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Contos-->OLHOS DE SELVA AZUL... -- 09/07/2002 - 09:50 (Lenine de Carvalho) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos






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OLHOS DE SELVA AZUL



I



Resolveu verificar tudo novamente.

Os vários fardos envoltos em plástico amarelo e resistente estavam amarrados e enfileirados na areia fina da praia. Seria muito desagradável, dias depois, em plena selva, quando resolvesse acampar, descobrir que estava faltando alguma coisa importante.

Portanto, estava conferindo tudo outra vez..

O fardo com arroz, sal, latas de óleo, café, farinha e algumas latas de frutas em conserva, estavam em ordem.

O outro fardo continha o material de pesca, carretilhas, molinetes, varas de nylon desmontáveis, caixas de anzóis, chumbadas, e carretéis de linha. Ali também, estava a munição, 10 caixas de balas calibre 38, 10 caixas de balas 7,65 mm e 20 caixas de balas calibre 22.

Como sempre, levava três armas, a pistola automática, MAB, francesa, modelo militar de 7,65mm e 10 tiros iria num cinturão cheio de balas, o coldre baixo, para o saque rápido. O rifle Winchester, de alavanca, calibre 38, modelo especial, poderoso e de alta precisão. E o rifle automático de 15 tiros, Remington, calibre 22, de balas pequenas, mortíferas e silenciosas.

Verificou os fardos um pôr um, a pequena barraca, as panelas e os pratos de alumínio, a maleta de primeiros socorros, a máquina fotográfica e os filmes na caixa de isopor, o gravador e toca-fitas, as caixas de pilhas. Olhou com carinho para os livros. As obras completas de Federico Garcia Lorca em espanhol, Fernando Pessoa Cecília Meireles, o monumental "Also Spracht Zaratustra", de Nietzche, A Farewell to Arms, de Hemingway.

Quando se deu por satisfeito, começou a transportar tudo para o barco de alumínio. Neste, o peso maior eram três galões plásticos com 100 litros da gasolina cada um, para alimentar o valente motorzinho de popa, de 15 H.P.___

Havia sido uma viagem monótona e cansativa de avião, de São Paulo a Cuiabá e daí até Porto Velho em Rondonia.

Mas, finalmente estava onde queria.

Nas margens do gigantesco e impressionante Rio Madeira.

Antes de entrar no barco, olhou novamente, demoradamente, a imensidão do Rio Madeira, e imaginou que deveriam ser homens de ferro, de uma têmpera incomum e muito rara, os primeiros exploradores espanhóis e portugueses que há mais de 400 anos atrás ao se depararem com tamanho obstáculo, haviam dito:

__"Vamos atravessar!

E atravessaram.

Súbito, um bando enorme de garças, cuja brancura se destacava contra o céu de um azul intenso, passou voando alto, sobre o rio, próximo à margem, onde se encontrava.

__"Ela gostaria de ver isso, pensou."

Então, seus olhos encheram-se de lágrimas e com um gesto de raivoso, limpou com as costas da mão uma lágrima que havia rolado pela face, sacudiu a cabeça, entrou no barco e puxou com força a fieira, dando partida ao motor.



II




Arauá, o índio, estava velho. Muito velho.

Apesar disso, conservava um estranho vigor, em seu corpo magro e rijo. Seus membros continuavam flexíveis como sempre haviam sido, e ele conseguia enxergar muito longe ainda, e percebia todos os ruídos da mata e os interpretava.

Arauá era uma figura lendária, entre as várias tribos indígenas que habitavam aquela região pouco conhecida da Amazônia, que abrangia territórios do Brasil, Bolívia e Peru. Morava sozinho, à beira de um pequeno rio, numa enorme e bem construída oca, convexa e segundo a antiquíssima arquitetura índia, sem nenhum mastro central que a sustentasse. Dentro havia remédios para quase todos os males conhecidos, desde amargas infusões para os vários tipos de febres, ungüentos à base de óleo de capivara para friccionar as costas e o peito, e que fortaleciam os pulmões, banha de sucuri dissolvida no sumo de limões bravos, para artrites e reumatismos, emplastros de mandioca triturada e fermentada com cinzas de cactos, para aliviar e fazer secretar qualquer tipo de abcesso, havia minúsculas sementes vermelhas, que ingeridas combatiam eficazmente enchaços e inflamações, o espinho de caraguatá, torrado e moído, tinha grande poder cicatrizante, e sobretudo, havia venenos, muitos venenos, que ministrados numa dosagem que só Arauá sabia, inibiam e neutralizavam o veneno de vários tipos de cobras, escorpiões, lacraus e aranhas.

Arauá era conhecido de muitos índios, querido e muito respeitado. Além de saber aliviar e curar sofrimentos físicos, sempre que solicitado, dava conselhos sábios, prudentes e úteis. Fazia previsões, sobre a vida comunitária das tribos, sobe a caça e a pesca que invariavelmente revelavam-se acertadas.

Mas, apesar de tudo isso, e de falar fluentemente os vários dialetos das tribos da região, de ser querido e respeitado por todos, Arauá vivia sozinho e longe, porque gostava de interrogar, de interrogar as árvores e os animais, por menores que fossem, gostava de interrogar os rios, as pedras e as flores. Gostava de interrogar as nuvens, o sol, a lua e as estrelas. Gostava principalmente de interrogar a si mesmo, silenciosamente.

Arauá, havia se tornado velho e sábio. Muito velho, e muito sábio.




III




Havia várias horas já que estava subindo o Rio Madeira, próximo à margem esquerda. O ruído do motor de pôpa era uniforme e desenvolvia uma boa velocidade, entretanto era necessário estar atendo o tempo todo, pois era comum encontrar troncos, às vêzes enormes, flutuando, descendo rapidamente a correnteza e uma colisão poderia ter conseqüências imprevisíveis.

Por volta do meio dia atingiu um dos marcos de sua viagem.




O Rio Abunã. Sentiu uma alegria indefinível quando o barco entrou nas águas verdes claras, transparentes do Abunã. Depois da imensidão do Rio Madeira, o Rio Abunã, que vinha da Bolívia e desaguava neste, parecia minúsculo, embora tivesse mais de 300 metros de largura naquele local.

Do lado esquerdo, ficada solidamente no barranco, numa grossa estaca, uma placa grande, de madeira um tanto deteriorada anunciava em letras negras sobre fundo branco:

"TERRITORIO BOLIVIANO"

__"Nenhum guarda. pensou. Nenhum posto de Fiscalização, nenhum edifício de Alfândega, ninguém armado para pedir papéis, documentos, revistar bagagens e fazer peguntas idiotas. Nenhuma cara desconfiada e mal humorada."

E assim, através do Rio Abunã, entrou na Bolívia.

As águas eram de um tom de verde claro magnífico, transparentes, deixando em alguns pontos ver a areia branca do fundo e peixes que passavam.

A paisagem era soberba. Árvores imensas cresciam nas duas margens, cipós e trepadeiras floridas pendiam dos galhos, vez por outra, um peixe assustado pelo movimento do barco e o ruído do motor, saltava à flor da água com estardalhaço.

Resolveu navegar mais próximo à margem direita, pois logo começaria a entardecer e queria arranjar um bom lugar para acampar e passar a noite.

A paisagem tropical continuava a deslizar ante seus olhos, apenas rio, selva, sol forte e o azul intenso do céu, nenhuma casa, em nenhuma das margens do rio, nenhum vestígio de nenhum ser humano, então, um bando de araras coloridas em vermelho, amarelo e verde, passou voando baixo, conversando entre si com gritos agudos e roucos.

Avistou então, uma centena de metros à frente, uma clareira embaixo de uma figueira gigantesca, cujos galhos mais baixos roçavam a água.

Diminuiu a velocidade e aproximou mais o barco do barranco da margem. Desceu do barco, amarrou-o solidamente numa das raízes expostas da figueira e foi inspecionar o lugar. Era perfeito. Areia fina e limpa, sombra, e não havia moitas de arbustos muito próximas que pudessem ocultar algum animal desejoso de caçar alguma comida diferente.




IV




Arauá havia descoberto muita coisa, observando homens, animais, plantas e pedras.

Mas, muita coisa transcendia a compreensão de Arauá. Embora não fosse difícil para um índio, Arauá havia conseguido um controle e domínio quase completos sobre suas emoções, sentimentos e sensações. Pouca coisa seria capaz de espantá-lo, e nada conseguiria assustá-lo.

As explosões de cólera e violência de sua juventude, com o tempo haviam mostrado sua face inútil e negativa, e dado lugar à contemplação.

Havia participado de muitos combates, havia matado muita gente e sido ferido inúmeras vêzes, pois até onde a memória podia alcançar, as tribos antigamente viviam a guerrear-se pelos mais fúteis motivos.

Também havia combatido o homem branco, por mais de uma vez. E combater o homem branco era o tipo de luta mais fácil e mais difícil que havia, pois ele era de uma estupidez inacreditável, caia em todas as armadilhas, não era capaz de pressentir nenhuma emboscada, não sabia andar silenciosamente e nem orientar-se na mata, mas por outro lado, possuía armas barulhentas e terríveis, e quando conseguia agarrar um índio vivo, era de uma crueldade e perversidade inconcebíveis.

Arauá não gostava do homem branco. Já não o via há muitos e muitos anos, pois os remanescentes de várias tribos haviam se embrenhado muito fundo na floresta, onde nunca ninguém havia ido antes, e lá reconstruído suas aldeias.




V




Armou a pequena barraca sobre a areia branca do solo, encheu com a água do Abunã o velho cantil de alumínio e pingou dentro cinco gotas de cloro, que deviam liquidar todos microorganismos nocivos que pudessem existir nela. De um pequeno saco plástico, retirou vários pedaços cinzentos de carbureto, e espalhou-os em volta da barraca, isso evitaria que cobras, aranhas, escorpiões, e lacraias entrassem dentro da barraca, pois o cheiro do carbureto manteria à distância todos os bichos peçonhentos.

Havia algumas pedras na beira do rio e preparava-se para ir busca-las afim de fazer um pequeno fogão quando um ruído vindo de dentro da mata não longe dali fez com que se imobilizasse. Era o barulho inconfundível de dentes fortíssimos, que batiam uns contra os outros, em mandíbulas guarnecidas por músculos poderosos.

__"Porcos do mato! " Disse mentalmente.

Estendeu a mão, e agarrou o rifle 38, moveu com cuidado e lentamente a alavanca, sem fazer barulho e colocou uma bala na câmara. Depois, segurou o percursor com o polegar e apertou suavemente o gatilho, desarmando-o.

Feito isso, encaminhou-se para a direção de onde vinha o barulho, tendo o máximo cuidado para não pisar em gravetos ou montes de folhas secas cujo barulho poderia trair sua presença. Embrenhou-se na mata pisando com todo cuidado, e evitando roçar em galhos, abaixando-se, desviando-se. O barulho aproximava-se. Sabia que se permanecesse no chão, seria mais facilmente pressentido, além do que poderia ser atacado, e ele já havia visto mais de uma vez, o estrago que aquelas terríveis presas podiam fazer, tanto em homens quanto em cães. Entretanto, o porco do mato, ou queixada, uma espécie de javali sul americano, possue uma placa óssea na nuca, que o impede de erguer a cabeça, podendo portanto desferir mordidas apenas para os lados. Isso faz com que esteja a salvo, qualquer pessoa que consiga subir a tempo em alguma coisa que esteja a pelo menos um metro de altura. O barulho dos dentes entrechocando-se estava cada vez mais próximo. __"Estão vindo nesta direção, pensou. "Havia uma grande forquilha, na árvore ao seu lado, mais ou menos da sua altura. Subiu silenciosamente na árvore, sentou-se confortavelmente na bifurcação dos galhos, ergueu lentamente o percursor do rifle engatilhando-o e esperou.

Havia oito porcos, descendo lentamente a trilha natural, em direção onde ele se encontrava, com os focinhos escavavam o solo, a procura de raízes, grunhindo e batendo os dentes o tempo todo. Havia um macho enorme com as presas inferiores recurvadas e que de vez em quando brilhavam. Era o chefe do grupo e estava vigilante,


atento aos cheiros que o vento poderia trazer-lhe e aos ruídos da mata. Havia duas fêmeas e cinco leitões de vários tamanhos.

Apontou cuidadosamente para um dos leitões.

Nesse momento, não era mais o intelectual, o professor que dava aulas de teoria da Literatura numa importante Universidade, que falava vários idiomas e tinha uma porção de livros publicados. Era o caçador primitivo, que confundia-se com a floresta, e preparava-se para agarrar sua presa. Vindo do mais remoto dos tempos, sentia na pele e no corpo todo, uma excitação atávica, uma tensão agradável, uma expectativa que parecia imobilizar o tempo, eternizar o instante. Súbito, o macho estacou, começou a farejar o ar e a mover as orelhas, as cerdas duras do pescoço e das costas eriçando-se. ___" Esta desconfiando de alguma coisa, pensou. Dentro de instantes vai dar o alarme, e cada um fugirá para um lado. "

Oculto entre a folhagem, visou o centro da cabeça do leitão que havia escolhido, encheu os pulmões de ar, soltou a metade, prendeu a reparação, e lentamente foi apertando o gatilho, ao mesmo tempo que dizia mentalmente: "Peço-lhe mil perdões, meu irmão porco do mato, mas eu estou com muita fome e sua carne é muito gostosa."

O estampido ecoou forte pela mata, provocando uma gritaria de pássaros pelo alto das árvores, o macho de presas recurvas deu um grunhido agudo e num instante todos desapareceram em todas as direções.

No chão, sacudido por breves estertores estava o corpo do leitão no qual havia atirado. Por baixo da cabeça, um sangue espesso ia molhando o solo.



VI






Sentado sobre uma pedra, ao crepúsculo, contemplando o rio, Arauá era todo pensamentos.

Breve, teria de sair em expedição de busca, de folhas, frutos e raízes curativas e algumas delas só se encontravam muito longe dali a três dias de viagem a pé, através da selva, no vale das onças negras.

Arauá meditava sobre as entidades e divindades que habitavam a mata.

Ah! Quanto tempo fora necessário, quantas interrogações mudas e gritantes o haviam consumido até chegar abruptamente e quase sem surpresa, à grande revelação sobre a natureza e o papel das inúmeras entidades, boas e más que habitavam cada recanto da selva!

Para cada rio, por maior ou menor que fosse, havia uma entidade encarregada de diluir-se e conviver com ele, podendo às vêzes influenciar a vida e o destino de quem por ali passasse.

Para cada clareira na selva, cada trilha, cada lago, cada montanha, cada lugar, havia uma entidade que ali residia, e ou se extinguia quando o lugar deixasse de existir, ou se modificasse completamente.

As vêzes, Arauá acreditava que conseguia entrar em contato com essas entidades, conversar, de certa forma com elas, como quando pedia permissão para entrar em determinado lugar da floresta, ou quando voltava a pisar em algum lugar onde há muito tempo não ia, ou quando pedia proteção para si mesmo, ou ainda quando em suas longas meditações dirigia-se em voz alta à entidade que ele acreditava estar presente. E as respostas sempre surgiam, não das árvores ou da terra, não dos rios ou das pedras, mas de si mesmo, de seu próprio interior...

E foi assim, através de suas vozes interiores, de suas manifestações intuitivas, que havia chegado à grande conclusão, que afinal não surpreendeu, como seria de se esperar.

Todas as entidades, espíritos e divindades, que habitavam a floresta, eram na realidade uma só!

Pois a entidade era UNA E MULTIPLICADA !





VII








O cheiro estava delicioso. O lombo inteiro do porco selvagem, atravessado por uma vara verde, estava apoiado em duas forquilhas enfiadas no chão. Embaixo, num buraco raso, cavado com a faca de caça, um braseiro vivo assava a carne.

Num improvisado fogão de pedras, estava a frigideira, onde havia feito vários bolinhos de farinha de trigo e também aquecido a água para fazer um café.

Abriu uma pequena caixa e sorriu. Ali havia sabonetes, cotonetes, fio dental, escovas, dentifrícios e material para barbear-se. Alguns hábitos civilizados eram impossíveis de se perder, pensou. Despiu-se completamente, pegou um sabonete e desceu até o rio.

Verificou se o barco estava bem amarrado, colocou mais alguns ramos cheios de folhas verdes sobre os tambores plásticos de gasolina e molhou-os para evitar evaporação. Feito isso, foi entrando lentamente na água fresca e transparente do Abunã. Quando a água estava pela cintura parou. Então abaixou-se até submergir a cabeça, ergueu-se e começou a ensaboar-se.

A água estava agradável e ele sabia que no Abunã não havia piranhas em número suficiente para representar algum perigo. Deixou o sabonete na margem e virando-se mergulhou de cabeça, nadou por baixo da água com os olhos abertos, observando a areia branca e fina do fundo, alguns seixos arredondados e alguns peixe minúsculos que estavam a sua volta. Era impressionante como era límpida a água do Abunã.

Emergiu e deu algumas braçadas vigorosas contra a correnteza leve do rio e depois voltou para o pequeno acampamento.

Ainda nu, sentou-se na cadeira dobrável de lona e começou a comer a carne assada com os bolinhos de farinha acompanhados pelo café.

E pensar que há apenas três dias atrás estava em São Paulo, arrumando as coisa para a viagem, limpando e lubrificando as armas, escolhendo os livros que traria... Reviu mentalmente seu amplo apartamento, a imensa biblioteca, a sala de ginástica com aparelhos e um " tatami " onde duas vezes por semana um professor coreano vinha dar-lhe aulas de artes marciais.

O tapete macio da sala, a lareira, um "pegnoir" azul de seda sobre uma poltrona. Então a lembrança dela atingiu-o brutalmente, ouviu sua voz macia e quente, sentiu a pele aveludada, e dois olhos azul limpo e brilhante, que foram crescendo em sua frente, crescendo e crescendo, tomando conta da mata, do rio, do céu, da tarde que morria!... Pôs-se de pé, abruptamente. Grossas lágrimas escorriam-lhe pelo rosto, os punhos cerrados com toda a força, uma mão invisível apertando-lhe a garganta, impedindo-o de respirar, uma dor fina e aguda atravessando-lhe o peito. Caiu de joelhos. Os dedos enterraram-se no solo macio. Por entre as lágrimas murmurou baixinho: "Você está aqui?" Então, erguendo o rosto gritou: "VOCE ESTÁ AQUI? PODE OUVIR-ME? DÊ-ME ALGUM SINAL! COMUNIQUE-SE COMIGO, EU LHE PEÇO!"

Um nhambú guaçu piou ao longe... Vários outros responderam.

Chorou durante muito tempo, ajoelhado no chão.

Depois, acalmou-se. Levantou-se, foi até a beira do rio, lavou-se e vestiu-se. Colocou um tronco grande e grosso na fogueira, que deveria queimar toda a noite e entrou na barraca, deitando-se na rede.

Deus, como era difícil suportar a ausência dela!...

Como era mais difícil ainda, saber que essa ausência era para sempre...






VIII





Quando o sol acordou, Arauá pôs-se a caminho.

Levava uma espécie de sacola, grande, feita de couro de cervo, atravessada no peito. Na mão esquerda, o arco, grande, feito do cerne de uma palmeira, tostado no fogo, para dar-lhe elasticidade, e mais cinco flechas, três de combate, e duas para pesca, com pontas de osso de tornozelo de jacaré, que tinha uma farpa natural e uma vez penetrada, não se soltava mais. Na mão direita, a borduna, negra, pesada, cortante e pontuda, como uma espada primitiva, feita do mesmo material que o arco.

O vale das onças negras era um lugar muito bonito.

Arauá gostava de ir lá. Para si mesmo, havia colocado esse nome no lugar, pelo grande número de onças dessa cor que lá encontrara, quando por acaso, havia descoberto o vale. Ficava entre duas colinas grandes e suaves, tudo coberto por árvores altíssimas, mas o chão era surpreendentemente limpo, sem espinheiros ou cipós entrelaçados que quando prendiam-se de árvore em árvore, tornavam impenetráveis certos lugares. Mas ali não, podia-se caminhar sem esforço, por entre as altas árvores, e enxergar-se muito longe entre os troncos, e na terra escura e fértil cresciam inúmeras das plantas raras que Arauá necessitava para fabricar seus remédios.

Sem pressa, Arauá caminhava. Pois na selva, ninguém pode ter pressa. Com passo leve e ágil, Arauá ia se recordando do vale. Não sabia porque havia tantas onças negras reunidas no mesmo espaço de selva, ainda que amplo.

Mas, o que mais agradava a Arauá, era que ele sentia que a entidade que habitava aquele lugar, era uma entidade boa, benéfica, elevada, de harmonia e amor.

Arauá sentia-se bem naquele lugar, percebia que inclusive suas meditações, conclusões, e descobertas interiores, aconteciam ali, de uma maneira mais intensa e ao mesmo tempo, suave e natural.

Arauá durante o dia inteiro caminhou seguindo a margem do riacho que passava em frente a sua Oca e que ia desaguar no verde rio que os índios chamavam de "Tawáti" e os homens brancos de Abunã.

Quando o sol foi dormir, Arauá chegou ao "Tawáti".

Com a última claridade do dia, preparou junto a uma grande pedra, um lugar para dormir, e comeu várias frutas que havia apanhado pelo caminho.

Quando a escuridão chegou, Arauá deitou-se e adormeceu imediatamente.






IX






Deitado na rede, lutava para não se transformar num sentimentalóide, mas não conseguia deixar de pensar nela.

Lembrava-se de quando a havia visto pela primeira vez...

Ela tinha entrado em seu gabinete e muito educada e respeitosa lhe havia dito que estava preparando uma tese de Literatura Comparada, e necessitava de orientação e ajuda em relação a escritores espanhóis contemporâneos.

Ele levantou-se ao vê-la. Era de uma beleza estonteante.

Os cabelos louros compridos pareciam de ouro, a pele também era cor de ouro.

Os seios altos e redondos. Pernas e nádegas perfeitas. Mas o que mais atraia a atenção era o rosto.

Tinha uma luminosidade própria. Os lábios cheios e bem desenhados. Os olhos que eram de um azul claro límpido, ao notarem a perturbação dele, foram de repente pontilhando-se de reflexos verdes, até se transformarem num misto indefinível de azul e verde.

Sem perceber que estava olhando fixamente e em silêncio por um tempo demasiado longo para dentro daqueles olhos, pensou: "Parecem o azul do céu a tocar o verde da selva, ao longe, no horizonte!...

Tem olhos de selva azul..."

Deu-se conta então, que estava encarando-a há muito tempo e em silêncio e que ela havia parado de falar, e começava a ruborizar-se.

__"Desculpe-me! Peço-lhe mil perdões por tê-la olhado dessa maneira, mas é que vi dentro dos seus olhos algo que há bastante tempo não vejo, que gosto muito e que já me faz sentir saudades."

__"E eu poderia perguntar-lhe o que é esse algo?"

__"A selva."

__"A selva?"

__"Sim, é onde costumo escrever."

__"O senhor diz que escreve na selva?"

__"Sim, mas por favor, não me chame de senhor, o senhor está no céu, dizem. E como nós estamos na terra, e eu não gosto de formalidades, por favor trate-me por você. Estou à disposição, com meus parcos e humildes conhecimentos e também a minha pobre biblioteca particular."

A partir daquele dia, viam-se quase todos os dias em seu gabinete na Universidade. Ela era inteligente e sensível, tinha uma boa base cultural e falava fluentemente o espanhol, coisa imprescindível para o trabalho que se havia proposto a fazer. Com o passar dos dias foi sentindo que uma afeição cada vez maior por ela, e também uma crescente excitação sexual. Na verdade, estava surpreso por sentir-se perturbado sexualmente por ela, pois pela própria natureza de seu trabalho, estava acostumado a ver-se cercado de garotas bonitas e já havia possuído uma infinidade delas. Como era solteiro e morava sozinho e tinha um poder aquisitivo relativamente alto, as coisas eram bastante fáceis.

Geralmente mantinha romances curtos com alguma aluna e ocasionalmente com alguma colega da Universidade, mas nunca por um tempo suficientemente longo que pudesse transformar-se em alguma espécie de compromisso, ou começasse a restringir sua liberdade pessoal.

Também a tinha estado apaixonado antes, e não gostara da experiência.

Um dia, convidou-a para jantar. Ficou sabendo então que ela morava sozinha num pequeno apartamento, e ficou de apanhá-la às 19,30 horas. Quando chegou lá, surpreendentemente ela estava pronta, esperando-o. Estava linda, num vestido branco, simples, e os cabelos louros e brilhantes soltos, caindo até a metade das costas. Não usava nenhuma jóia, nem um simples anel ou brincos. Nada. Durante o jantar, ela falou muito pouco de si mesma, mas mostrou-se interessadíssima em tudo que ele dizia.

Ele contou-lhe de suas andanças pela selva, de seu espírito explorador, de sua identificação com a natureza primitiva, que todos os anos, desde há muitíssimo tempo, passava de dois a três meses no mínimo, acampado sozinho pelas matas sul americanas, e que as idéias mestras ou embriões de seus trabalhos literários haviam nascido em plena selva.

Falou-lhe das várias tribos indígenas com as quais havia convivido, dos idiomas e dialetos primitivos que conhecia, divertiu-a contando-lhe casos engraçados ocorridos em caçadas e pescarias, dos países que já havia visitado, de seu trabalho na Universidade.

Falaram sobre poesia, Literatura Universal, a situação política e econômica do mundo, as religiões orientais, e ele descobriu espantado que ela possuía uma soma de conhecimentos invulgar para a sua idade.

Percebeu, mais assombrado ainda que ela gostava dos mesmos livros e autores que ele, que tinha uma sensibilidade profunda e perigosa e que podia magoar-se com muita facilidade. Por volta de uma hora da manhã, levou-a de volta para seu apartamento.

Ela despediu-se dele na porta, dizendo:

__"Muito obrigada pela noite maravilhosa e inesquecível que você me proporcionou. Não imagina o quanto eu estava precisando disso. Muito obrigada."

__"Eu é que devo agradecer-lhe pela oportunidade que você me deu de falar tanto sobre mim mesmo. Acho que eu também estava precisando disso."

Repentinamente, não tinham mais o que falar um ao outro. E ela olhava-o com aqueles olhos azuis, onde começavam a misturar-se os verdes de todas as cores, então, ele tomou seu rosto entre as mãos, inclinou-se sobre ela e muito lentamente, levemente, comprimiu seus lábios sobre os dela, com uma ternura infinita, como se estivesse beijando algo muito frágil, como se estivesse acariciando uma flor...

Após beijá-la, olhou-a demoradamente, em silêncio, e disse: __"Boa noite, olhos de selva azul!"










X






Havia dois dias que Arauá caminhava junto à margem direita do "Tawáti", quando suas narinas sensíveis captaram um odor leve e estranho. Imediatamente parou. Abaixou-se, encheu a mão direita com a areia fina e dourada do solo, e deixou-a escorrer lentamente da mão fechada, determinando assim a direção do vento. Isso feito, voltou o rosto contra a leve brisa que soprava e aspirou devagar e profundamente.

Já sabia de onde vinha o cheiro.

Colocou uma flecha de combate no arco, e com todo o cuidado, começou a aproximar-se da figueira grande, que roçava seus galhos mais baixos na água.

Antes de chegar embaixo da figueira, o olhar de Arauá foi atraído por um pequeno objeto, brilhante, que refletia um raio de sol. Abaixando-se, recolheu na palma da m+o uma cápsula calibre 38 já deflagrada. ___"O homem branco esteve aqui." pensou contrariado, há uns dois dias atrás. Examinou os restos da fogueira, que havia sido enterrada, as marcas de passos no chão, seguiu as pegadas até uma árvore um pouco distante, percebeu onde o homem branco havia roçado seu corpo e apoiado os pés para sentar-se na forquilha, e mais além onde haviam passado os porcos e onde um deles tombado.

Voltando para a figueira, examinou todo o local.

Descobriu as marcas da corda que havia sido amarrada nas raízes da árvore, segurando o barco.

"O que estaria fazendo um homem branco, sozinho num lugar tão distante de onde os branco costumavam andar?" perguntava-se Arauá.

Tendo seguido todos os passos que o homem branco havia dado naquele lugar, e visualizado todos os seus movimentos, Arauá sentou-se com as costas apoiadas no tronco da figueira, relaxou todo o corpo, expulsou todos os pensamentos de sua mente, entrou num ritmo lento e uniforme de respiração, e preparou-se para receber todas as influências e vibrações que o homem branco pudesse haver deixado naquele lugar.

Imóvel sob a árvore, de olhos fechados, integrando-se à paisagem, como se desde sempre, tivesse estado ali, naquela posição, imutável, Arauá começou a sentir as vibrações e influências que haviam permanecido naquele local. Começou por senti uma opressão forte no peito, depois a garganta apertando-se mais e mais, e em seguida, dois pequenos rios de lágrimas saltaram dos olhos de Arauá... Então, a manifestação de cores começou a explodir por trás dos olhos fechados de Arauá. A bondade inata e o espírito elevado daquele homem branco, apareciam em relâmpagos dourados, sua capacidade de compreensão, abnegação e desprendimento refulgiam em cores prateadas, mas, mesclando-se ao brilho belíssimo dessas cores, atravessando-as, e por vezes apagando-as completamente, comparecia a escuridão pegajosa da tristeza, do desespero, cortada por traços de um vermelho vivo, da ira e do ódio contra a fatalidade, contra as forças maléficas do imponderável negativo, o vermelho escuro da revolta impotente por haver perdido algo ou alguém muito querido. A sensação de solidão e tristeza ora muito dolorosa, por isso Arauá abriu os olhos lentamente, interrompendo deliberadamente, aquele processo de assimilação de influências e vibrações...

Arauá sabia agora, quem era o homem que havia acampado ali sozinho, por uma noite.

Embora nunca o tivesse visto, conhecia-o e sabia o que ele procurava. E, coisa que não acontecia há muitos e muitos anos, Arauá sentiu uma espécie de medo! Aquele homem branco, na verdade já havia morrido, e andava à procura de sua própria sepultura...

Como não havia maneira de se saber se ele havia subido ou descido o rio, Arauá desejou que ele tivesse descido o "Tawáti", pois não desejava encontrar-se com semelhante homem, por saber que não poderia ajudá-lo, nem queria interferir em seu destino, e também por saber que aquele homem, com todos os fantasmas que o acompanhavam, podia sem o querer, abalar profundamente a harmonia interna e externa das coisas.

Arauá seguiu seu caminho, pois muitos índios necessitavam de seus remédios, e o vale das onças negras estava bastante longe ainda. Estava um pouco apreensivo, pela existência daquele homem branco naquelas paragens, pois, pelo que se sabia, eles nunca antes haviam chegado até ali. E se um deles tinha vindo, fugindo sabia-se lá de que, ou procurando sabe-se também o quê, outros poderiam vir atrás daquele, ou para ajudá-lo ou para destruí-lo, pois os brancos eram imprevisíveis. Apenas uma coisa era certa em relação a eles, onde se instalavam, acabava-se a paz, a harmonia, a beleza e o equilíbrio das coisas. Arauá estava pois, apreensivo e contrafeito.







XI






Despertou junto com o sol. Enquanto a água fervia no fogão de pedras, deu um rápido mergulho no rio e voltou para fazer café. Fritou alguns pedaços de carne do porco selvagem, fêz mais alguns bolinhos de farinha e abriu uma lata de pêssegos em calda. Depois de ter se alimentado, afivelou o cinturão com a pistola automática no coldre junto o quadril direito e em poucos minutos desfez o acampamento, transportando tudo para o barco. Voltou e enterrou a fogueira, depois de tê-la apagado com um pouco de água do rio.

Olhou em volta, para ver se estava tudo em ordem, viu a lata vazia de pêssegos e abaixando-se para apanhá-la. __"Devia tê-la enterrado com a fogueira, pensou". Olhou para o rio, estirou o braço para trás e atirou a lata com toda a força, um pouco para o alto, em direção à água. Com o mesmo movimento iniciado, a mão voou para o coldre e como que por mágica, apareceu com a automática já disparando. A primeira bala, acertou a lata em pleno ar, a mais de vinte metros de distância, projetando-a mais para a frente, a segunda bala atingiu a água a poucos centímetros à direita da lata que flutuava, os quatro tiros seguintes atingiram em cheio a lata, fazendo-a afundar, e os quatro restantes acertaram todos no mesmo lugar onde a lata havia submergido. __"Ainda estou em forma", pensou satisfeito.

Recarregou a pistola, girou-a no dedo indicador e enfiou-a no coldre. Abaixou-se, recolheu as dez cápsulas vazias que haviam caído no chão, atirou-as dentro do rio, e entrou no barco.

Embora ainda fosse bastante cedo, já fazia um calor, que prenunciava um dia quentíssimo, com poucas nuvens no céu. O motor pegou na primeira fieirada, ele abriu completamente o acelerador e manobrou para o meio do rio.






XII






Na metade do terceiro dia de marcha, Arauá lembrou-se do índio Nehay, que há muito tempo atrás havia morrido de tristeza.

Nehay tinha um filho pequeno, de dois anos de idade, que era a verdadeira adoração de Nehay.

Este índio era particularmente sensível, emotivo e de muito bom coração, sendo por isso, muito benquisto pelo resto de sua tribo.

Um dia a esposa de Nehay foi limpar peixes na

beira do rio, e levou consigo o pequeno Tahuy, deixando-o sentado próximo à margem, brincando na areia com um enfeite de penas de arara. Estava a uns dez metros de distância do filho, quando mais do que ver, pressentiu o movimento dentro da água, e aterrorizada assistiu ao imenso jacaré-açu sair correndo de dentro do rio, abocanhar seu filho pela cabeça, e mergulhar de volta no rio, levando a criança.

Os homens correram de armas na mão, ao ouvir os gritos da mão de Tahuy, mas nada puderam fazer. Nehay_ tinha chegado à frente de todos e quando soube o que havia acontecido, lançou um grito terrível e atirou-se na água.

Nadou desesperadamente por baixo d água, procurando em todas as direções, até quase explodir os pulmões. Quando Nehay saiu da água, todos viram que alguma coisa havia se quebrado dentro dele...

Com uma voz esquisita, Nehay anunciou a todos que iria morrer.

Todos compreenderam, e em silêncio respeitaram sua decisão...

Nehay, deitou-se em sua rede e com olhos ausentes não mais se alimentou nem bebeu água.

A esposa de Nehay foi chamar Arauá.

Arauá veio. Tentou conversar com Nehay, mas este não tinha mais o que dizer, pois a bem da verdade, já não mais pertencia a este mundo.

Arauá disse aos demais que nada poderia fazer, pois Nehay conscientemente havia decidido morrer, pois não conseguia suportar a ausência do filho que era a alegria de seus olhos.

Como essa alegria se fora, Nehay também se iria.

De acordo com o costume tribal, todos tinham que respeitar essa decisão, e não passou pela cabeça de ninguém tentar obrigar a viver quem não estava mais interessado na vida.

Arauá não sentiu nenhuma piedade por Nehay, apenas compreendeu-o.

Nehay morreu serenamente no décimo dia.

Relembrando de tudo isso enquanto caminhava, Arauá refletiu que provavelmente o homem branco era como Nehay, só que não sendo um índio, a decisão de morrer não tinha sido tomada a nível de consciência, lúcida e fria portanto o sofrimento seria muito grande e longo, pois o branco continuaria a movimentar-se como um morto-vivo, às vêzes mais morto, às vêzes mais vivo, e isso poderia perdurar por toda uma existência.

Contra sua vontade, Arauá teve pena do homem branco.










XIII








Há três dias já que navegava pelo Abunã, desde que o sol nascia até que a noite principiava.

Não tinha um destino certo.

Ainda em São Paulo, quando planejara fazer mais uma de suas viagens,

debruçado sobre o mapa, resolvera escolher o Abunã por ser um local remoto e sem

indícios da civilização por perto.

Pelo meio da tarde, descobriu um pequeno rio que desaguava na margem direita

do Abunã.

Dirigiu o barco nessa direção e resolveu explorá-lo um pouco.

O rio era estreito, com uns vinte metros de largura, de águas brancas limpíssimas, e surpreendentemente fundo para sua pouca largura.

Corria sobre um leito de pedras brancas e areia dourada.

Após algumas dezenas de metros de haver entrado nesse pequeno rio, maravilhou-se com o espetáculo que se abria ante seus olhos.

Dos dois lados do rio, em ambas as margens, cresciam figueiras gigantescas, cujas copas no alto, tocavam-se muitas vêzes, fazendo o rio parecer um túnel verde e líquido.

Garças brancas e flamingos rosados, passeavam lentamente pelas margens.

Mais a frente, uma lontra saltou dentro da água e a pouca distância ficou olhando-o curiosa.

Notou espantado que animais e aves olhavam-no sem medo, apenas curiosos.

__"Isto deve ser o Éden." Pensou. __"Provavelmente nunca tiveram contato com o homem dito civilizado antes."

O maravilhoso túnel verde fazia curvas suaves, ora à direita, ora à esquerda.

Resolveu parar numa das margens, para consultar o mapa, mas como imaginava, o pequeno rio não constava do mapa, mas como havia virado à direita, o rio provavelmente vinha do Peru, cuja fronteira não poderia estar muito longe.

Continuou navegando o resto do dia, num estado de deslumbramento sem fim.

Quando anoiteceu, armou o acampamento para passar a noite.

No outro dia, com os primeiros raios de sol, deu partida no motor, e recomeçou a navegar.

Notou que o rio começava a estreitar-se pouco a pouco, mas ainda permitindo a passagem do barco sem problemas.

A paisagem era a mesma beleza primitiva, pura, quase irreal.

Pela metade do dia, após uma curva quase abrupta para a direita, viu algo que o fez perder o fôlego de surpresa, e trouxe-lhe lágrimas aos olhos de emoção.

O pequeno rio terminava numa cachoeira de uns dez metros de altura, numa parede de pedra, brilhante, e em ângulo reto com a água.

Um pequeno lago, de águas tranqüilas, formava-sea partir do

ponto onde as águas caiam.

Na margem direita, um terreno plano, limpo, coberto com a mesma areia fina e

dourada que ele já observara antes, com árvores altíssimas ao redor, por onde

filtravam-se os raios de sol, parecia uma pintura surrealista.

Encostou o barco na margem, desligou o motor e ficou em êxtase, admirando tudo.

O local que estava procurando sem saber como seria, estava ali.

Era aquele.

A lembrança dela atingiu-o novamente, dolorosamente.

__"Como ela gostaria de estar vendo tudo isto!

Como seria bom se ela estivesse aqui!

Como seria bom abraçá-la agora!...

Oh! Meu Deus, por que ela se fora?"

Tentou afastar os pensamentos, sem conseguí-lo totalmente e começou a transportar todas as coisas do barco para a clareira entre as árvores.

Com o acampamento montado, resolveu subir até o alto da cachoeira para ver o que havia atrás.

Desafivelou o cinturão com a pistola, para não atrapalhá-lo, e apenas com a faca de caça presa pela bainha no quadril esquerdo, começou a subir o pequeno barranco, agarrando-se com as mãos em pequenos arbustos e raízes descobertas.

Em poucos minutos estava de pé sobre uma lage de pedra, no topo da cachoeira.

O rio continuava, mais raso, a correr sobre um leito de pedras, vindo com certeza do Peru, e logo após a cachoeira havia uma espécie de vale, a perder-se de vista, com morros pouco pronunciados, tudo coberto pela selva.

Dando as costas para o rio, observou a cachoeira lá embaixo.

O lago parecia ser bastante profundo, talvez fosse possível mergulhar nele do alto da cachoeira.

Mais abaixo, à esquerda via o barco de alumínio marrado a uma

castanheira.

Um pouco mais à esquerda, sua pequena barraca armada na sombra, e em frente a barraca a rede esticada entre dois troncos de árvores.

Seria agradável, mais tarde, depois que tivesse providenciado algo para comer, deitar-se na rede e descontrair-se um pouco.

O corpo andava reclamando por ficar tanto tempo sentado dentro do barco.

Continuava olhando absorto, o rio que continuava depois da cachoeira, quando sentiu uma vaga sensação de presença atrás de si.

Voltou-se como um raio, e deu de cara com a onça negra, a poucos metros dele, sentada sobre as patas traseiras, como um enorme gato lustroso, e olhando-o com os olhos amarelos cheios de curiosidade.

A mão direita desceu veloz em busca da pistola e imobilizou-se no quadril vazio.

A onça continuava a observá-lo curiosa e atenta.

Lentamente moveu a mão para o quadril esquerdo e empunhou a pesada faca de caça, com a ponta levemente voltada para cima.

Com a faca solingen, de lâmina grossa e afiada como uma navalha firmemente empunhada, aguardou.

__" Raios! Bem que mereço ser comido, pensou.

Portar-me como um novato depois de tantos anos, é o fim.

Que imbecilidade ter deixado a automática lá embaixo.

Ou ter subido até aqui sem o rifle!

Se ela resolver atacar, pouco ou nada vou poder fazer com esta faca!"

Continuava observando a onça, olhos nos olhos, notou os bigodes longos, brilhantes, a poderosa musculatura que ondulava sob os pelos negros.

A onça parecia n+o ter pressa para nada no mundo.

__"Posso saltar no lago lá embaixo, pensou.

Mas se não tiver profundidade suficiente, posso quebrar o pescoço, ou se saltar de pé poderei quebrar a espinha. Raios!"

Então, a onça levantou-se, espreguiçou-se longamente, deu meia volta, e desinteressada daquele bicho estranho que continuava imóvel em sua frente, trotou dignamente em direção às árvores próximas.

Com um suspiro de alívio, ele guardou a faca na bainha e desceu para o acampamento.






XIV








Arauá tinha chegado finalmente ao vale das onças negras.

O pequeno rio "Nyâmbe", que lançava suas águas no "Tawáti" era possuído por uma entidade benigna, que harmonizava-se com a entidade que cuidava do vale.

Arauá deitou-se de bruços, encostou a testa na areia, saudou em voz alta as entidades que habitavam o lugar, pediu-lhes permissão para entrar, e proteção para si.

Isso feito, sentiu-se bem e seguro, pois havia se colocado sob a proteção e guarda das entidades do vale, e se alguma coisa má tivesse de suceder-lhe, seria por conta de seu "ká", ou destino pessoal, que não podia ser mudado.

A meio dia de marcha, seguindo o curso do "Nyâmbe" habitava a pequena entidade da cachoeira, em volta da qual Arauá sabia existirem várias das plantas que necessitava.

Sem pressa, principiou a caminhar para lá.





XV








Precisava arranjar algo para comer, antes que anoitecesse.

Não precisou sair de perto da barraca para avistar perto dali, a palmeira anã, com dois metros de altura e o tronco cheio de espinhos.

Sabia que no topo da palmeira havia um palmito delicioso, com quase meio metro de comprimento, por mais de vinte centímetros de diâmetro.

Branco, macio e nutritivo.

Com o facão de mato, começou a derrubar a palmeira, com cuidado para não ferir-se nos espinhos.

Ouviu então um zumbido não muito longe.

Parou seu trabalho com o facão para ouvir melhor.

Abelhas! Era muita sorte!

Guiando-se pelo barulho, descobriu a colmeia num tronco seco de uma figueira morta. Rapidamente ajuntou perto do tronco um monte de gravetos e folhas verdes e acendeu-o . A fumaça logo espantou as abelhas e com a faca ele cortou grandes favos de mel, colocando-os numa tigela de alumínio. Cuidou para não danificar muito a colmeia, para que as abelhas voltassem e continuassem ali. Isso feito, apagou cuidadosamente o fogo e voltou para a barraca.

Perguntou-se se haveria peixes naquele trecho do rio, ou mesmo no pequeno lago formado pela cachoeira.

Vários pássaros estavam nas árvores ao seu redor.

Agarrou o rifle 22 e mirou cuidadosamente na cabeça de um pequeno pássaro colorido. O estampido seco e abafado quase não perturbou a paz do local, misturando-se com o ruído da queda d’água próxima.

Apanhou o pequeno pássaro sem cabeça e espetou-o num anzol médio. Armou uma das varas de nylon com um molinete, prendeu um encastoamento de aço na extremidade da linha e neste o anzol iscado com o pássaro.

Aproximando-se da margem do rio, arremessou o anzol sem chumbada, onde havia uma corredeira sobre as pedras. Destravou o molinete deixando que a força da água fosse desenrolando a linha. Instantes depois sentiu a linha esticar-se, travou o molinete e a vara curvou-se violentamente em sua mão. O dourado saltou fora da água vinte metros abaixo, saltou mais duas vezes, sacudindo a cabeça, tentando livrar-se do anzol e depois começou a ziguezaguear contra a correnteza, querendo escapar.

Com grande perícia recolheu a linha e na extremidade dela o dourado de uns três quilos.

Com a faca de caça cavou um amplo buraco no terreno macio e fez uma fogueira dentro.

Limpou o peixe e temperou-o apenas com sal. Envolveu-o com várias camadas de folhas largas e verdes, misturou água com a terra que havia tirado do buraco e cobriu as folhas com uma espessa camada de barro. Olhou o peixe que estava envolto em folhas e coberto de barro, enterrou-o nas brasas da fogueira e cobriu o buraco com terra. Duas horas mais tarde, reabriu o buraco, o barro havia se solidificado. Quebrou-o com as costas da faca e desembrulhou o peixe. O aroma estava divino.

A mesa desmontável e o banquinho de lona estavam armados na frente da barraca. Olhou para a sua refeição: Dourado assado, palmito e mel de abelhas.

"__Nada mal, pensou. Mais saboroso, leve e nutritivo do que em muitos restaurantes de cidade grande."

Antes de comer, resolveu nadar um pouco no lago. A água era fresca sem chegar a ser fria.

No meio do lago havia uma pedra imensa, que aflorava à superfície, nadou até lá e sentou-se.

Novamente a lembrança dela foi se insinuando, devagarinho... Andava lutando contra as recordações dela havia muito tempo. Às vezes sucumbia à dor e ao desespero, mas sempre lutava contra isso.

De cima da pedra, completamente nu, mergulhou no lago e nadou em direção a queda d’água. Deixou-se ficar sentado, de costas embaixo do jorro de água que caia lá de cima, a água massageando-lhe fortemente todos os músculos do corpo.

Sentado à mesa, comeu com grande apetite o peixe, e o palmito misturado com mel. Deitando-se na rede, abriu um dos volumes da obras completas de Garcia Lorca. Tentou introduzir-se no maravilhoso universo de Lorca, mas não conseguiu. O rosto dela começou avolumar-se ante seus olhos, e ele decidiu não lutar mais contra as recordações.

Os olhos verdes-azuis foram surgindo como se viessem de muito longe, aumentando, aumentado até tomarem conta de tudo. __"Olhos de Selva Azul... murmurou..."

E deixou-se mergulhar então dentro daqueles olhos que o chamavam...


Um dia na Universidade, ela apareceu em seu gabinete perguntando-lhe sobre um determinado livro. Ele lembrou-se então que possuía esse livro em sua biblioteca em seu apartamento. Como ela tinha certa urgência do livro, ele deu-lhe as chaves do apartamento e pediu-lhe para ir buscá-lo lá.

Ela a princípio recusou-se, agradecendo-lhe. Disse que não queria aborrecê-lo ou causar-lhe transtornos. Ele insistiu e convidou-a novamente para jantar. Disse-lhe que quando saísse deixasse as chaves com o porteiro do edifício.

À tarde, quando deixou a Universidade, comprou um buquê de flores para ela, pensando onde a levaria para jantar. Conhecia um lugar acolhedor, com bom vinho, música cigana e ambiente romântico.

Ao chegar em seu apartamento, lembrou-se que ela devia ter deixado a chave com o porteiro lá embaixo, mas não importava, pois ele tinha outra chave.

Abriu a porta e imediatamente sentiu o suave perfume dela. Deixou as flores na sala e dirigiu-se ao quarto para apanhar uma toalha, pois pretendia barbear-se e tomar um prolongado banho de banheira. O perfume dela persistia, começando a exitá-lo. Resolveu ir até a biblioteca para ver se ela havia encontrado o livro. A porta estava entreaberta, e reclinada numa poltrona, profundamente adormecida se encontrava ela. Os cabelos louros, espalhados em volta do rosto e os olhos fechados davam-lhe um ar angelical como ele nunca tinha visto antes em ninguém. Por baixo da blusa, os seios subiam e desciam suavemente, ao ritmo da respiração.

Sentiu uma ternura imensa por ela...

Ajoelhou-se e ficou um longo tempo observando-a .

Como era linda! Então beijou-a suavemente numa das faces. Ela abriu os olhos assustada. Olhou-o e disse: __Oh! Acho que adormeci! Que horas são?

__"São seis horas da tarde."

__"Meu Deus! Tudo isso? Preciso ir embora."

__"Não, fique. Vamos jantar aqui. Eu preparo algo para nós dois."

__"Mas..."

__"Espere, trouxe algo para você." Saiu e foi até a sala buscar as flores. Quando lhe entregou o buquê ela levantou-se e abraçou-o . Ele sentiu seu corpo firme e macio, os seios comprimindo-se contra seu peito. Tomou seus rosto entre as mãos e beijou-a longamente. Deixou sua mão direita escorregar até o seu seio esquerdo e apertou-o levemente. Ela deu um gemido baixo mas não o repeliu.

A partir daí, tudo aconteceu muito rápido.

Abaixando-se, passou seu braço direito sob as pernas dela e com grande facilidade ergueu-a no colo. Atravessou a biblioteca com ela nos braços e levou-a para o quarto, deitando-a na cama.

Os olhos azuis estavam completamente verdes.

Sem deixar de beijá-la e acaricia-la despiu-a completamente. O corpo tinha formas maravilhosas. A pele toda era de cor de ouro, os seios magníficos tinham bicos rosados, levemente salientes e voltados para cima. Despiu-se também e sentiu-a toda úmida. Deitou-se então sobre ela e constatou surpreso que ela era virgem, estava contraída e abraçava-o com muita força. Deitou-se então novamente ao seu lado, puxou-a sobre si e ficou beijando-a e acariciando-lhe as costas e as nádegas. Depois levantou-se, tomou-a novamente nos braços e levou-a até o banheiro. Encheu a enorme banheira com água morna e entrou junto com ela, sempre acariciando-a e conversando em voz baixa com ela, descontraindo-a . Voltando novamente para o quarto, deitados na cama, começou a beijar-lhe todo o corpo, os lábios, o pescoço, os seios, passou a língua pelo seu ventre dourado, as coxas, as nádegas, e então começou a beijar seu sexo, mordendo de leve seu clítoris, e sentindo-a estremecer. Então, começou a penetrá-la lentamente, suavemente, carinhosamente, fazendo todo o possível para evitar-lhe dor desnecessária.

Após o ato de amor, deitou-se ao seu lado, acomodou a cabeça dela em seu ombro e acariciando-lhe os cabelos perguntou-lhe:

__"Como se sente?"

__"Um pouco trêmula, mas feliz!"

Ela passou a noite em seu apartamento, beberam vinho, ele preparou uma ceia, mostrou-lhe todo o apartamento, ele queria vestir-se, mas ele insistiu que não, assim passearam por todos os cômodos completamente nus, e era uma festa para seus olhos contemplá-la andando, sentando-se ou abraçando-o .

Mostrou-lhe sua coleção de armas, pelos de animais selvagens, objetos indígenas, fotografias de lugares por onde tinha andado, no Brasil e no exterior. Fotos de Índios, da selva, do crepúsculo nos grandes rios...

Possuíram-se várias vezes durante a noite e dormiram abraçados.

A partir dessa noite, passavam juntos todas as noites, em seu apartamento ou no apartamento dela.

Todos os fins de semanas iam viajar, ou para alguma praia, ou acampavam na serra do mar, escondidos na mata atlântica. Ela revelou-se uma companheira e tanto nos acampamentos. Tinha disposição para tudo, e suportava contente grandes caminhadas entre as árvores, com uma pesada mochila das costas.

Por insistência sua, ela acabou vindo morar com ele em seu apartamento. Ele sentia-se feliz e completo como nunca se lembrava de haver se sentido antes. Fazia amor com ela todas as noites, e era extremamente excitante iniciá-la nos jogos do amor.

Depois, enrodilhava-se como um gato, parecendo bem pequeno, e adormecia em seus ombro, com ela acariciando-o . Quando despertava pela manhã, encontrava-a sorrindo para ele. A vida estava muito bonita.

Uma tarde, ele entrou no apartamento com os olhos brilhando.

__"Você não vai acreditar!"

__"Pela sua expressão imagino que sejam boas notícias."

__"Acabo de receber um convite da Universidade de Salamanca, para proferir uma série de palestras sobre Federico Garcia Lorca!

Já imaginou? Na própria Espanha! Eu, um brasileiro falando em espanhol, para uma platéia de espanhóis cultos, sobre um outro espanhol ilustre! Acho que estou em estado de choque!

__"Estou tão orgulhosa de você!

E foram para a cama. Seu relacionamento sexual havia amadurecido. Começavam a possuir-se ternamente e acabavam fazendo amor como tigres.

Exploravam ao máximo o corpo um do outro, extraindo todo o prazer que podiam dar-se.

Deitados, ainda ofegantes um ao lado do outro, ela disse:

__"Eu o ajudarei a preparar os textos das conferências. "

__"Quero que você venha junto! "

E assim passaram um mês na Espanha. Ela nunca tinha saído do Brasil, e ele levou-a também para Londres, Leipzig, Paris, Hamburg e Roma. De volta ao Brasil, ele disse:

__"Case-se comigo!

__"Porquê? "

__"Por que eu a amo. Por que você me faz feliz. "

__"Não é necessário que nos casemos. Vivemos tão bem assim. Somos bem recebidos em todos os lugares sem sermos casados. Vamos continuar assim.


__Porque você não quer?

__Observando todas as pessoas casadas que eu conheço, cheguei a conclusão que o casamento tem como finalidade principal, fazer com que as pessoas se tornem inimigas! Na verdade estou emocionada e feliz por você me haver pedido, mas tenho medo. Acho que não precisamos de nenhum papel que ateste que somos obrigados a sermos felizes.

__Veja, minha querida, há três fatores fundamentais para que um homem e uma mulher se realizem juntos: Colocando a mão em sua testa disse: __É necessário que ambos tenham o mesmo grau de inteligência, o mesmo Q.I., uma cultura equivalente. Colocando a mão direita entre seus seios, continuou: __Também é preciso que o fator emocional, a maneira de sentir as coisas, o que faz rir e o que faz chorar, seja o mais semelhante possível para ambos. E por fim, o mais difícil, e talvez o mais importante, disse, acariciando-lhe o sexo: __É imprescindível que na hora do amor, tudo dê certo, cada vez mais e mais! E nós, meu amor, formamos uma simbiose perfeita!

Ela abraçou-o com força e beijou-o

Ele não insistiu mais na idéia de casamento.


Um dia, resolveu ensiná-la a atirar.

Explicou-lhe o funcionamento de cada uma das suas muitas armas, como montá-las e desmontá-las, como enquadrar a massa de mira na alça de mira, fazer pontaria um pouco abaixo do alvo, para compensar o recuo da arma, o controle respiratório, quando se tratava de um alvo fixo, e o cuidado com as munições.

Ela interessou-se desde o início, e para imensa surpresa sua, revelou-se uma atiradora infalível. Com crescente espanto via-a acertar alvos minúsculos à distâncias inconcebíveis. Tinha a mesma pontaria com todas as armas, rifles, revólveres e pistolas. Desde que o alvo fosse parado ou estivesse em movimento lento, ela não errava um único tiro. Na verdade acabou atirando melhor do que ele.

Tentou ensinar-lhe o tiro instintivo, que é quando se dispara sem se fazer pontaria, olhando com os dois olhos abertos para o alvo, esteja ele em movimento ou não, a mão movendo-se com a velocidade do raio, empunhando, sacando e disparando a arma. Mas ela não conseguia velocidade suficiente. Entretanto desde que fizesse pontaria ela não errava.

Uma tarde, trouxe-lhe um embrulho, embalado em papel de presente. Toda curiosa, ela abriu-o Era um revólver Colt, calibre 32, cano longo, oxidado azulado, com cabo branco de nácar. Ela adorou-o .

Havia quase um ano que estavam morando juntos.

O amor era maravilhoso, a ternura infinita, a harmonia perfeita. A vida corria muito bonita. Muito.

Uma tarde, estava conversando na Universidade com um colega de trabalho, quando os olhos dela apareceram em sua mente. Por mais que se esforçasse para manter a conversação com o colega, a imagem dela tomava conta de seus pensamentos. Os olhos tornavam-se ora azuis, ora verdes.

Cresciam e diminuíam.

Começou a sentir uma espécie de mal estar físico. Resolveu ligar para o apartamento, do seu gabinete. Quando encostou a mão no telefone, ele tocou. Era para ele. Uma voz estranha, de homem, pedia-lhe para ir ao apartamento que tinha havido um acidente. Em pânico, dirigiu-se para lá às pressas.

Viaturas de polícia em frente ao prédio.

Curiosos aglomerando-se no corredor. Na porta de seu apartamento, um guarda uniformizado, colocou-lhe a mão direita no peito e gritou-lhe: __"Não pode entrar!"

Sua mão direita agarrou o plexo solar do guarda, a esquerda o peito do uniforme, ergueu-o no ar e atirou-o contra a parede oposta. No meio da sala, homens estranhos, alguns fardados outros não, olhavam-no surpresos.

Em grandes passadas chegou na biblioteca.

Ela jazia no chão. Os olhos abertos sem brilho eram de um azul pálido. Os cabelos louros estavam vermelhos de sangue. Na têmpora direita um pequeno orifício de onde havia corrido um filete de sangue, agora já coagulado. Estranhamente havia um sorriso nos lábios. A um lado, o Colt 32 que ele lhe havia dado de presente.

"... ela estava limpando o revolver quando ele caiu, bateu o percursor no chão, aqui, onde termina o carpete, e disparou. O ângulo do tiro confirma isso, segundo a perícia técnica, estava lhe dizendo um dos policiais.

E assim ela se fora. E assim o mundo desmoronara.

E assim, algo se quebrara nele por dentro...

Licenciou-se da Universidade, passou a morar em hotéis, pois não conseguia viver no apartamento que conservava todas as lembranças dela. Não conseguiu mais escrever. Passou vários meses em auto-comiseração e alheio a tudo. Passava várias horas fitando o vácuo. Não tinha parentes nem amigos que pudessem se interessar por ele. Descuidou de sua aparência pessoal. Dava às vezes longos passeios pelos lugares onde costumava ir com ela. Então, um dia, resolveu voltar para a selva...






XVI




Pelo Final da tarde, já próximo à cachoeira, Arauá ouviu um som que nunca tinha escutado antes. Surpreso, imobilizou-se na escuta. Não conseguiu imaginar o que podia produzir semelhante ruído. Atentamente continuou ouvindo. Era uma mistura de vários sons diferentes, cada qual mais estranho, mas que formavam um conjunto harmonioso e muito agradável de se ouvir. Após escutar por algum tempo, Arauá concluiu que era uma música muito bonita e que convidava à meditação. Soube também que o homem branco encontrava-se próximo à cachoeira.

Com todo o cuidado para não ser descoberto, Arauá encaminhou-se para lá. Oculto entre a folhagem, de cima da cachoeira observou o acampamento do homem branco. A pequena barraca, uma fogueira semi apagada. O branco tinha o corpo bastante bronzeado e músculos salientes, mas era sem dúvida um homem branco. Tinha nas mãos um pequeno objeto cujas partes ia abrindo de tempo em tempo. Arauá não conhecia o objeto.

Com primitiva paciência, Arauá deixou-se ficar imóvel, observando tudo.






XVII






Mas o que era vida? O que era a morte?

Um pedacinho de metal, de poucas gramas de peso, podia truncar tenta coisa? Quem manejava o acaso? Onde estava ela agora? Em que plano distinto, em que dimensão de espaço-tempo se encontraria aquela ternura, aquele amor, os risos todos partilhados juntos? As íntimas descobertas mútuas?

Poderia ela vê-lo agora? Ouvi-lo? Saber o que ele sentia? Seria possível que ela simplesmente não existisse mais? Que a essência do que ela era se tivesse dissolvido junto com a matéria?

Ela gostava de Debussy...

Colocou o toca-fitas uma fita que ela havia comprado.

Os sons da música clássica multiplicaram-se pelos troncos das árvores.

Começava a escurecer. Com a lenha que tinha juntado durante o dia, fez uma grande fogueira, que iluminava até a pedra no centro do lago.

Sentado na rede ficou olhando as chamas. O rosto dela aparecia emoldurado pelas labaredas louras.

Meu Deus! Quantas coisas gostaria de ter-lhe mostrado! Este lugar, por exemplo! Como ela o teria adorado! Mas ela estava morta! Morta!

E ele não prestara nenhuma homenagem especial à ela depois de morta. Mas o que poderia ter feito? Lembrou-se então que há muitos anos atrás, na amazônia oriental presenciara o funeral de um jovem Índio, na tribo "Neheratáy" . Havia estudado o dialeto deles e o falava bastante bem. Bem o suficiente para compreender todas as palavras do Canto dos Mortos, que todos os Índios adultos tinham cantado para o jovem morto.

E se cantasse para ela, o Canto dos Mortos da Tribo de Neheretáy?

Sem saber por que, pegou a pistola automática, e com ela na mão, entrou no pequeno lago, deu algumas braçadas com o braço esquerdo, mantendo a pistola fora da água com a outra mão, até chegar à pedra que ficava no centro da água.

Ergueu-se de pé sobre a pedra e gritou:

__"Namberehôy hitá!

Tyawêmbe-nehoy!

Tyawêmbe-nehoy!"

E então, com uma voz bonita, bem cadenciada, dolorida e cheia de saudade, começou a entoar o Canto dos Mortos:


__"Toystáre naherú ambê-nehay,

Liútznê-liútzne, ambê tawê rherôy...

Nawêmbe nyheráy tawaystorê,

Niháy, Awá tiâmsterôy..."


Arauá, de seu esconderijo viu-o subir na pedra e iluminado pela fogueira, primeiro gritar, e depois começar a cantar.

Arauá, o místico primitivo, já não era mais tão domo de seus sentimentos e emoções.

Com o coração cheio de tristeza, percebeu até onde ia a dor daquele homem branco.

E quando seus ouvidos atônitos ouviram o canto pensou: __"o Canto da Morte de Neheretáy! Ele tomou enfim sua decisão, como Nehay! Ele pensa que está cantando para outra pessoa, mas canta para ele mesmo! Entoa o seu próprio Canto da Morte!"

Arauá saiu das sombras e encaminhou-se para a beira do lago. Sabia que o homem não o veria. Sabia que além das águas agora escuras que corriam na sua frente, unindo-se após terem sido divididas pela pedra, ele não veria nada! Seu desejo era unir-se à pessoa que se fora, era saltar da pedra da fatalidade que os dividira!

Arauá sentou-se na areia, de pernas cruzadas, a uma dezena de metros de distância do homem que cantava. Percebeu todas as cores, das várias forças e entidades que lutavam entre si, ao redor do homem branco. Viu nitidamente, as cores da vida, e as cores da morte. Sentiu como o homem estava alheio à batalha à sua volta, enquanto cantava. Arauá sentiu então melancolicamente, que se tivesse encontrado antes e em outras circunstâncias aquele homem, teriam sido grandes amigos. Era alguém com quem aprender. Alguém a quem ensinar...

Mas, agora era tarde demais! No turbilhão de forças espirituais que lutavam agora sobre sua cabeça do homem branco, Arauá notou que uma se destacava das outras. Usando suas próprias forças interiores, conseguiu ver com os olhos da mente, um rosto de uma mulher. Tinha a pele muito clara, os cabelos como Arauá nunca vira, eram como os raios do sol, e os olhos tinham a cor das folhas da mata!

Arauá quase perdeu o domínio de si mesmo!

Aquele rosto estava transfigurado pelo desespero, e tentava comunicar-se com Arauá!

Mas Arauá não conseguia compreender as palavras na língua estranha em que a mulher tentava lhe falar! Então entendeu! Ela pedia-lhe que impedisse o homem branco de fazer o que ia fazer!

Os olhos de Arauá escorreram torrentes de lágrimas! Suas mãos e todo seu corpo se tornaram trêmulos, mas ele não podia fazer isso. Teria sido muito fácil, com uma de suas flechas arrancar a arma da mão do homem branco, ou então concentrando parte de sua força mental, fazer o homem escorregar e cair na pedra, ou ainda imobilizar a mão que segurava a arma.

Mas, não! Não podia fazer isso! Não podia interferir dessa forma com o "ká", destino daquele homem. Pois se o fizesse, se tornaria responsável por tudo que o acontecesse àquele homem branco, de bom ou de mal, teria que se transformar em seu guardião para sempre! Não, não podia!

Então, o homem nu que cantava sobre a pedra, levantou o braço, encostou o cano da pistola na fronte direita e apertou o gatilho!

Um esguicho de sangue subiu de sua cabeça, e o corpo tombou de bruços sobre as águas que se uniam depois da pedra. Imediatamente, as forças e entidades que estavam ao seu redor desaparecera

O corpo foi boiando lentamente, rio abaixo...

Arauá ficou na mesma posição a noite toda.

Quando o sol despertou, levantou-se e sem tocar em nada do acampamento, foi-se embora, à procura de suas plantas medicinais, pois para isso é que tinha vindo até ali. Por entre as árvores, o vento brincava com as coisas e passando por baixo de uma rede, folheou um livro caído no chão, imobilizando-o numa página que dizia:

Verde que te quiero verde,

Verdes ramas, verdes vientos.

El barco sobre la mar

Y el caballo en la montaña!...







Autor Lenine de Carvalho
www.loboazul.hpg.com.br
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