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Contos-->história de pastéis -- 17/06/2002 - 18:43 (Dante Gatto) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
história de pastéis

Às vezes, são pequenos sabores que a vida oferece que sustentam nossa precária relação com o mundo. Em determinados casos, por paradoxal que possa parecer em princípio, um vício pode ser mais construtivo que mil virtudes, se se for pensar na manutenção da vontade de viver no mundo em que estamos e somos, misturados e confundidos. Não é sem justificativa que o último desejo de um condenado seja, no mais das vezes, um cigarro: o corpo se enganando com a nicotina; o espírito se esvaindo na fumaça. Seria exagero dizer aqui que vivemos por amor aos nossos vícios. No entanto, tenho uma história exemplar deste fenômeno.
M. era belo, jovem, inteligente, íntegro. Não gastava palavras inutilmente, mas sabia sorrir. Sorria com os olhos também, e até o seu silêncio se afigurava um prolongado sorriso de ironia. Era bom ouvi-lo sorrir. Inquirido, não tomava partido. Nele o que em outro seria identificado como alienação se transfigurava em sabedoria. Tinha tiradas lapidares para determinadas circunstâncias que o eximia do combate inútil, substituindo-o por um determinismo esperançoso. A seleção natural, a lei da gravidade, o eterno retorno e por aí afora, tinham lugar na sua argumentação: às vezes prodigiosa e brilhante; sempre de cores tênues e suaves. Nenhuma mácula em sua folha-corrida. Era um líder, querido por todos. Gastávamos, aos sábados, horas inteiras conversando sobre assuntos diversos, depois do futebol que ele praticava, como diziam, com elegância e talento. Aliás, da mesma forma como tratava seus relacionamentos. Fazia esta concessão para si, disse-me, o futebol, somente naquele dia da semana, quando bebia, com uma visível satisfação, sua cerveja e falava do ofício delicado de existir.
Encontrei-o diferente numa manhã de domingo. Voltava eu da feira livre que ficava a poucos quarteirões da minha casa. Além de verduras, legumes, essas coisas para o consumo durante a semana e o almoço de domingo, levava pastéis quentes para as crianças que ainda dormiam. M. bebia e não era sua inocente cerveja. Estava totalmente alterado. Destilou uma ironia coruscante, ao que chamou da minha miserável condição de homem casado. Alguma coisa terrível devia ter acontecido para transtorná-lo tão profundamente. Ele me dispensou sem mais, avisando que os pastéis iam esfriar. “É preciso manter os pastéis quentes”, disse. Mas como seus olhos agora não repetiam as palavras fui ficando.
Fui ficando e ouvi coisas insólitas, um pessimismo schopenhauriano, mas profano e sem controle. Falou-me da natureza das mulher, seus mecanismos de dissimulação… bem é melhor nem repetir. O mundo era-lhe um ambiente insuportável e só a estupidez justificava a existência: “só os idiotas podem ser felizes. Estar vivo era sofrer sem descanso, a não ser que se amenizasse o corpo e a consciência com o torpor do álcool. O resto eram pastéis frios.” E bebia…
Deixei-o, por fim, só, com sua pujante amargura. Nos meses que se seguiram, assisti ao esfacelamento de toda a sua vida. Desfez o noivado, era ríspido com os pais, faltava continuamente no serviço e ficava semanas sem aparecer em casa. Era visto em companhia outras, namoradas ocasionais, conhecidas garotas de programa. Foi afastado das suas funções por negligência e bebedeira e internado numa clínica para tratamento.
Não voltei a vê-lo como dantes era, o brilhante e lúcido M. Fiquei sabendo do seu passamento precoce através do pai inconformado que não conseguia entender o que acontecerá. Confuso, num ar de culpa, ele me contou como tudo começou, numa daquelas alegres manhãs de sábado. Estávamos, novamente, perto da feira livre e, novamente, esfriavam os pastéis que eu levava para as crianças. “M.”, disse-me o pai, “já estava de saída para suas tardes no clube, de futebol e cerveja, quando, quase acidentalmente e sem maiores preocupações, mostrei-lhe uma reportagem em uma revista científica que alertava para os prejuízos que a cerveja causava ao organismo humano, inclusive sua ligação com o câncer. Foi visível o seu transtorno: não fez mais nada durante todo o dia. Nunca mais foi ao clube. Trancou-se no quarto e negou-se a conversar sobre o assunto. Adeus cerveja”.
Você, leitor, não acredita que tenha sido a cerveja a causadora de tudo? Parece-lhe inverossímil tal hipótese? Eu não sei. Voltei, lembro-me, triste e inconformado para casa e acabei por ficar pesaroso quando meu filho preferiu não comer os pastéis frios.

Dante Gatto
Professor da UNEMAT (Universidade do Estado de Mato Grosso).
gattod@terra.com.br


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