Nem bem Mário e Marlene haviam chegado ao apartamento, receberam a notícia de que Isabel fora atacada e morta por bandidos, em pleno dia, dentro de casa. Não tiveram piedade de sua gravidez e a perfuraram com mais de vinte estocadas. Os velhos foram poupados. Baltazar não estava e, quando chegou, providenciou para que todos recebessem proteção policial. Telefonou para o médico, sem demonstrar desespero.
— Homem de Deus, quem poderia ter feito isso?
— Estavam preparados para executar minha infeliz esposa. Vieram com esse fito, como se desejassem extirpar um cancro.
— Que é que a polícia tem feito?
— O corpo foi levado para o IML. Interrogaram meus pais. Querem que eu vá depor na Delegacia. Já avisei o advogado. Os assassinos não roubaram nada nem fingiram que era assalto. Estavam de cara limpa. Três negros e dois brancos. Tanta gente para um ato da mais pura covardia. Tenho minhas desconfianças, mas não pretendo falar por telefone. Estou querendo dizer que o Doutor também deve estar correndo perigo. Lá no Centro Espírita, os protetores não deram nenhum aviso do que estava para acontecer.
— Como estás recebendo essa tragédia?
— Tenho fé em que os espíritos de luz a receberam em seu infortúnio. A ela é à criança. Peço que o Doutor ligue para mim, amanhã cedo. Talvez eu tenha outras notícias.
— Não seria melhor que eu fosse até aí?
— Não. Eu dou conta de tudo. Dinheiro não me falta. E os vizinhos já contaram que viram os homens entrando e saindo. Se a polícia me perguntar a respeito das propriedades, não tenho como explicar...
— Deixa nas mãos do advogado. E não levantes suspeita alguma contra o pessoal do Rio. Não tens como comprovar nada. Diz a eles que sumiram algumas jóias e um pouco de dinheiro. Seus pais poderão comprovar?
— Os coitados ficaram trancados no banheiro. Não viram nada. Mas a casa não foi revirada...
— Tudo bem. Eles agiram como se conhecessem o lugar em que as coisas estavam guardadas.
— O Doutor não precisa se preocupar. Eu vou me virar e vou escapar, com a proteção dos orixás. Mas, aqui em São Paulo, eu não fico mais.
— Amanhã eu ligo. Hoje eu vou tomar algumas providências.
— Toma muito cuidado, Doutor, pelo amor de Deus!
— Fica tranqüilo!
Marlene estava desesperada. Não entendera por que Mário não quisera ficar no restaurante. Era melhor dar ao traficante a idéia de que estavam confiando na palavra dele. Agora não podia imaginar que fora Leandro quem mandara executar a coitada.
— Tenho certeza de que não foi ele. — Mário ainda estava sob as impressões das palavras do bandido. — Não iria gastar tanto dinheiro com ela nem iria me pedir para levar os recados, determinando que ficasse com o filho.
— E os que deram a outra parte do dinheiro?
— Eu acho que esses muito menos. Nem sabemos de quem se trata. A minha maior suspeita é de que não queriam que Leandro ficasse à mercê de quem o conhecesse tão bem. E isso nos põe em perigo.
— Estás querendo dizer que Leandro se mostrou, para levar...
— Exatamente. Fez que me tornasse comprometido perante a organização criminosa a que serve. Não quis executar-me, mas deu motivo para que os mais poderosos o fizessem.
— Mas estavas me fazendo crer em que ele havia sido sincero...
— Quem é capaz de penetrar nessas mentes frias dos criminosos? Eu é que não vou ficar aqui para ver. Pega as crianças e a Joana e vamos imediatamente para o Aeroporto. Lá a gente decide para onde vai.
— Não estás querendo...
— Estou querendo pôr minha família a salvo.
Mário não formulava os pensamentos de maneira lógica. À medida que ia falando, um calafrio ia percorrendo-lhe a espinha. Era o medo que ia infiltrando-se-lhe na alma. Começava a ver os riscos de se manter inerme, dentro de casa. Soavam-lhe na mente as ameaças contra a família, e o conhecimento demonstrado pelo assassino de como localizar toda a parentela. De repente, veio-lhe uma inspiração.
Tirou da carteira o cartão de Leandro. Ligou para o restaurante.
— Quero falar com o dono. É o Doutor Mário, com quem ele teve um encontro na hora do almoço.
— Um momento.
A espera foi de mais de cinco minutos. Enquanto aguardava, Mário ia pondo em ordem os pensamentos. Marlene estava suspensa na atitude desabrida dele. Imaginava vagamente que a intenção do marido fosse avaliar a reação do ex-amante de Isabel, para saber se tinha conhecimento do ocorrido em São Paulo.
— Pronto!
— Quem fala?
— Aquele que mandaste chamar.
— Leandro?
— Sim.
— Sabes o que aconteceu a Isabel?
— Desembucha logo.
— Foi assassinada com mais de vinte perfurações. Não podias deixá-la quieta, conforme havias prometido?
Leandro fora apanhado de surpresa. Mas não perdeu o sangue-frio:
— Doutor, ouça bem o que te vou dizer. Chama a polícia e diz ao Delegado que recebeste outra ameaça de seqüestro. Pede a ele proteção agora mesmo. Eu vou mandar homens meus para te prestarem a guarda necessária do lado de fora. Enquanto isso, tranca a porta e não ponhas o nariz para fora, nem te aproximes das janelas.
— Estava me preparando para ir embora.
— Bobagem! Faz como estou te dizendo.
Assim que Leandro desligou, Mário avisou a polícia. Em menos de meia hora, o próprio Delegado, o mesmo que o atendera das outras vezes, comparecia com duas viaturas. Ouviu atentamente a história inventada pelo médico e se dispôs a ficar as próximas horas de “campana”, ele mesmo, pois lhe haviam mexido com os brios.
Marlene e Mário se recolheram com os filhos ao dormitório do casal. Joana ficou na cozinha, preparando café com bolinhos para os investigadores, que ninguém é de ferro e a espera prometia ser longa.
Na rua, a movimentação do domingo não era intensa. Bandos de jovens passavam em suas motocicletas e automóveis. Crianças corriam sobre patins nas calçadas. As viaturas policiais punham mais confiança na população. Até os guardas da segurança do diversos prédios mostravam a cara, ousando postar-se nos portões. Dois carrinhos de vendedores ambulantes ofereciam sorvetes e “hot-dogs”.
Assim que desligou, Leandro também discou de novo. Do Carmo atendeu:
— Quero conversar com teu avô. É urgente!
— Vai ser difícil, que o velho está recolhido ao escritório, em reunião com meu pai. Quando é assim, ele não admite interrupção. Nem seria conveniente, porque eles devem estar combinando para acertarem o casamento.
— Eu só queria perguntar uma coisa a respeito da sociedade que lhe propus. Preciso de uma informação para passar para o advogado. Ele não tem outro telefone? Um celular?
— Se é tão importante, eu te passo o número. Mas não estranhes se for ríspido.
— Eu me entendo com ele.
Cinco minutos depois, Gouveia atendia.
— Sou eu, Leandro. Quero te pedir para poupar o médico. Sei que mandaste eliminar Isabel. O que está feito está feito. Mas o médico é quem irá cuidar de meu filho, agora que não tem mãe.
Gouveia sentiu na voz do subalterno a firmeza de quem conhece o caminho onde pisa. Não haveria de desmenti-lo.
— Que garantias me dás de que ele não irá atraiçoar-nos?
— Respondo com minha própria vida.
— Não quero o que me pertence. Quero a certeza de que ele irá permanecer na dele.
— O trabalho de cuidar dos nossos ele vem fazendo há mais de quinze anos. Pode ser considerado da família. Subiu o morro mais de duzentas vezes e nunca deu bandeira. A tua atitude de manchar de sangue o nosso relacionamento vai ter de ser contornada.
— Tu vais cuidar disso?
— Sem dúvida.
— Como soubeste o que ocorreu em São Paulo?
— Foi através do médico mesmo. Agora ele está cercado pela polícia.
— E ligou...
— Ligou antes. Fui eu que recomendei essa atitude. O que queria era ir embora. Desejo que viva, pois preciso muito dele. Vai ser bom até para a família, porque meu filho vai ser educado para ocupar um posto sob o meu comando. Mas isso é pro futuro.
— Não sabia que te preocupavas tanto com ele.
— Depois que o visitei no hospital...
— Fica tranqüilo! Vou desmontar o aparelho do médico. Ele está a salvo.
— E eu estou profundamente agradecido.
No etéreo, Dráusio e Alfredo assistiam a turma da benemerência espiritual do Centro Espírita, na recepção e conforto de Isabel e do filho.