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Contos-->Morrer ou Não Morrer? Eis a Questão -- 07/06/2002 - 21:06 (Paulo de Goes Andrade) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

MORRER OU NÃO MORRER, EIS A QUESTÃO

Paulo de Góes Andrade


O fogo cruzado entre policiais e traficantes iluminava o céu da favela. Policiais civis e militares perseguiram, desde a Avenida Brasil, um carro suspeito de transportar cocaína e maconha. O destino das drogas, dizia denúncia anônima, era o Morro do Alemão, que fechou portas e janelas diante de balas que ricocheteavam em postes, pedras e paredes. Renatinho, egresso da Frei Caneca, chefiava a boca-de-fumo dali, substituindo seu irmão Antoninho Dureza, assassinado, meses atrás, por um comparsa.
Era outra “operação de risco” para Capanema, Divino e Castilho, experientes policiais civis, novamente no meio da guerra contra o crime. O carro dos traficantes, uma pick-up Chevrolet escura, com os faróis apagados, embrenhou-se pelas vielas da entrada do Morro, sumindo na escuridão, sob a proteção de tiros de AR-15 e outras armas sofisticadas de darem inveja. Policiais, com armas engatilhadas, se distribuíam pelas ladeiras e esquinas irregulares. Os faróis das viaturas ajudavam a iluminar as ruelas desertas. Rajadas de metralhadoras a todo instante partiam de pontos mais altos na direção dos patrulheiros, que se defendiam e revidavam com outras rajadas.
O dia já despertava por trás dos morros do Rio, pintando um cenário de nuvens douradas pelos primeiros raios do sol. Reinou estranha tranqüilidade nas primeiras horas da manhã. Alguns corpos, ainda quentes, jaziam em pontos estratégicos. O rabecão, acionado pelo comando da PM, já entrava na favela para recolher cadáveres. Divino e Castilho voltaram a se encontrar.
Os dois exclamaram quase ao mesmo tempo:
- E Capanema...!?
- Não vi!
- Também não!
Numa ruela, a poucos metros, com a sua pistola ainda engatilhada, encontraram Capanema, que não mais vivia. O seu colete à prova de balas não o livrou do disparo que lhe penetrou o crânio, deformando, em parte, a sua fisionomia.
- DESGRAÇADOS!!! O grito de ódio de Divino ecoou pelos barrancos do morro. E completou: “É mais um agente da Lei condenado à morte pelo “tribunal” da marginalidade!”
No cemitério, no Caju, a capela, onde velavam o corpo do companheiro, estava repleta. Colegas, amigos e conhecidos da família se comprimiam no pequeno recinto. E, para completar, algumas coroas num canto exalavam um cheiro irritante, característico de flores silvestres. Nosso amigo, em vida, nunca recebeu uma pétala sequer. E agora esse exagero de rosas aí... Divino resmungou no ouvido de Castilho. A viúva, feita em lágrimas, recebia, a todo instante, abraços de condolências. Eram palavras e mais palavras de pesares que se misturavam aos zunzunzuns de dor e revolta pelo assassinato do policial. Todo mundo advogava a favor do extinto. Se bandidos abateu, só Deus podia julgar. Cumpriu com o seu dever. Ouvia-se. Algumas senhoras dedilhavam contas de rosários.
O calor humano, somado aos dois enormes castiçais queimando velas ao lado do esquife, fazia o ambiente insuportável. É preferível o necrotério a isto aqui. Lá, pelo menos, é quase tudo gelado. Divino dizia para si mesmo. Quando morresse, já estava decidido, não queria aquilo. A mulher guardava um papel assinado, com firma reconhecida em Cartório, autorizando a sua cremação. Não quero choro nem vela, quero uma fita amarela gravada com o nome dela, lembrava Noel Rosa, pilheriando. Detestava enterro.
- Essas capelas já deviam ter ar refrigerado. Para enterrar um defunto não está barato mesmo! A gente, que ainda não morreu, devia ter um certo conforto dentro desses cubículos. Concorda comigo? Positivo! Respondeu Castilho, que aceitou o convite de Divino para fumar lá fora, no pátio anexo à capela, onde estacionaram a viatura da Polícia.
...Hoje foi ele; amanhã pode ser eu, você ou qualquer outro companheiro. Desabafou. É... Isso mesmo. Essa luta não tem fim mesmo. Completou Castilho.
Trabalhavam juntos há mais de um ano no mesmo distrito, em Madureira. Capanema era campeão de tiro. Era um tira perfeito. Nisso e noutras atitudes. Feriu muitos bandidos, mas nunca matou um desgraçado desses, que, num segundo, liquida um homem de bem, um dedicado pai de família. Ninguém atirava melhor do que ele, recordava Divino, que ficou em segundo lugar, quando prestaram exames para ingressar na Polícia Civil. Capanema se destacou. Foi o primeiro naquele exame. Castilho foi de outra turma. Nos entreveros com marginais, usava a mesma tática de Capanema. Foi aprovado mesmo assim, evitando atingir os pontos mortais dos seus contendores, até nos alvos de treinamento.
- Um dia, esses sacanas te acertam também. Por isso é que o nosso companheiro foi embora... Garanto que ele teria ficado e o maldito ido pros quintos dos infernos, se não tivesse usado essa tua filosofia... e dele também.
- Dá não, companheiro! Comentava Divino, cheio de revolta. Entre morrer ou não morrer, prefiro não morrer, porque morreu, acabou-se. Vira pó. Essa história de outro mundo, de céu, de inferno, de purgatório, isso é conversa de vigário.
Castilho, de poucas palavras, contestava inutilmente. Nada alterava o materialismo do colega.
- Vá lá que exista outra vida depois da morte. Tudo bem. Faz de conta que eu acredito. Agora me explica o que é que a gente vai fazer lá? Insistia Divino.
Jogou no chão a ponta de cigarro que fumava. Apertando os lábios, esmagou a guimba* com o pé direito. E acendeu o terceiro cigarro. Não ofereceu ao colega. Castilho condenava o tabagismo. Há muito desistira de aconselhar o companheiro a deixar o vício.
- Lá, você vai ter sono, pra dormir à vontade, depois de um dia de cão como a gente sempre experimenta? Interrogava Divino com expressivo deboche na face.
- Não. Respondia Castilho balançando a cabeça dum lado para o outro.
- Você vai ter sede, pra tomar aquelas “geladinhas” depois do trabalho?
- Não.
- Vai ter fome, para pegar uma bela feijoada aos sábados?
- Não.
- Vai ter pernas pra gingar num pagode ou num sambão no Carnaval?
- Não.
- E, melhor do que tudo isso, vai ter tesão pra rolar na cama a noite inteira com uma morena gostosa, que te encha os olhos?
- Isso, então, de jeito nenhum, Divino!
- Pô! E o que diabo é que eu vou fazer lá? Sem essa, Castilho...
- Nem um cigarrinho, como este aqui... oh!... para dar umas baforadas como esta. Olha! E a fumaça saía-lhe da boca em rodinhas dançando no ar...
A hora do enterro era chegada. A saída do padre da capela, acompanhado por alguém, dirigindo-se para o seu automóvel, revelou. A encomendação do corpo tinha sido providenciada. As exéquias do policial resumiram-se num curto sermão do sacerdote.
- Para que serve isso, hein Castilho? Pra mim isso não representa nada.
- Não sei aonde você quer chegar, me fazendo essas perguntas.
O materialismo de Divino aborrecia Castilho, que nunca foi católico praticante, mas respeitava e admitia os dogmas da religião.
- Um dia tu vais morrer e vais ver o que vai te acontecer do lado de lá. Espera!
Com meio-sorriso, completou:
- Nosso Capanema deve estar num bom lugar. Nunca matou ninguém... Quis dar uma alfinetada no amigo, que “em legítima defesa”, como achava, já liquidara alguns marginais.
- Ah... entendi! Quer dizer que eu vou direto pros quintos dos infernos?
- Isso eu não sei. Mas que a gente não fica impune tirando a vida de um semelhante, não fica não, prezado. Podes crer! Mesmo que seja um bandido! Se fosse somente um, pelo menos, “em legítima defesa”, talvez Deus nos perdoasse. Mas...
- Mas... o quê, Castilho?
- Nada, Divino. Esquece! Vamos cortar este papo!?
- Tudo bem. Mas, escuta só isto: você sabe que eu não tenho nenhum remorso, arrependimento, ou coisa que o valha, de ter mandado pro Inferno, se é que existe mesmo, uma meia dúzia, ou sei lá quantos marginais?
- Se não acertamos esses criminosos, meu querido, eles acertam a gente. O resultado está aí. Acabaram com o nosso colega. É melhor morrer ou não morrer?
- Eis a questão, meu caro...! Finalizou Castilho com a polidez que o caracterizava.
O esquife seguiu para o sepultamento em grande cortejo.
Muita balas de armas automáticas explodiram no ar.


(*) guimba – ponta de cigarro queimada.

Brasília (DF) – 05 / 02 / 2002

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