Canto Armorial ao Recife, capital do Reino do Nordeste:
Ariano Suassuna
(Nasceu em Taperoá-Pb, em 1927. Poeta, romancista e autor teatral. Das diversas peças que escreveu, uma – O Auto da Compadecida – já foi encenada em quase todos os países do mundo).
I
Eram sete as Coroas deste Reino,
Sete as Torres sagradas da Cidade,
Sete Arcanjos de bronze, fogo e cobre,
Sete Clarins de calcedônia e jade,
E o meu Reino-sagrado do Nordeste
Luzia, do Recife à claridade.
Eu velava na pedra do Arrecife
E vi, nesse repente, uma Visagem:
A esmeralda do Mar se alumiava
E o Sertão lhe infundiu sua coragem.
O rubi resplandece na turqueza:
Mar e Sol, água e pedras da Pastagem.
A Coroa-de-ferro de Canudos
Resplende sobre a Torre-quadrejada.
O Sertãp de Acauhan, da casa-forte,
Na do Engenho Pombal, limpa e sagrada.
Os clarins de Princesa e Piancó
Reluzem na da torre-ameaçada.
E a colina-sagrada da Batalha
Brilha na Conceição-dos-Militares:
As quilhas afundadas dos navios
São púlpitos, Cariátides e altares.
Estalam tiros secos de mosquetes,
As Espadas rebrilham pelos ares.
Duas torres iguais de Santo Antonio
São as Pedras do Reino, as Encantadas,
Incrustadas de prata e diamantes,
Ungidas pelo Sangue e consagradas:
Torres da Catedral dos sertanejos,
Proibida, luzente e soterrada.
O Castelo-roqueiro, em Cinco-Pontas,
É a Casa da Pólvora também:
Os Fortes do meu Reino, reluzindo,
Pelas pontas da estrela se detém,
Como, na esfera de-ouro do Brasil
As moedas de Ourique e Santarém.
Sim! Porque na Colina-consagrada
Onde o leão do Coelho pôs a pata
(Ouro-Velho, Ouro Preto, Pombo Verde
do Salvador, das águas e das arcas)
se funde todo o Império do Brasil,
o ouro das Minas e o torçal-de-prata.
Por isso aqui, brilham também, fundidos,
O clarim do Sertão e o dos Engenhos,
A Lua-moura, a Estrela-da-Judéia,
A Onça-negra, a Parda, o rubro Lenho,
a corneta das Quinas e padrões
encravados de estrelas e desenhos.
E por isso o Recife era a Esmeralda
E a Muralha –de-pedra, a Vastidão:>
Pedra-angular do Reino-esverdeado
Rosa-vermelha e Bruna do Brasão,
Porta-azul dos Engenhos e do Mar,
Porta-rubra-e-castanha do Sertão.
II
Lá vem a frota-ibérica das Naus:
Brancas velas, tosões, cruzes, bandeiras!
São Cavalos-marinhos, Bois-azuis,
Hipocampos-vermelhos de madeira
Ferrados com a Cruz-de-Leopardo,
Do Cachorro-de-Deus-e-da-Roseira!
Vem nelas o assassino, o Mau-poeta,
O Fidalgo-judeu blasfemador:
Canta o Leão e as quinas-da-nobreza,
Os castelos e o preço do Senhor,
Voz dos autos, das trovas e sonetos
Que, para nós, é o Sol-começador!
Pois o Recife é um Cisne sacro e branco,
Um Búzio desigual e retorcido
Que se sentou na Pedra-cavernosa,
De pérolas e aljôfar guarnecido,
De Coral fino, crespo e marchetado,
Depois de o Mar azul ter dividido.
III
E a Voz forja a Sereia-nordestina,
A Anfitrite de penas-coloradas:
As casas são Guaràzes-escarlates,
São penas de Saíra recamadas;
Estrelas e topázios das Jandaias
São cachos-de-ouro em Campo de esmeralda
E as heráldicas Flores do meu Reino:
O flamejante, ,o cravo, o girassol,
A acácia-de-ouro, e a rainha , a Rosa,
E a rosa da paixão-do´Rouxinol
O emblema, a cruz-de-cristo, as chagas roxas,
A lança, o sangue e espinhos do meu Sol!
E assim moldou-se o sangue da Cidade,essa fêmea e pantera dos Bruxedos.
Ela entreabre seu Manto e nos revela
Seus encantos musgosos e secretos,
Seu sangue macho-e-fêmea, seus contrastes,
Seus embruxos, e filtros, e segredos.
Sua tigre-bravura se admira,
Seus encantos de F~emea se deseja,
A finura da Faca e da coragem,
A nobreza e a Faminta-malfazeja,
Essa Gata de graça-florentina
E o Sol dessa muralha-sertaneja.
IV
Canta, ó clarim do Teuto-sergipano,
A onça-da-nobreza, a Desumana.
Não te enganes: o cheiroi desse Mel
(mesmo de prata, mesmo em Massangana)
é forjado no sangue que bebeu
a leoa-dos-nobres, a Tirana!
Vai! Chama teu irmão desabusado,
Teu irmão sertanejo e brasileiro,
Lagarto alumiado pelo sol,
Escorpião da Raça e do braseiro,
Gila-do-sangue, Povo-coroado.
Arauto-inicial do Romanceiro.
Que o Nordeste é uma Onça
E estão seus ombros
Queimados pelo Sol e pelo sal:
As garras de arrecifes, os Lajedos,
São seus dentes-de-pedra e ossos-de-cal.
A Liberdade e o sangue da Inumana
Precisam de teu Gládio e do Punhal!
V
Quanto a ti, canta o Sol nosso e Castanho,
Que esse Golfim de corpo bronzeado
Que sai da espuma branca-e-azul do Mar
(esse sangue-estanhoso do Sagrado)
é o mesmo da Batalha, ali gravada
nesse painel castanho e esbraseado!
Canta as Flechas no campo de Ouro-verde,
As bandeiras, a espada do Latino.
Não cantaste a Onça-negra veludosa,
Nem a Parda-castanha (meu destino),
Mas o urucu-vermelho, as áureas-penas,
Como escudos, brasões e Paladinos!
Tu viste teus fidalgos em Castelos,
E Peri com a cor de sua Dama.
Viste a Loura-fidalga (azule ouro)
E a Morena-bastarda em sua cama.
Teu Gato-pardo é nosso Cavaleiro,
A corneta-de-tíbia é nossa Fama.
Passa o Capitão-mor das Oiticicas
Com seu Gibão dourado de d]fidalgo.
É falso? É sertanejo o Cavaleiro:
Vem outro e mostra a fome, o Gibão-pardo!
Que é preciso, tambpém, nesta Insensata,
Cantar a prata e o Sonho do sonhado!
VI
Tu, Clarim-sertanejo do meu sangue,
Canta os Campos, de sangue já laivados,
A arena-rubra, a terra-bem-fadada,
Sol dos pulsos-de-ferro venerados,
Que, em perpétua Aliança, reluziram
O Reino, o território-consagrado.
E a Rota da cruzada-sertaneja,
Teu Reino de Acauhan, o gado-crioulo
Com seus tipos de Raça e de nobreza,
Na Malhada-da-Onça, cor-de-ouro,
Onde o Sol e o brasido das Estrelas
São esporas-do-céu – Gibão de couro!
VII
Soa o quinto Clarim, Cunha de foto,
E a pedra, o Espinho, ruge em sua Fala.
A faca. A lazarina de Canudos,
No Pajeú-da-raiva, cresce e estala.
O foto é um tabocal se incendiando
Ao som das Ladainhas e das balas.
E a Catedral – o antro, o doido templo,
Reduto, fortaleza e Santuário,
De fachada sem módulos e regras,
Vasto, retangular, desafrontado,
Cortado e esburacado de troneiras,
O brutal Hipogeu desenterrado!
VIII
Junto a ti (cunha, fogo, pedra e ferro),
Junto a ti(que és mortal e ensolarado),
Sopra o Clarim-augusto-dos engenhos,
O noturno Duende enferrujado:
Canta as asas do Corvo e canta a Morte,
O Sangue e as coisas podres do Paudarco.
As canas, o homem-sem-conchego-nobre,
O musgo-verde, os Bois, o lodo-insonte,
As lagartixas-dos-esconderijos,
O doido Sol-ignívomo da Ponte...
E a Máquina-do-mundo quiema tudo
Na sua pele-de-rinoceronte!
Se ele cantou o mel de meus Engenhos,
Pressentiu meu Sertão com seus segredos:
Os Rifles pipocando o som das quedas
De mil lajedos sobre mil lajedos
E os Capitães-de-couro se matando
Nas pontas escarpadas dos Rochedos!
Ouço na Voz-noturna desse Engenho
Os jambeiros verdosos do Paudarco
Chovendo roxa-púrpura no chão
Do Recife do signo-estrelado,
E o Dono dos escudos-da-bandeira
No Cais-da-aurora canta seu passado.
IX
Ó paudarco, flor- de –ouro! O Corredor,
Com seu búzio-de-sonho, sonha e passa:
No açafrão, nos vestidos das meninas,
No cheiro de jasmins que ali perpassa,
Na argamassa do Tempo impiedoso,
Pedra e cal dos bueiros sem fumaça!
Salvou, assim, o verde de seu Reino
E o Pajeú-de-pedra do Sertão:
Gemem os Catolés, estrala a bala,
E passa, doido, El_Rei Sebastião,
Suja de sangue e pó a real Fronte,
Mas vivo no chapéu do Capitão!
E o búzio-decadente troa a Raça
E forja o Cavaleiro-destroçado,
E de esporas-quebradas, mas sem freio
Na burra que é castanha e que é sem rabo!
E eu bebo o Mel cheiroso dos Engenhos
No Pombal que é meu Reino-conquistado!
X
E todo o Reino canta nesse nome,
Pela Dama-de-sangue-coroado:
O Sínople, os Pescoços-de-serpente,
A Banda-sanguinosa do Enforcado;
Quatro Laivos-de-sangue que meu Sangue
Tinha visto nos campos do Sagrado!
Ela era leve, e tinha os olhos
Como o paudarco-âmbar da Acauhan,
E os ouros das acácias do Recife
Nos cabelos do sol-pela-manhã:
Olhos-andrades, crespos, cor-de-ouro,
Boca, vermelha flor de flamboiã!
E, misturando tudo, o mel do Engenho
Mais o mel das abelhas do Sertão.
Cana-caiana doce, olhos-estranjas,
Tão bonita, tão boa e tão do chão!
Era, mesmo, a Leoa-coroada,
Flecha em meu sangue, anel da solidão!
E eu vi que minha Dama era o Recife,
O engenho e o sertão do meu Sagrado.
Os clarins já se calam e as Coroas
Fulgiam pelo Reino-do-Escampado.
O sol comia o cobre do horizonte:
Terminava a viagem do sonhado!
Soltou-se a Onça-negra da estrelada
E o meu Recife, ali, na escuridão,
Era, agora, o Fortim-iluminado,
O baluarte, a Nau, o bastião,
Colocado entre o Reino-azul do mar
E o meu Reino-castanho do Sertão!
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