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Erotico-->29. GOUVEIA E LEANDRO SE ENTENDEM -- 30/09/2002 - 06:47 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Tornar evidente o conhecimento da identidade do chefe, além de demonstrar interesse pela neta, não foi, no conceito do visado, a melhor coisa que Leandro poderia ter feito. Na tarde em que farejara os sentimentos da mocinha, Gouveia pensava assim:

“Se o fedelho tivesse feito de conta não me ter reconhecido, incorreria em falta perante mim e a organização. Está certo, portanto, que devesse anunciar sua descoberta. Até aí, tudo bem! Mas chegar com tantas intimidades, solicitar o fictício empréstimo, como algo de obrigação do maioral... Isso está além da conta. Deveria ter vindo, modestamente, dizer o pensamento que formulara, oferecendo os seus préstimos, com lealdade e dignidade. Claro que deveria tomar precauções, uma vez que poderia estar errado, ou, então, que me desse ensejo de negar ser quem realmente sou. Do jeito que agiu, me fez sentir acuado, como se o conhecimento lhe pudesse servir para a traição e a chantagem. É justamente assim que estou sentindo a irreverência com que se apresentou. E este bilhete, então. Raia pelo desaforo. Ainda bem que do Carmo o repudiou. E foi muito veemente. Desse lado, não há nada a temer. Mas, e se ela o quisesse como marido? Que poderíamos fazer para protegê-la? Mandar o cara para o inferno, nem pensar, que a menina deve ter seus privilégios. De que adianta acumular tanta fortuna, se o coração das pessoas fica sofrendo? Aí, casava. Ah! Casava, sim! E se não desse certo, zapt! (Mesmo sozinho no escritório, fez o gesto de quem corta a garganta do infeliz adversário.) E se desse certo? Precisava receber serviço sem contato com o principal. (Evitava dar nome à fonte de renda irregular.) Ia gerenciar uma cadeia de restaurantes. Pelo menos, para lavar o dinheiro...”

Gouveia se perdia em elucubrações muito imaginosas. Desde há algum tempo, mais precisamente, quando o filho começou a ocupar o seu lugar na reunião dos três figurões da quadrilha, vinha enternecendo-se por demais. Os setenta e tantos anos cobravam-lhe o preço do estresse da vida dedicada ao crime, onde algumas atitudes começavam a ser vistas como inúteis, outras desprezíveis e outras completamente desumanas. Mas os tiros que deu para poder subir e as falcatruas dentro da própria organização, em seus primórdios, como o assassinato de um dos sócios e o extermínio dos antigos donos do morro, esses não se constituíam em motivo de qualquer preocupação. O que lhe deu pena, coração a confranger-se, foi o sobrinho que ocuparia o lugar de Leandro, que morreu de “overdose”, tragado pela concupiscência e pela licenciosidade, em lupanar de alta categoria, mas incapaz de saber os limites da resistência física. E essas debilidades se refletiam duplamente, quer na demora das decisões de atos que envolvessem seqüestros e eliminação de obstáculos, quer na insidiosa dor de estômago diagnosticada como princípio de... Os médicos disseram gastrite, úlcera, perfuração da parede estomacal, provocada por microrganismos. Receitaram antibióticos. Melhorara, sem dúvida, mas desconfiava de que eram os sedativos que produziam o efeito. A palavra que evitava dizer era câncer.

Levantou-se da poltrona e deu uma volta pelo espaçoso escritório de onde comandava o império dos hipermercados. Tinha medo de voltar a sentir a horrorosa sensação de que não poderia mais usufruir as coisas boas da mesa, já que as da cama obtinha com facilidade...

Voltou para trás da mesa de trabalho. Julgou-se muito inativo. Precisava investigar o que fazia o talzinho.

Discou diretamente o número no celular.

— Está o Silvano?

A senha seria a de sempre:

— Perfeitamente, às suas ordens.

— Às suas ordens, perfeitamente.

Assim o subalterno sabia que falava com um dos superiores. Era Silvano o elemento que Gouveia impusera a Leandro. Elemento de confiança de ambos, servia ao primeiro e atendia ao segundo.

— Silvano, manda um pombo-correio com as cópias em fita ou disquete de tudo que Leandro tem feito nos últimos dois meses.

— Tudo quer dizer “englobadamente”?

— Isso mesmo.

O “englobadamente” significava que o espião deveria trazer pessoalmente o arquivo e mais as informações pessoais de seu trabalho particular.

Ao contrário de todos os outros da faixa em que atuava, só Silvano tinha acesso direto aos chefes, a quem respeitava por injunção de que toda a família estava em contato com a quadrilha, ou melhor, com as mãos armadas da organização. A norma era admitir, nos círculos mais elevados, só dois ou três subalternos que fossem suscetíveis de se atemorizarem com o poderio do tráfico. Houve um que pretendeu divorciar-se. No mesmo dia em que entrou com a petição no Tribunal, desapareceu de circulação.



Como resultado da longa conversa entre os dois, após ter ouvido as gravações telefônicas e se inteirado da existência de Orivaldo, Isabel e Mário, Gouveia ficou mais tranqüilo em relação ao dono do restaurante. Havia uma porta de saída da situação em que se metera. Refletiu sobre os elementos em mãos da amante e do médico e julgou que não ofereceriam perigo a ninguém. Aguardaria que Leandro aparecesse para confirmar o “empréstimo”. Fez mais ainda. Pensou em convidá-lo para as reuniões da família, no final de semana. Aproximava-se o período natalino e as mulheres faziam questão de realizar jantares, após os quais a jogatina corria solta (com o nome de “Bingo Beneficente”). Ali, do Carmo iria pôr fim na pretendida aproximação sentimental.

Ao sair, Silvano levava a incumbência de relatar, dia a dia, o que viesse a ocorrer com a família do médico, Isabel e Leandro. Foi assim que Gouveia se apossou das informações relativas à reunião no morro e dos cem mil passados para Isabel.



Leandro passou mal a quarta-feira seguinte à conversa com Mário. As queimaduras deveriam ter merecido repouso. No entanto, a ida ao morro molestou os tecidos, causando mais febre. Providenciou, pela manhã, o envio dos cem mil e teve de se recolher pelo restante do dia. Só na quinta-feira, pôde aparecer no escritório de Gouveia.

Foi recebido com cortesia, como se estivessem ainda proseando na reunião da Associação Comercial.

— Com que, então, meu fiel escudeiro foi capaz de abaixar a viseira de meu elmo?!...

— Para verificar que estou servindo a um cavaleiro de nobre estirpe.

Leandro não tinha grandes tiradas, mas não perdia a linha dos raciocínios dos interlocutores. Faltava-lhe, evidentemente, cultura. E isso não passou despercebido ao chefe.

— Que pretende com sua entrada no campo da construção civil ou da hotelaria?

— Dar um banho nos recursos, para um iate, uma casa mais apresentável, sei lá, um duplex, uma fazenda em Goiás...

— Gosto de quem tem ambições. E sou totalmente honesto com aqueles que dizem as coisas que pensam. Quero ouvir o que tens a dizer a respeito de teu filho Orivaldo.

Pego de surpresa, Leandro não poderia falsear nenhuma informação. As fisionomias dos subalternos lhe passaram pela mente e, de pronto, reconheceu Silvano como o informante.

— É uma criança de seis para sete anos, que está internada...

— Ora, vamos. Quero que me digas tudo, desde o recolhimento de Isabel da zona até o que pretendes fazer para impedir que o Doutor Mário o acuse perante a Justiça.

Leandro olhou para os lados, como se se sentisse rodeado pelos asseclas de Gouveia. As dores das queimaduras desapareceram. Mais tarde iriam voltar com muito maior intensidade. Não pôde fugir às explicações. Sempre que tentava demonstrar que os negócios iam bem, o patrão o devolvia à rota batida das providências em relação à pauta da conversação. Foram hora e meia de sufoco indescritível.

Ao terminar a narrativa, estava encharcado de suor.

Gouveia o pôs mais tranqüilo:

— Muito bem. Estou satisfeito. Pelos relatos de Silvano, tudo está de acordo. Acho que fizeste bem em enviar o dinheiro. E não deves alimentar ilusão quanto ao teu filho. Quando ficar bom, é deixar que vá com a mãe. Que pensas disso?

— Penso que ela não teve contemplação com a criança. Eu fui ver o pequeno várias vezes. Parecia um cadáver. Parecia que tinha chegado dos campos de concentração. Pior ainda: de Biafra...

— Mas, agora, está bem?

— Os médicos me dizem...

— Diretamente?

— Me expressei mal. Pelos informantes do hospital, dizem que vai recuperar-se até da leucemia.

— E você quer levá-lo para casa...

— Minha intenção é mantê-lo com alguém capaz de educá-lo até os dez ou doze. Enquanto isso, eu vou mostrando quem é o pai dele. Mais tarde, poderá, se corresponder, ser alguém importante sob meu comando. Mas lá...

— Já entendi. Plano muito ambicioso, para quem está sendo convidado para as festividades de fim de ano, na minha casa, na companhia de minha neta. À vista disso, não seria bem melhor deixar que aquela pessoa que irá cuidar de teu filho seja a própria mãe?

A pergunta era por demais direta para receber resposta impertinente. Um fácil “vou refletir sobre isso” cairia muito mal. Leandro resolveu abrir o jogo:

— As coisas podem parecer simples, às vezes. Mas estou bastante magoado, no fundo de meu coração. Nos primeiros tempos em que a mãe levou a criança embora, fiquei como louco. Eu sabia que ela queria voltar para a zona. Mas não podia dar essa vida ao menino.

— Vamos deixar de “nholas”! O teu plano não parece tão necessitado de vendetas. Mas eu respeito esse sentimento. Eu sei o que é perder alguém muito querido. Por muito menos... Bem, vamos ao que interessa. Deixa Isabel em paz, por enquanto. Quando Orivaldo...

— Leandro.

— ...quando Leandro se recuperar, volta para conversar comigo, antes de bateres com a cabeça contra as paredes da Lei.

Leandro sabia que, se houvesse problemas judiciais, sua identidade ficaria à disposição de Isabel e de Mário. Gouveia, nesse sentido, estava certo.

— Precisa que a Lei seja avisada? Dou um chega-pra-lá...

— Pensa bem na carta do médico.

— Concordo em dar tempo ao tempo, mesmo porque a polícia está às voltas com as orelhas...

— Quem você acha que cometeu essa imprudência?

— Como “imprudência”?...

— Ora, mexer com quem não devia.

— Certo. O médico jura que não foi ele.

— Eu acho que não foi mesmo. Só se estivesse louco, pôr o pai da criança, que ele bem conhece, em polvorosa. Em suma, vou mandar investigar.

— O meus informantes não adiantaram nada.

— Deixa comigo.



Quando saiu do escritório, Leandro estava com as pernas bambas. Atribuía aos medicamentos fortes que tinha tomado, mas suspeitava, lá no íntimo, que Gouveia o havia posto a nu, sem perspectiva de reflexão. A cabeça zunia. Deixou o carro no estacionamento e voltou de táxi para casa. Não estava em condições de dirigir.

Veio o médico e constatou que o infeliz estava com a pressão baixa. As emoções tinham sido muito intensas. Não se lembrava de nunca ter passado por tão grande aperto. Fugira da polícia, atirando. Matara diversos a sangue frio. Enfrentara a fuzilaria do exército e escapara por milagre do cerco. Mas isso fazia muito tempo. Há quatro anos, não sabia o que era puxar um gatilho pra valer. Amodorrara a vida. Aburguesara-se. As funções burocráticas da organização o haviam amolecido. Teve receio de tomar os remédios da receita. Não sabia que efeitos poderiam ter ao reagirem com a droga que ingerira ao chegar em casa. Estava em estado de depressão, sem condições de ver as coisas claramente. Desmaiou. Só veio a acordar à noitinha, totalmente zonzo. Não conseguia visualizar a figura de Isabel nem de Mário nem de Silvano nem de Leandrinho. Só o velho Gouveia aparecia à sua frente, armado e trêmulo. Delirava.

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