Estou ouvindo uma melodia tão suave que meu coração parece boiar sobre águas calmas, deslizar sobre flocos de algodão.
Não sintonizei nenhuma estação de rádio para ouvi-la, nem coloquei um CD no meu som. Não vem da casa vizinha.
Também não há ninguém cantando aqui em casa ou perto daqui.
Não; é só uma melodia que ouço dentro de minha alma.
Transporta-me ela para um tempo tão distante.
Eu entrava por aqueles corredores e a ouvia. Visitava os dormitórios. O grande salão que servia de refeitório, visitava a lavanderia e as outras dependências.
Meus velhinhos queridos... alguns não deixavam o leito. Outros passeavam em suas cadeiras de rodas, alguns caminhavam pelo jardim ou simplesmente ficavam sentados quietinhos em seus cantos.
Um se dependurava em meu braço e íamos conversando, outro enciumado queria o outro braço.
Sentávamo-nos nos bancos e eu os olhava. A pele toda enrugada, o passo incerto. Os olhos tão vivos. Continham dentro deles histórias longas, sofridas. Tanta vivacidade nos olhos e os corpos tão frágeis, tão envelhecidos.
Eu adorava entrar naquele asilo para idosos, que ficava tão pertinho de casa. Naquele tempo eram irmãs de caridade que cuidavam deles. A voz maviosa que eu ouvia quando lá entrava era de irmã Glória.
Posso vê-la à minha frente de novo, posso ouvir a "Ave Maria" inteirinha. O tempo, parece que não passou.
A voz era bela demais e percorria os corredores. Do jardim se ouvia e também do enorme quintal.
Acredito que aquelas melodias eram bálsamos para as feridas dos "meus velhinhos".
O tempo passa depressa. A menina que os visitava tornou-se mulher e mudou-se para outras paragens. Eles se foram, um a um. O asilo hoje abriga outros tantos velhinhos. A última notícia que tive de irmã Glória foi que a irmandade a que ela pertencia deixou de existir e que ela voltou a morar com a mãe em sua terra natal.
Às vezes, quando passo por lá, pois que minha mãe ainda mora na mesma casa de outrora, paro no portão e fico olhando o jardim bem cuidado, a gruta no canto esquerdo, os bancos aonde eu me sentava. Sinto um desejo imenso de entrar, mas alguma coisa me impede.
A menina corajosa quer entrar. A mulher teme este encontro com o passado.
Mas vivo prometendo a mim mesma que uma hora vou entrar e com a mesma naturalidade de outrora conversar com os velhinhos de agora. Ficar amiga deles, sofrer por eles. Alegrá-los com minhas conversas, minhas brincadeiras.
Sei que naquele tempo eu era muito inocente e não me dava conta do sofrimento deles, mas alguma coisa forte dentro de mim me motivava a estar sempre lá, a brincar com eles, a dar carinho. Achava a coisa mais natural do mundo conviver com eles.
Não sabia direito essas coisas de abandono que hoje sei.
Temo me derramar em lágrimas com o sofrimento deles, pois quando ouço uma mãe contar que teve oito, dez filhos, que tanto labutou para criá-los, educá-los e prepará-los para a vida e agora está lá há anos sem receber uma visita de um deles, acho muito doloroso isso.
Os velhinhos tentam justificar o porquê dos filhos não aparecerem, sempre os perdoam e esperam pacientemente que eles venham. Nestas horas sinto vontade de buscar este filho e colocá-lo ali à sua frente.
Creio que é por isso que reluto tanto em entrar naquele asilo agora, mesmo sabendo que agora mais que nunca devo visitá-los.