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Artigos-->As ciências contra a Ciência? -- 02/03/2009 - 12:48 (Mauro Bartolomeu) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
20/7/2008



Numa de suas viagens surreais, Gulliver encontra-se com um grande rei que, informado pelo marinheiro a respeito da existência da pólvora e de seus efeitos, declara que, se algo capaz de provocar coisas tão terríveis realmente existe, seria mais prudente jamais conhecê-la. Nunca entendi como alguém com tal “grandeza” pudesse pretender usar a pólvora apenas para causar destruição, por isso também não entendo porque ele acharia melhor desconhecê-la. Será que ele não estava tão certo assim da sua própria pacificidade? Ninguém duvida de que as ferramentas servem para aumentar o poder de quem as empunha, e, sendo o conhecimento uma ferramenta poderosa, também ele pode ser destrutivo “em mãos erradas”. Mas como entender que a ignorância possa aumentar a possibilidade de defesa contra ele?

É recorrente na mitologia de todos os povos a idéia do recipiente que, uma vez aberto, deixa escapar alguma força terrível e incontrolável. A sabedoria ancestral nos alerta para a potencialidade que o ser humano possui de causar males irreversíveis a si mesmo, e é um excelente apelo à cautela. Mas tanta precaução só é necessária precisamente porque somos ignorantes das “leis misteriosas” da natureza, e portanto não faz sentido interpretar tais mitos como um repúdio ao conhecimento. Ainda que seus métodos não tenham sido dos melhores, a própria magia nunca foi outra coisa senão uma tentativa de compreensão daquelas leis, que são para nós cada vez menos misteriosas.

Estamos acostumados aos protestos dos religiosos contra certos avanços do conhecimento científico, afinal isso já acontece há séculos. Geralmente quem responde a eles são humanistas, filósofos, cientistas e intelectuais laicos em defesa de valores humanos fundamentais. Recentemente, porém, assistimos a uma cena mais intrigante: um grupo de uma centena de pessoas fez um abaixo-assinado na tentativa de impedir a realização de uma pesquisa proposta por Jaderson da Costa, neurocientista da PUC-RS. O propósito da pesquisa, segundo informa a Folha Ciência de 26 de Novembro de 2007, é o de mapear por ressonância magnética o cérebro de cinquenta adolescentes homicidas, internos da Fase (Fundação de Atendimento Sócio-Educativo, antiga Febem gaúcha). O elemento intrigante é que esse grupo não é formado por religiosos, mas por “psicólogos, advogados, antropólogos e educadores”, ainda segundo a Folha Ciência de 21 de Janeiro deste ano.

A ciência positiva deduz que três são os fatores necessários e suficientes para explicar o comportamento dos indivíduos: a raça, o meio e o momento, na terminologia do século XIX. O meio e o momento designam as dimensões espacial e temporal da realidade social, isto é, da totalidade dos estímulos que o indivíduo recebe de fora e que influenciam seu comportamento e sua consciência, e que são objetos de estudo das diversas “ciências sociais”. Quanto ao primeiro fator, designa o que o indíviduo herda biologicamente dos seus progenitores, e é identificado hoje quase que exclusivamente pelo código genético, cujo estudo, embora ainda incipiente, escapa contudo ao domínio das “ciências do espírito”. Essa talvez seja uma das razões, conscientes ou inconscientes, da revolta do meio acadêmico contra a citada pesquisa: as “ciências humanas” têm medo serem descaracterizadas enquanto tal, ou então de perder sua prerrogativa de tratar do comportamento humano com exclusividade. Tratar-se-ia, portanto, de um problema existencial, ou de uma briga na qual está em jogo a manutenção ou a quebra do seu monopólio. Toda disputa é bem-vinda no seio das ciências, mas desde que se pautem nos mesmos princípios que a norteiam. Se cientistas de diferentes áreas procuram entender um mesmo objeto de pesquisa, cada qual com seus próprios métodos, isso só pode gerar mais conhecimento para todos eles simultaneamente, e não impedir que um ou outro o obtenha. O rigor científico impõe que as conclusões corretas dos diversos ramos da ciência sejam coerentes entre si. Mas parece que as “ciências do espírito” ainda não aprenderam essa lição.

Há outra questão em jogo, e desta vez de caráter ideológico. Acusa-se esse tipo de empreendimento de eugenista, o que no jargão político equivale a conectá-lo a práticas de extermínio visando a “purificação da raça”, como pretendiam os nazistas. Parece assim que as cobaias do estudo serão também suas vítimas, e desconsidera-se que elas podem ser, ao contrário, suas beneficiárias. Afinal, se a doutrina jurídica determina a absolvição ou a atenuação da pena para o criminoso que se revele mentalmente incapaz, já que ele não pode ser responsabilizado pelos seus atos, então deve conduzir ao mesmo resultado o estabelecimento de uma relação inequívoca entre um aspecto estrutural ou funcional do cérebro, ou mesmo de um fragmento de ADN, e uma forma de conduta criminosa. O crime deixa de ser um problema exclusivamente jurídico e passa a ser uma questão de saúde pública, novamente uma mudança radical de esferas, das ciências humanas para as biológicas. Mais uma vez, a área das “humanidades” despreza qualquer possibilidade de conciliação entre suas conclusões e as das ciências naturais, desprezando o fato de que o direito tem de se sustentar na natureza humana, e não de negligenciá-la.

Finalmente, pesa a questão puramente ética, que não deve ser desprezada. Mas a Ética é a reflexão sobre a Moral, e elas não devem ser confundidas. Tampouco podemos admitir que simplesmente se invoquem códigos morais obsoletos contra o conhecimento científico. Pretender fazer uma ciência pautada numa ética rigorosa (seja ela qual for) é algo completamente diferente de pretender que toda a Ciência deva curvar-se diante dos mesmos e idênticos princípios sem submetê-los a crítica, o que equivaleria, na prática, a propor uma ciência pautada em dogmas. Ora, dogmas são inaceitáveis como bússola para um cientista ou um filósofo. Até mesmo fundadores de religiões como Jesus ou Buda foram exemplos de absoluta rejeição dos dogmas de seu povo. Como exigir da Ciência que se curve diante de princípios previamente estabelecidos e inquestionáveis? Além do que, como não existe um código moral universal, seríamos obrigados a conviver com diversas linhas de ciência que disputariam entre si questões absolutamente alheias ao debate científico, como se fosse aceitável a coexistência de uma ciência católica, uma pentecostal, uma kardecista, e assim por diante. Desse raciocínio pelo absurdo devemos concluir que a Ciência (ou, melhor ainda, cada ramo dela) deve gozar de relativa independência para elaborar sua própria ética à medida que vai caminhando. Como leitores de Sade, de Nietzsche e de Russel, o que todo cientista deveria ser, é inevitável que essa ética se imponha como mais de acordo com o verdadeiro espírito científico, porque livre de dogmas e aberta ao ceticismo. O legítimo espírito científico requer a liberdade, e é inelutavelmente levado a rejeitar toda forma de castração. E, diga-se de passagem, a história das ciências humanas demonstra a veracidade dessa afirmação. Claro que esse princípio garante também a cada cientista a possibilidade de interpretar os resultados de acordo com os métodos particulares da sua ciência, e portanto de criticar a validade de suas conclusões, mas como disse o professor Jaderson, o foro dessa discussão é a academia.

Asseguremo-nos a todos nós o direito de sermos humanistas, de defender nossos princípios (o que pressupõe a possibilidade de eles serem atacados), de questionar as conclusões pouco convincentes dos nossos colegas na busca pelo conhecimento, mas não tentemos barrar essa busca por simples medo ou preconceito. Também temo o conhecimento “em mãos erradas”. Mas a única maneira de assegurar que ele vá parar “em boas mãos” é pela liberdade da pesquisa, do ensino e da divulgação científica.

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