, procurando ironizar:
— Eulália tem vindo visitar-me toda noite.
— E essa “muchacha” é “guapa”?
— Posso dizer que é a mulher de minha vida. Ou foi.
— O fantasma de sua esposa...
— E olha que ela está achando muita graça em seu procedimento, querendo me envergonhar.
— Você não me assusta. Mas eu louvo a sua malícia em se furtar ao assunto. Artes de quem é exímio...
— Você aceita um aperitivo, uma guloseima...
— Eu me empanturrei no vôo. Até estou um pouco enjoada. Você não sentiu mau hálito na minha boca?
— Nada que me lembrasse o queijo gorgonzola que comi hoje cedo...
— Não brinque.
Ela correu em busca da pia do banheiro para escovar os dentes, enquanto Prisco punha as mãos na cabeça:
“De onde me saiu este estrupício? Que vou fazer com ela?”
Mas as coisas se elucidaram logo. Ao voltar à sala, Bernardete foi estabelecendo:
— Vou expulsá-lo do quarto grande. Você vai dormir como hóspede na própria casa. Ou você estava tendo maus pensamentos?...
— Nesta altura dos acontecimentos, eu não sei mais sequer se estou pensando. Vamos arrumar as nossas coisas, segundo a sua disposição.
Foram quinze dias malucos, da mais pura alegria e perfeita moralidade, como se dois irmãos muito unidos partilhassem o mesmo teto, até que chegou o famigerado namorado.