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Artigos-->Frexeiras: A Fé e a Invenção do Mundo Mágico -- 26/05/2009 - 11:08 (Jayro Luna) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Frexeiras: A Fé e a Invenção do Mundo Mágico

Prof. Dr. Jairo Nogueira Luna (Jayro Luna)



A Fé é decididamente o grande instrumento do homem para a realização de suas conquistas históricas e espirituais. Etimologicamente a palavra vem do hebraico, “emuná” e é traduzida pela primeira com o sentido que usamos no livro de Habakuk (2:4): "Eis aqui um soberbo, sua alma não é reta nele; e um justo (que) em sua fé viverá". Nos Hebreus (11:1) encontramos a seguinte definição de fé: “Ora, a fé é a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que se não vêem”. Na História a Fé tem sido um instrumento não só de caráter relativo à espiritualidade, mas também um instrumento de dominação. Quando Raimundo Lúlio tenta converter os Sarracenos munido apenas de sua Ars Combinatória, que acreditava, possuiria o poder da conversão instantânea pelo poder imagético e matemático de sua linguagem, acaba morrendo martirizado. Na colonização da América, a Fé foi o instrumento de conversão ideológica mais eficaz que os europeus puderam apresentar aos gentios americanos.

No Brasil, país cuja miscigenação tornou-se característica fundamental de sua população, as culturas indígenas e africana, dominadas pelo português europeu, deixaram na língua dominante marcas inconfundíveis. Sabemos que uma língua não é apenas um conjunto de regras normativas gramaticais e um vocabulário da qual se o falante faz uso indiferente. Antes, cada língua tem inscrita na sua estrutura uma visão de mundo, uma ideologia, uma forma particular de construir a realidade. Assim, o sincretismo religioso se instaura diante, ao redor e por vezes, dentro das igrejas cristãs. Crenças, rituais, superstições indígenas e africanas povoaram os espaços vagos das contradições cristãs.

O sertão Nordestino é um espaço histórico rico de sincretismos. Os beatos, os padres povoaram o imaginário sertanejo de personagens mágicos, feiticeiros malignos e benignos, de profecias, de crendices. Antônio Conselheiro, José Lourenço – beatos, Padre Cícero, Frei Damião – religiosos, deixaram sua marca neste imaginário.

Próximo a Garanhuns, agreste meridional de Pernambuco, já no município de São João, o povoado de Frexeiras é um retrato emblemático desse sincretismo e dessa fé algo abstrata de definir apenas na conceituação religiosa, mas concretamente antropológica, no sentido de compreensão da relação contextual do homem com a sociedade que constrói.

A história de Frexeiras é a história da fé popular, isto é, da fé tomada pelo povo em oposição à fé, enquanto instrumento da Igreja para conversão dos fiéis e garantia de sua dominação.

No povoado existe o culto à Santa Quitéria. No calendário cristão católico, o dia 22 de maio é dia de Santa Quitéria, porém, é no dia 7 de setembro que existe a maior comemoração em Frexeiras.

A data de um santo é geralmente colocada como a data de sua morte, que no entender católico é o dia em que a alma do santo deixou a terra e se elevou aos céus.

A história da santa é dramática e dotada de acontecimentos misteriosos que beiram o macabro. Segundo consta do hagiológio português e na história de Braga, Quitéria foi uma das nove filhas nascidas de parto único de Cálsia Lúcia, mulher de Lúcio Caio Otílio, governador de Portugal e Galiza sob o Império Romano, no século V da nossa era. Quitéria nasceu no ano de 462, em Braga, na região do Minho, por ocasião em que seu pai acompanhava o imperador romano Líbio Severo em viagem pela Península Ibérica.

Naquela época predominavam as superstições, a ponto de a mãe, tendo se assustado com o fato de ter dado a luz a nove meninas, que com medo de represália do marido, homem de procedimento muito rígido, instruiu a parteira de nome Cília que matasse as nove crianças, afogando-as num rio. Mas, movida pelos sentimentos cristãos de piedade e amor ao próximo, Cília desobedeceu à patroa entregando as meninas ao arcebispo de Braga, Santo Ovídio, que as batizou as meninas (Eufemia, Genebra, Liberata, Marciana, Marinha, Quitéria, Gema, Basilissa e Vitória) e encomendou o seu cuidado e educação a diversas famílias cristãs, tudo a suas expensas.

Anos mais tarde, tomando conhecimento da existência das suas filhas e estando comprometido com um cortesão de nome Germano, desejou que a filha Quitéria com ele se casasse. Ante a recusa da filha, Otílio condenou-a à morte, cuja execução foi perpetrada pelo próprio Germano no dia 22 de Maio do ano de 477. Quitéria estava com 15 anos de idade.

As datas aqui colocadas não são de todo confiáveis, existe uma versão de que teriam tais fotos ocorridos no século II, sob o domínio do imperador Adriano. Tendo nascido Quitéria no ano 120 e morrido em 135.

Conta-se que os soldados que a prenderam ficaram cegos. Diz ainda a tradição que após ter a cabeça decepada, Quitéria tomou em suas mãos e caminhou até a cidade vizinha onde caiu e foi sepultada.

No Brasil, o culto de Santa Quitéria é bem difundido, no Nordeste existem dois municípios com essa denominação, Santa Quitéria, no Ceará, que entre outras características, é um dos maiores depósitos naturais de urânio do país, e Santa Quitéria no Maranhão.

As terras onde se encontra o povoado de Santa Quitéria pertencem à família Guilherme da Rocha, que veio de Portugal em 1695. Conforme conta um dos herdeiros, eis como começou o culto à Santa Quitéria:



“Tudo começou quando minha família veio de Portugal tomar posse de terras que foram concedidas pelo governo de Portugal em 1695, já trouxeram os escravos e quando chegaram aqui na região construíram a casa para morar e foram preparando a terra para a cultura de subsistência e quando eles vieram de Portugal trouxeram na bagagem a imagem de Santa Quitéria, essa imagem que está aqui de 44 cm e que era a imagem de devoção da família. Com as freqüentes novenas realizadas aqui na casa (a família era muito católica), os escravos começaram essa devoção à Santa Quitéria, os índios também, e os escravos foram espalhando para os escravos de outras propriedades e os donos de outras fazendas, que existia uma santa milagrosa e aí começou a peregrinação; e no final do século XVII, a casa, que foi para abrigar uma família, foi transformada nesse espaço para receber as constantes visitas que vinham montadas em lombo de burro, em carro de boi até a modernidade de hoje em que elas vêm de ônibus, de caminhões pau de arara, vem muita gente a pé.”



O fato atual é que o povoado de Santa Quitéria transformou num local de peregrinação, porém a Igreja não tem qualquer domínio ou intervenção na localidade. Existe uma disputa entre a família Guilherme da Rocha e a Igreja. A família não permite a entrada de religiosos. Tal se deve ao receio de que a Igreja tome posse do culto sem auferir à família algum acerto financeiro ou de uso.

Assim, o culto à Santa Quitéria seguiu um caminho dominado pelo imaginário popular. A casa grande original foi se atulhando de ex-votos, de fotografias de diversos tamanhos das pessoas que se dizem agraciadas, de estatuetas as mais variadas, inclusive pagãs. Assim, ao entrar no local o que se nos mostra de imediato é um grande painel neobarroco, acumulativo, de informações contraditórias que se dirigem aos nossos olhos, criando no expectador de imediato uma desorientação. Assoma-se a movimentação das pessoas que entram e saem dos aposentos acendendo velas, carregando objetos, além dos vendedores de bugigangas, de velas, de santinhos. As paredes povoadas de fotografias transformam-se num grande mural do tempo. Fotos antigas, novas, coloridas, em p&b, apresentando aqueles inúmeros rostos, pessoas em variadas poses e lugares. Cada uma, signo de uma história particular, pessoal, individual, que, no entanto, se presencia ali, na coletividade de imagens.

Os ex-votos, de madeira, ou de parafina: pés, mãos, braços, cabeças colocadas em sob tábuas de madeira ou penduradas nas paredes também criam um novo panorama que se acumula ao das fotos, com a diferença que agora se presentificam enquanto objetos tridimensionais. Como se os pés, braços, cabeças, mãos dos que estavam nas fotos se materializassem ali, diante de nossos sentidos, querendo ser provas irrefutáveis dos milagres.

Quando de uma das minhas visitas, presenciei um fato interessante e ilustrativo. Uma velha senhora, ao dirigir-se ao altar de Santa Quitéria, cuja imagem encontra-se adornada de inúmeros colares dourados, esta senhora resolveu passar por debaixo da mesinha que sustenta parte do oratório, passou uma, duas, três vezes, fez o sinal da cruz e foi-se embora. Imediatamente uma outra senhora vendo isso, disso a uma outra: -“Vamos também passar por três vezes aí embaixo que dá sorte e proteção!” E, em pouco tempo, formava-se uma fila de pessoas, em geral mais velhas, passando por debaixo do oratório. Assim, o culto à Santa Quitéria de Frexeiras segue seu caminho numa trilha entre o folclórico, o sincrético e o místico.

Próximo a casa grande, existe um museu, que fica numa outra casa, onde se paga um real para entrar. Lá encontramos uma variedade de objetos velhos, desde de rádios de válvula, notas e moedas antigas, até estatuetas de Jesus, e colocadas em alguns nichos, estátuas de santas que pela denominação, são as irmãs de Santa Quitéria: Santa Gemma, Santa Vitória, Santa Liberata.

As irmãs de Santa Quitéria não foram santificadas pela igreja, mas o imaginário popular tratou de fazer o seu próprio processo de santificação, assim como ocorreu no Ceará com o Padre Cícero.

Cria-se assim um mundo místico, meio mágico, povoado de santas vindas de ilusórias terras também santas, de uma época irreal, que no imaginário popular foi a época em que santos e santas andavam pelo mundo.

Na única rua do povoado, dezenas de barracas de mascates vendem santinhos, brinquedos de plástico, pilhas, capas para celular, doces, balas. No comércio das bodegas, alguns almoçam o prato feito, outros tomam cachaça, joga-se o bilhar. No estacionamento, ônibus de diversas procedências, automóveis, muitos deles, já velhos, são carros dos mascates. Os mais novos, de curiosos ou de pessoas movidas pela fé que têm a condição de ter um automóvel mais novo.

Ali, naquele povoado, a fé se exercita, sem o concurso da Igreja, mas também desordenadamente pós-moderna, reciclando continuamente as crenças individuais num caldeirão de mitos. Numa das estantes velhas de madeira, uma estatueta em gesso de Vênus/Afrodite. Lá fora uma barraca vendendo super-heróis de plástico: Wolverine, Hulk, Homem Aranha. O imaginário necessita do sobrenatural, a realidade concreta é muito dura.

Se a data de Santa Quitéria é 22 de Maio e em Frexeiras o dia mais comemorado é o de 7 de Setembro, o que temos é a inversão dum significado. A elevação da alma da Santa aos céus é também o signo de sua morte corpórea na terra. E a morte é o grande medo do homem, é sua cruz inseparável. O homem sertanejo que vive a dureza das condições sócio-econômicas, da historicidade de agruras e desmandos, do abandono, busca na fé mais do que a elevação espiritual ou a ascese, ele que o imediato concreto. Assim, o 7 de setembro, dia da Independência é aqui transmutado no dia de Santa Quitéria, o dia da independência da alma sertaneja diante dos grilhões históricos de sua condição. Símbolo da regeneração das forças para continuar sua luta diária e cotidiana.



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