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Erotico-->39. MUXOXOS E SORRISOS -- 10/10/2002 - 07:29 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Dizer que Marlene se frustrara com a intenção de Mário de estudar Espiritismo é desconsiderar o temor intrínseco de sua alma de perdê-lo pela eternidade. Educada segundo os padrões católicos mais tradicionais, só se deixou enlevar pelo amor do médico, porque concordara ele em efetuar todos os cursos ministrados pela Igreja, para receber o sacramento do matrimônio. Convencera-se de que alcançaria convertê-lo à fé católica, mesmo que no último instante do desprendimento material. Acreditava piamente nos óleos sagrados da extrema-unção e no poder do arrependimento final.

Enquanto a curiosidade o levava à Umbanda, julgava ela que a grosseria dos cultos afros seriam suficiente razão para afastá-lo do batuque infernal. Via no materialismo do marido a resistência às pressões dos cultos exteriores, como muitas vezes se manifestara em relação aos sagrados ministérios evangélicos da Igreja. Entretanto, os livros trazidos do Centro Espírita constituíam, segundo seu ponto de vista, perigo real, como se imantados estivessem de poderes sobrenaturais extraídos das labaredas infernais e filtrados melifluamente para a tentação sutil do homem civilizado. Não era assim que os sacerdotes falavam sobre as tentativas demoníacas, inclusive em relação ao Cristo Nosso Senhor?

Aquele repelão à noite, no leito, indicava que haveriam de se desentender muito seriamente, como nunca antes na vida.

Entrementes, Mário deu de ombros, confiante em que o amor que os unia, superada a fase apaixonada dos primeiros tempos, iria consolidar-se na estima aos filhos, na defesa intransigente do lar, para o qual vivia com renovado apego, depois das peripécias do rapto das crianças e do perigo constante dos desmandos do banditismo organizado, ao qual prestara serviços, considerando-se refém moral pela aquiescência tácita que seu procedimento profissional caracterizara.



— Doutor Mário, precisamos conversar.

O tom da voz de Marlene e a provocação do título puseram-no alerta para o desenvolvimento do diálogo.

— Que queres dizer com esse “doutor”?

— A tua atitude religiosa está a me desafiar a crença em Deus, na legitimidade da Santa Madre Igreja, como herdeira inconteste da palavra do Cristo...

— “Pedro, tu és pedra e sobre ti erguerei a minha igreja!” Conheço o texto e respeito a tua fé. Não te acompanho à missa todos os domingos e dias santos de guarda? Não sou eu quem comenta os sermões fundamentados na leitura dos Evangelhos?

— Estou com muito medo de que te percas, iludido pelas falácias desses livros expurgados pela Igreja. Essa leitura é perniciosa. É imoral. Fere os preceitos estabelecidos pela verdadeira religião. Não te lembras do que disse o sacerdote a respeito de quem quer conversar com os mortos? Isso foi proibido por Deus, conforme está escrito na Bíblia.

— E quem disse que eu pretendo conversar com os mortos?

— Não é isso o que se faz nesses antros de perversão?

— Como vou saber, se nunca fui a sessão nenhuma. O que sei é o que vi nos terreiros. E devo dizer que me despertou a curiosidade, pois ouvi algumas coisas que me pareceram muito sensatas.

— Tu vais queimar nas chamas do Inferno.

— Vou, não, que não pretendo desafiar...

— Só o fato de ler esses livros já está mostrando que teu desafio é grande.

— Marlene, querida. Vamos supor que pegues uma página solta, por engano, e que a leias. Será que isso será pecado a confessar para o padre? O que não está no coração ou na alma, o que não tiver provocado convicção não poderá representar razão para umas feriazinhas no Purgatório.

— Não brinques com coisa séria!

— Eu acho que estás levando tudo a ferro e fogo. Será que Deus é tão pequeno que não sabe o que se passa no íntimo das criaturas? O julgamento, segundo Jesus, não deve ser feito pelos homens, mas sim pelo Criador. Concordas comigo?

Mário jogava com os conceitos administrados do púlpito pelos sacerdotes. Falava para criar o clima da necessidade da compreensão da existência como resultado de um ato de vontade superior, que era como supunha que Marlene via a vida material. E não julgava que ela lhe estivesse falando totalmente interessada em vê-lo abandonar as leituras que iniciava. Era mais provável que desejasse ouvir dele a afirmação de que não iria deixar-se envolver pela malícia dos argumentos espíritas.

Por seu turno, Marlene resolveu pôr fim ao debate:

— Depois não digas que não te avisei. Ainda vou ver você ajoelhado, contando os teus pecados no confessionário, tremendo de medo...

— Tu estás é rogando praga...

Os dois se haviam aproximado e o calor de seus corpos arrefeceu a frieza dos ânimos.

— Não me deixes, doutorzinho, por favor!

— Só se tiver perdido o juízo, querida amiga.



Mário não tinha muito tempo para dedicar às leituras. De qualquer modo, ia avançando nos temas filosóficos de “O Livro dos Espíritos”, empregando a inteligência para a compreensão das informações como provindas do etéreo. Não desejava estabelecer como princípio o fato de poder ter havido interferência dos encarnados. Queria acreditar piamente em que os textos foram fornecidos pelas entidades arroladas por Kardec como espíritos de muita luz. Mas sentia que os dizeres sofriam graves restrições pela constante lembrança de que os homens não teriam capacidade de assimilar os conhecimentos superiores, de sorte que via em tudo algo muito adequado para o entendimento das pessoas. Sem ser pensador poderoso, compreendia que haveria espíritos encarnados de categoria superior, aptos a interpretar os registros mediúnicos, de forma a se estenderem para além do que fora fornecido ao Codificador. Pensava nos nomes mais dignos da Filosofia e da Teologia e as reações que poderiam ter, à vista dos textos que ia lendo bem devagar.

Pela perspectiva histórica, julgava que, se tais respostas voltassem a ser oferecidas aos mortais, receberiam, com certeza, tratamento bem diferente. Lembrava-se da grande quantidade de obras da biblioteca do Centro Espírita e da conversa que tivera com o jovem Antônio e punha sob suspeita sua própria maneira de ler. Mas não desanimava, como, afoitamente, pressupusera. Ao contrário, interessava-se cada vez mais, de modo que a concentração muitas vezes o surpreendia imerso nos pensamentos oriundos das proposições inéditas para sua bagagem cultural.

Passou pelas seis obras, enquanto exercia os quefazeres profissionais, cada vez mais atento às pessoas como seres espirituais implantados na carne. Indagava das reações como reflexos das personalidades morais e não mais como mera resultante das conjunturas sociais e físicas. No entanto, esmerava-se por acertar os diagnósticos, no intuito de superar as dificuldades corporais, para permitir aos espíritos que cumprissem sua destinação terrena, intuindo, desde logo, que o prolongamento da estadia na Terra só poderia fornecer aos seres humanos mais e mais condições de avaliação da própria natureza psíquica.

Levava o mesmo tipo de preocupação para os contatos familiares, substituindo o conceito de felicidade dos filhos para o de responsabilidade cármica recíproca, de modo que cada qual integrava um time que deveria progredir junto. Recordava-se dos desencontros das pessoas. Punha Leandro e Isabel no palco da vida e fazia deles o exemplo mais típico do relacionamento entre velhos inimigos, cuja oportunidade de reconciliação estava a perder-se definitivamente, nos descaminhos de um e nas conquistas da outra.

Sonhava, então, com mundo de paz e de progresso. Era aí que se surpreendia entediado com a realidade do sofrimento, com a qual topava diuturnamente, mercê das atividades socorristas junto aos estropiados, aos assaltados, aos feridos, aos acidentados, às vítimas, enfim, da injustiça e do descaso dos homens.

Quando tinha tempo, deixava de lado o livro e se punha a refletir sobre o papel das religiões e dos sacerdotes. Via Marlene de véu a comungar, compungida, como se estivesse de verdade a receber o corpo de Jesus, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, o Filho de Deus, ele mesmo Deus e Criador. E depois a sentia em seus braços, fremente de desejos carnais, impedida de procriar mas abandonada ao prazer. Hesitava um pouco no encaminhamento dos pensamentos para o julgamento da mulher, mas, enfim, terminava por achar que o orgasmo deveria ser usufruído ao pé do altar e não sobre o leito. Estariam tais idéias na cabeça dos padres e, principalmente, das freiras? Perguntava e respondia afirmativamente, como se tais pessoas tivessem superior compreensão existencial.

Acordava desses devaneios, afirmando que o Espiritismo, que bebia na fonte, lhe estava dando o controle dos raciocínios, como afirmação de que a fé não poderia ser apenas sentida. Via que Kardec fora encaminhado para a compreensão da vida e da morte, como resultante da aplicação das leis cósmicas. Mas não se sentia seguro das conclusões. Imaginava quais seriam as noções mais recentes enviadas aos terrestres pelo plano espiritual e ansiava por aproximar-se das obras e das palestras dos contemporâneos. Queria saber o quanto de Kardec e do “Espírito de Verdade” ainda sobreviviam no pensamento dos expoentes do movimento espírita.

Enquanto não adquiria coragem para ausentar-se de casa, reservava os “horários nobres” da televisão para conviver com os filhos e a esposa. Brincava e ensinava. Divertia-se com a espontaneidade dos garotos. Inquiria da escola e das professoras. E iam passear nos “shoppings”, programa obrigatório da juventude. Notável foi a alegria esbanjada na festa de casamento de Isabel, mesmo com a presença dos umbandistas e das preces esquisitas que disseram. Na hora da cerimônia do culto espírita, o médico fez questão de levar Marlene e as crianças para longo passeio pela cidade. Poupava-a de algo que poderia incomodá-la.



Marlene notava as transformações mas, obstinadamente, encasquetava que o marido estava passando por séria crise de culpa e que se dedicava aos petizes como se tivesse recebido da consciência a obrigação do resgate dos pecados. Entretanto, não expunha ao companheiro os pensamentos, porque a vida transcorria agradável. Deus ia escrevendo certo por linhas tortas, evidentemente. Mais tarde, os filhos iriam recordar-se com muito afeto desse pai alegre e desprendido, que lhes proporcionava infância rica e absolutamente segura. Aí chorava, coração apertado pela lembrança do seqüestro. Mas não se esquecia de agradecer ao Pai a felicidade presente.

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