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Artigos-->Acerca de “O Ciúme”, canção de Caetano Veloso -- 31/08/2008 - 17:30 (Jayro Luna) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Acerca de “O Ciúme”, canção de Caetano Veloso



Uma das canções mais bonitas que fazem referência ao Rio São Francisco é, sem dúvida, “O Ciúme” de Caetano Veloso. Assisti um vídeo no Youtube com Gal Costa e o próprio compositor baiano em belíssimo dueto interpretando a música. Já ouvi essa música na voz de Geraldo Azevedo que dá uma interpretação um pouco mais ligeira e ao mesmo tempo, menos dramática que a dos dois tropicalistas. Certa feita num bar à beira do Rio São Francisco, do lado de Juazeiro da Bahia, próximo à ponte que une a cidade baiana à Petrolina, do outro lado do rio, em Pernambuco, em companhia do amigo Benedito Bezerra, tomávamos uma cerveja e ouvimos o cantor que ali se apresentava, com seu violão, fazer uma interpretação também bem intimista da música.

Neste breve texto pretendo fazer uma análise da letra desta canção, nossa análise já foi parcialmente apresentada no congresso regional da SBPC, ocorrido na UNIVASF, em 2007, assim como também falamos um pouco acerca disso no 11.° Congresso Internacional da Abralic, na USP, em 2008.

1.1. A Forma e o Ciúme

A letra da canção foi por nós consultada em diferentes sites, inclusive os sites que se apresentam como oficiais de Caetano Veloso (www.caetanoveloso.com.brsite) e o site (www.caetanoveloso.com.br). Buscamos encontrar a forma de transcrição da letra que mais correspondesse às necessidades poéticas de uma composição versificada. Cremos que aquela que divide a canção em 5 estrofes, sendo as duas primeiras e as duas últimas transcritas como quartetos, e a estrofe central com 5 versos, a que melhor representa essa nossa necessidade:



O Ciúme

Dorme o sol a flor do Chico meio dia

Tudo esbarra embriagado de seu lume

Dorme ponte, Pernambuco, Rio, Bahia

Só vigia um ponto negro, o meu ciúme



O ciúme lançou sua flecha preta

E se viu ferido justo na garganta

Que nem alegre, nem triste, nem poeta

Entre Petrolina e Juazeiro canta



Velho Chico vens de Minas

De onde o oculto do mistério se escondeu

Sei que o levas todo em ti, não me ensinas

E eu sou só, eu só, eu



Juazeiro nem te lembras desta tarde

Petrolina nem chegaste a perceber

Mais na voz que canta tudo ainda arde

Tudo é perda, tudo quer buscar, cadê



Tanta gente canta, tanta gente cala

Tantas almas esticadas no curtume

Sobre toda a estrada, sobre toda sala

Paira, monstruosa sombra do ciúme.



Podemos contar os quartetos como formados por endecassílabos, com rimas cruzadas, e acentos predominantes na 3.ª, 7ª e 11ª sílabas:



Dor/ me o/ sol/ a/ flor/ do/ Chi/ co/ mei/ o/ di/a (11)

Tu/ do es/ bar/ ra em/ bri/ a/ ga/ do/ de/ seu/ lu/me (11)

Dor /me/ pon/ te,/ Per/ nam/ bu/ co,/ Rio,/ Ba/ hi/a (11)

Só/ vi/ gia / um/ pon/ to/ ne/ gro, o/ meu/ ci/ ú/me (11)



O/ ci / ú/ me/ lan/ çou/ su/ a/ fle/ cha/ pre/ta (E) (11)

E/ se/ viu/ fe/ ri/ do/ jus/ to/ na/ gar/ gan/ta (11)

Que/ nem/ a/ le/ gre,/ nem/ tris/ te,/ nem/ po/ e/ta (11)

En /tre/ Pe/ tro/ li/ na e/ Ju / a/ zei/ ro/ can/ta (11)



Ju/ a/ zei/ ro/ nem/ te/ lem/bras/ des/ta/ tar/de (11)

Pe/ tro/ li/ na/ nem/ che/gas/te a/ per/ce/ber (11)

Mais/ na/ voz/ que/ can/ ta/ tu/ do/ ain/ da / ar/de (11)

Tu/do é/ per/da,/ tu/do/ quer/ bus/car,/ ca/dê (11)



Tan/ ta /gen/ te/ can/ ta,/ tan/ ta/ gen/ te/ ca/la (11)

Tan/ tas/ al/ mas/ es/ ti/ ca/ das/ no/ cur/ tu/me (11)

So/ bre/ to/ da a es/ tra/ da,/ so/ bre/ to/ da/ sa/la (11)

Pai/ ra,/ mons/ tru/ o/ sa/ som/ bra/ do/ ci/ ú/me. (11)





O número 11 é do tipo palindrómico, isto é, pode ser lido de trás para frente que não modifica o seu valor, é também um símbolo da igualdade e da identificação (1=1), na numerologia é um número de avatar, de espiritualidade e de intuição. Assim, as duas cidades, Petrolina e Juazeiro estão, uma diante da outra, em constante processo de auto-identificação e espelhamento. A ponte funciona nos dois sentidos, indo e vindo, assim como o palindrómico número 11. E ainda, existe, em termos numéricos, o aspecto de que o número 11 é primo, não sendo divisível além de por ele mesmo e pelo número 1. Como, o número 11 é formado pela repetição do algarismo primeiro, esse processo de divisão assume o caráter psico-simbólico de que a separação entre o eu e o outro é ao mesmo tempo um elo para a auto-identificação, quanto para o reconhecimento do outro.

A estrofe central do poema, porém, não permite uma escansão tão simétrica e regular quanto a que propomos para as demais, mas a engenhosidade de sua metrificação híbrida e o fato de estar colocada ao centro do poema dá um sentido simbólico à forma:



Vê/ lho /Chi/ co /vens/ de/ Mi/nas

De on/ de o/ o/ cul/ to/ do/ mis/ té/ rio/ se es/ con/ deu

Sei/ que/ o /le/ vas/ to/ do em/ ti,/ não/ me/ en/ si/nas

E/ eu/ sou/ só,/ eu/ só,/ eu



A estrofe pode ser escandida em dois versos heptássilabos e dois dodecassílabos, um dos quais, alexandrino. Os dois heptassílabos seriam num sentido significativo da forma da estrofe, dois hemistíquios separados. Se os juntamos, temos a possibilidade de formar um verso dodecassílabo: “Vê/ lho /Chi/ co /vens/ de/ Mi/nas /E eu/ sou/ só, eu/ só, eu” Porém, para que isso ocorra, é preciso que o segundo hemistíquio modifique sua característica de acentuação, o que implica em dizer, que também no processo de união de dois seres, é preciso que se modifique algumas características da individualidade, notadamente dos aspectos egoístas do ser, para que tal união seja prazerosa a ambos. O ser “só eu”, implica na quebra da solidão também.

Os dois versos centrais da estrofe e, por conseguinte, do poema, levam a cabo o que nos hemistíquios se apresenta como possibilidade. O segundo verso da estrofe é um dodecassílabo com acentos na 4.ª, 8ª e 12ª sílabas. Sílabas pares, e o par é a união. O terceiro verso é um alexandrino com elisão na 7.ª sílaba, ou seja exatamente ao meio do poema, temos na forma, a analogia com a ponte que une (/do–em/), Já que esta 7.ª sílaba é a última do primeiro hemistíquio do alexandrino e a primeira do hemistíquio seguinte. Do-em (doem), do verbo doer, presente do indicativo, 3.ª pessoa do plural. Aqui começamos a falar do ciúme. O ciúme é doloroso, é um sentimento que causa dor a ambos, ao que se enciúma e ao que sofre o efeito da ação enciumada do outro. O ciúme é o processo inverso da auto-identificação na relação de união.

Para C.G. Jung, o “Ciúme é a falta de Amor”(1) , em Freud, no texto Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranóia e no homossexualismo, temos uma distinção de três tipos de ciúmes: o competitivo ou normal, o projetado e o delirante. Freud acerca da projeção do ciúme escreve:



“O ciúme da segunda camada, o ciúme projetado, deriva-se, tanto nos homens quanto nas mulheres, de sua própria infidelidade concreta na vida real ou de impulsos no sentido dela que sucumbiram à repressão. É fato da experiência cotidiana que a fidelidade, especialmente aquele seu grau exigido pelo matrimônio, só se mantém em face de tentações contínuas. Qualquer pessoa que negue essas tentações em si própria sentirá, não obstante, sua pressão tão fortemente que ficará contente em utilizar um mecanismo inconsciente para mitigar sua situação. Pode obter esse alívio - e, na verdade, a absolvição de sua consciência - se projetar seus próprios impulsos à infidelidade no companheiro a quem deve fidelidade”.

(FREUD: 1976, p. 271)



Ver no outro, aquilo que temos medo em reconhecer que existe em nós mesmos, no âmbito da relação amorosa ou de amizade é, para Freud, o elemento causador do ciúme projetado. Nesse sentido, o número 11, do verso endecassílabo dá a analogia numerológica do que seja essa projeção. É preciso reconhecer no outro aquilo que reflete de nós mesmos e saber trabalhar isso, evitando o ciúme.

Os nomes Petrolina (gênero feminino) e Juazeiro (gênero masculino) formam, por analogia, a união masculino-feminino da relação amorosa. A origem desse sentimento parece ter causas diferentes. Desde a antiguidade mais remota, para o homem tornou-se evidente a garantia da paternidade. As razões estão na questão do herdeiro, daquele filho que continuará a obra do pai. A descoberta de uma falsa paternidade, implica na perda do que foi feito para outro. Não são poucas as obras literárias que tratam da questão da descoberta da paternidade como elemento definidor da trama, como em O Arco de Sant’Anna de Almeida Garrett. Para a mulher, o investimento na geração de filhos, tinha sentido diverso. Manter o marido, significava a garantia de poder criá-los a bom termo perante as exigências sociais, econômicas e morais. O homem, por seu turno, sentia-se em condição de se dedicar à mulher e arrumar uma ou mais amantes, para satisfação sexual. A mulher, no lar, sentia, em geral, maior necessidade de envolvimento emocional para a prática do sexo. Como observa Thiago de Almeida:



Ainda, ao se discorrer sobre a temática do ciúme é necessário lembrar que para alguns teóricos, como De Steno & Salovey, 1996 e Harris & Christenfeld, 1996(a e b), pelo menos na cultura ocidental, a infidelidade sexual tem diferentes conotações para homens e mulheres. Como o amor geralmente é um pré-requisito para o envolvimento de uma mulher em um relacionamento sexual, isto faz com que se imagine que a infidelidade sexual feminina esteja associada com o envolvimento emocional com outro parceiro (De Steno & Salovey, 1996). Todavia, consoante Sheets e Wolfe (2001), a infidelidade masculina não tem tal implicação porque os homens têm mais condições de praticar sexo sem amor.

(ALMEIDA: 2007)- (2)



Na letra de O Ciúme, se tomamos o gênero das palavras Petrolina e Juazeiro para compor a analogia de um casal masculino-feminino, é preciso que identifiquemos um terceiro, o causador do ciúme entre ambos. Não havendo a possibilidade do terceiro, não existiria razão causadora do ciúme. Este terceiro é o rio São Francisco, que se interpõe entre as duas cidades: “Entre Petrolina e Juazeiro canta”. A estrofe central, começa por tratar diretamente do rio: “Velho Chico vens de Minas”. O rio é o viajante que vem de longe e se coloca entre Juazeiro e Petrolina. Porém, esse ciúme logo é superado, pois o viajante segue seu curso, a admiração que causa a um e o outro a beleza do rio, logo é compreendida pelo outro, apenas, como tal, admiração. A ponte que se constrói, unifica ambos, fazendo com que seja superada a dificuldade causada pela passagem do rio.

Para C.G. Jung, os sentimentos que buscamos negar em nós mesmos formam uma sombra. O material reprimido forma um self negativo, a Sombra do Ego. A canção termina nesses termos: “Paira, monstruosa sombra do ciúme”. Na primeira estrofe da canção, temos rima lume/ciúme. O brilho do sol refletido nas águas do São Francisco em oposição ao “ponto negro”, intrínseco do sentimento de ciúme. Na última estrofe, esse sentimento é exteriorizado pelo eu lírico, de modo que o ciúme pode ocultar o brilho do Sol. Na simbologia esotérica, o Sol representa os sentimentos do coração. Uma vez que possui luz própria, que ao contrário da lua que a reflete, essa luz vem de sua interioridade. A luz que se reflete, no caso da Lua, é a luz do conhecimento que é preciso adquirir exteriormente, ao passo que a luz que vem de dentro é a da sabedoria.

A sombra do self negativo, dominada pelo ciúme pode, pois, eclipsar essa luz do Sol interior.

1.2. O Canto do Ciúme e os sentidos da percepção

O ciúme se transforma também no canto do eu lírico: “o meu ciúme” (v.4). Ferindo a garganta, transforma-se em canto isolado: “O ciúme lançou sua flecha preta /

E se viu ferido justo na garganta”. O cantar poético também se modifica, a dor causada pelo ciúme tira a aura da canção, transgredindo-a, reduz o valor do canto à expressão de um sentimento que não é de tristeza (drama, tragédia), alegria (comédia), nem poética (lírica), mas apenas a indiferença do distanciamento causada pela modificação da memória (épica). O mistério oculto a que se refere a canção é, pois, o da auto-identificação do eu lírico, que se sente diminuído pela impossibilidade de posse da beleza da Natureza. A tentativa de captar essa beleza vista ali da ponte entre Petrolina e Juazeiro, leva o poeta a opor seu “ponto negro” de ciúme ao brilho do Sol sobre as águas do rio. É o reconhecimento da mimesis como um processo de imitação, mas enquanto tal, não é a verdade, mas o simulacro: “Mais na voz que canta tudo ainda arde /Tudo é perda, tudo quer buscar, cadê”. Busca incessante de apreensão do belo que resulta no moto contínuo da própria arte.

Tantos são os cantadores da beleza, quanto são os que os ouvem (“Tanta gente canta, tanta gente cala”). Lembremos, a propósito, que de Juazeiro vieram João Gilberto, o criador da Bossa-Nova e Ivete Sangalo, musa da música bahiana contemporânea. A vida sob o Sol, na impossibilidade de modificar esse estado de impotência de apreensão da verdadeira percepção da Natureza, se reduz, numa visão trágica, ao corpo e à alma, endurecendo-se aos sentimentos como se fossem peles “esticadas no curtume”. Agora o ciúme é o do artista diante da Natureza, e a obra de arte a expressão desse ciúme. A impossibilidade de posse da Natureza causa esse sentimento. O artista teme perder o que não tem, eis o mistério. Movido por esse sentimento, se dedica a tentar aprender um modo de controlar o que não consegue conquistar, mas tal tarefa é fadada ao fracasso do simulacro, restando a solidão, pois que a beleza da Natureza, lhe parece fugidia como as águas do rio passando por sob a ponte e seus pés: “Sei que o levas todo em ti, não me ensinas /

E eu sou só, eu só, eu”.

Porém, o reconhecimento dessa impossibilidade (“Sei que o levas”), é também o maior trunfo do artista, é sua tênue possibilidade de vitória, pois a obra produzida, seu canto, substitui o bem que não se pode ter. Nessa atitude inicial de consolação, encontra artifícios para superar a dor da perda iminente pela alegria da descoberta da nova sensação, a obra materializada expondo-se aos seus sentidos. Essa obra que substitui o que se perde, é na canção, representada pela ponte. A obra humana que se apresenta bela por desafiar a Natureza e conjugar-se no cenário, unindo-se à própria Natureza, como aparente parte da cena, quando na verdade é artificial.

___________________________________

Notas:

1.Carl Gustav Jung, de Memórias, sonhos, reflexões, 1993.

2.Ciúme romântico e infidelidade amorosa entre paulistanos: incidências e relações / Thiago de Almeida; orientador Ailton Amélio da Silva. -- São Paulo, 2007. 234 p.

Dissertação (Mestrado – Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Área de Concentração: Psicologia Experimental) – Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.





2. Referências Bibliografias:



ALMEIDA, Thiago de. Ciúme romântico e infidelidade amorosa entre paulistanos: incidências e relações Dissertação de Mestrado, orientador Ailton Amélio da Silva. São Paulo, Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, 2007. 234 p.

FREUD, Sigmund. “Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranóia e no homossexualismo”. In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Vol. 18. Rio de Janeiro, Imago, 1976.

















Comentarios

Silvana Cangussu   - 19/01/2024

Tão especial essa análise... tão esclarecedora. A genialidade de Caetano Veloso se legitima nessa análise. A letra da música, "O ciúme", está narrada no podcast "Ouvi, senti", no Spotify, em menos de dois minutos. Convite está feito: ouça também.

Silvio  - 20/07/2023

Que análise linda.

Davi Araújo Alves  - 29/12/2022

Maravilhoso e muito didático!

Mabel Rosa  - 18/11/2022

Que linda ponte entre a arte e a psicologia. Muito interessante!

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