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Erotico-->2. A SANTINHA -- 26/10/2002 - 07:22 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Do seu lado, atrás de um biombo, chorava uma vozinha infantil, magoada, infeliz.

Enfermeiras apressadas apareciam e desapareciam, indo e vindo com diversos apetrechos em vasilhas de aço inoxidável.

Prisco estava preso ao tubo que o alimentava de soro, com a agulha enfiada na veia do braço esquerdo. Ninguém notou que acordara.

Volveu os olhos para o outro lado e deu com a fisionomia baça de um velho de cabelos desgrenhados e barba por fazer, os olhos no fundo das órbitas e a as maçãs do rosto saltadas, como se os ossos quisessem impor presença. Viu um esboço de sorriso, notando que as gengivas do candidato a defunto ostentavam dois únicos dentes, um embaixo, outro em cima.

Ia dizer algo, mas não encontrou palavra que pudesse estabelecer comunicação. Imaginou que a velhice do outro lhe trouxera a surdez e não teve ânimo de elevar a voz. Limitou-se a erguer o braço livre, quando notou que o gesto se tornou loquaz mesura desproporcionada ao sentimento de piedade que lhe causara a desgraça alheia.

Intensificavam-se as lamúrias infantis e os sussurros emotivos das pessoas escondidas pelo anteparo.

Prisco não estranhou o quadro tétrico em que se viu inserido como figura central. Até bem pouco tempo, freqüentara o hospital em que perderam a vida a esposa e a filhinha. Acostumara-se às paredes frias e às janelas vazias de cortinados, altas, com as folhas na parte de fora, deixando vazar uma luz sem raios de sol.

Recordou-se de que andava pela areia, trôpego e cansado e que começava a sentir rodopiar a cabeça, enquanto uma sensação úmida lhe escorria pela testa, confundindo-se com o pranto que não mais segregava.

Não estava coberto e seu dorso nu fez que buscasse a camisa que lhe haviam retirado. Estava ao pé da cama. Imaginou que os chinelos se achassem por ali, pondo instintivamente a mão no bolso da calça para ver se encontrava a carteira. Nada.

“Quanto dinheiro havia? Muito pouco. E os documentos? Vai ser difícil recompor todos eles, inclusive o passaporte, com o recente visto para os Estados Unidos.”

Notou os pensamentos pesados, como que em câmara lenta.

“Que será que me deu?”

Suspeitou de um ataque cardíaco, mas a ausência de medidores eletrônicos tranqüilizou-o

“Que bom se isto aqui fosse a entrada do círculo existencial após a vida. Eu veria entrar minha Eulália com a filhinha no colo.”

Ao invés disso, entrou o pai, empurrando a mãe pelo braço.

— Que foi, meu filho? Estão dizendo que o recolheram na praia.

— Pai, eu não sei. Estava caminhando quando tudo sumiu.

A mãe, mais prática, aventou:

— Você não tem comido direito. Foi fraqueza. O sol quente deve ter ajudado.

— Eu me sinto um pouco zonzo. Se estão aplicando soro, significa que preciso hidratar-me.

O vozerio chamou a atenção de uma das enfermeiras do outro lado, que deu o ar da graça:

— Você teve uma insolação. Nada de mais. O doutor já passou por aqui e deixou que dormisse à vontade. Achou que estava precisando de repouso.

— Quando vou poder sair?

— Normalmente, o período de observação é de oito a dez horas.

— Que horas são?

— Duas da tarde.

— Então, faz umas três horas...

— Faz uma hora e meia. Agora é bom que essas pessoas saiam...

— Minha mãe e meu pai.

— Prazer. Nós estamos com uma emergência. Uma menina que sofreu graves queimaduras. Estamos precisando de espaço. Por favor...

Indicava a porta.

Prisco ainda perguntou:

— Quem avisou vocês?

— O próprio hospital. Aliás, eles me devolveram a sua carteira.

— Está tudo aí?

Não ouviu a resposta. Um clamor abafou os ruídos dos instrumentos. Um choro convulsivo se fez ouvir, enquanto clamava uma voz desesperada:

— Minha filha, não me deixe. Santinha, santinha, agüente firme. Fique comigo. Santo Deus misericordioso, tenha piedade de nós. Tenha piedade de nós...

Irromperam quarto adentro várias pessoas. Houve um tumulto pressentido pelo violonista e espiado pelos pais. Vieram também vários médicos e diversos enfermeiros. A cena de dor se desenrolou em ambiente de tragédia grega, fora da vista do possível espectador.

Foram muitos minutos, demorados e sofridos, a ponto de se esvaziar completamente o frasco de soro.

Finalmente, um magote de pessoas saiu abraçado, lenços aos olhos e soluços cortantes. Os pais de Prisco também se foram. E os médicos. E os enfermeiros.

Veio a enfermeira anterior e substituiu o frasco vazio.

Meia hora depois, amortalhado num lençol branco, posto sobre a maca de rodinhas, saiu o corpo da menina. Foi quando removeram o biombo, deixando-lhe à vista o leito com seu colchão azul escuro despido.

Ouviu-se um grunhido do outro lado. Prisco se voltou e deu com o mesmo sorriso desdentado e parvo do moribundo.

“Quem é que dá o direito à vida a uns e nega a outros?”

Sentiu que a pergunta se dera de forma mecânica, surpreendente, porque o que lhe passava pela cabeça era que precisava livrar-se logo daquele ambiente de dor.

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