O desespero de Marlene despertou a fúria do marido. Pensou em vender a casa e mudar-se para outro bairro ou outra cidade. Não seria a melhor solução. Desejou contatar Leandro, para lhe revelar o quanto sabia a respeito de sua identidade social. Não era muito, apesar de contar com Isabel, que o reconheceria em qualquer ambiente. Imaginou ir ao hospital e fazer algum tipo de ameaça ao menino, algo que repercutisse pela imprensa.
O temor, entretanto, devastava-lhe o coração. Não conjeturava qual seria a reação do perverso.
“É ele quem sabe utilizar as armas. É ele quem possui o dinheiro. É ele quem tem asseclas prontos para qualquer coisa. Se, ao menos, nos permitisse liberar Isabel, para seguir o caminho dela... É isso que nos está amarrando uns aos outros. Na verdade, ele é quem é meu maior devedor, porque devolver-me os filhos era só obrigação.”
Imaginou que haveria bandidos rivais interessados em dominar a região, mas não viu como levar-lhes informação que já não soubessem.
Ocorreu-lhe que a briga na Justiça pela tutela de Orivaldo poderia trazer o pai ao tribunal. Aí, saberia a cara que tem. Mas, e se procedessem por procuração? Nesse campo, precisaria apoiar-se em causídico. Era carta para manter encoberta, por enquanto.
“Se soubesse quem são os chefões do tráfico, poderia fazer reclamação em regra, pois motivos pessoais de subalterno estão pondo em risco a segurança dos negócios.”
Lembrava-se da conversa com Isabel a respeito da juventude de Leandro. Pelos cálculos de ambos, a pôr fé na palavra do bandido para a amante, teria por volta de vinte e seis a vinte e oito anos, muito verde, portanto, para o comando da organização. Mário conhecia a história de muitas quadrilhas chefiadas por criminosos as quais, uma vez mortos, prosseguiam operando normalmente, como se a chefia passasse de mão em mão. Ou, então, os eliminados eram só testas-de-ferro, quando os verdadeiros manda-chuvas se escondiam no anonimato. Não era sem importância o fato de o malandro sempre estar devidamente oculto na escuridão, atrás de capuz indevassável. “Vai a mando dos poderosos.”
De manhã, tinha arquitetado um plano.
— Marlene, vou aproveitar a folga para umas providências que nos livrarão do facínora.
— Vejas lá o que vais aprontar! Por mim, não levo mais as crianças à escola, até a idade do primário. Vê se consegues mais um guarda com o Delegado.
— Que guarda? Aquele cara lá fora deve estar mancomunado com o bando, senão, como é que não percebeu a espreita dos outros?
— Não tem importância. Liga pro Delegado e esclarece que recebemos ameaças.
— Não vai adiantar, mas farei isso mesmo. Nesse tempo, pega o jornal de ontem e procura apartamento bem longe daqui. Vamos sair do raio de ação de Leandro.
— Não temos dinheiro...
— Vamos ter quando vendermos a casa. Podemos até fazer na base de troca.
— Com esta vizinhança, não vamos conseguir muito.
— Que leve a breca! Esta agonia, eu não posso mais suportar.
— Vou procurar. Se achar, o que é que faço?
— Liga e pergunta as condições. O que interessar, toma nota. Amanhã, a gente pode ir atrás.
Ia dizendo: “Queira Deus...”, mas sufocou a exclamação a tempo. Não estava no hospital. Se tivesse dito, porém, Marlene nem teria condições de comentar. Passara noite de cão, sonhando com orelhas e braços arrancados. Um pavor, como no dia em que fora buscar Mário no pronto-socorro.
Dez minutos depois da ligação, encostava à porta da casa uma viatura. O próprio Delegado veio observar a situação no local, para a definição do melhor posicionamento do investigador. Achou que a presença do vendedor de cachorros-quentes trazia mais movimento para a praça, favorecendo o disfarce da polícia. Viu a mendiga com as crianças e foi conversar com ela. Queria saber se vira algo de estranho nos últimos dias.
— Vi, sim. Ficaram dois homens perto do muro, do outro lado da rua. Iam e vinham. Fiquei com medo que eram os donos do ponto.
O Delegado desconfiou de que eram os investigadores.
— Estavas aqui ontem, à noite?
— Deus me livre! É muito perigoso. Às seis me mando, porque o meu marido quer comer. Ainda tenho de comprar os mantimentos...
— Está muito bem! Se vires algo suspeito, avisa os da viatura. ‘Tá legal?
— Pode deixar.
O Delegado passou-lhe uns trocados, tendo ficado muito contente com o preço da “olheira”.
— Caro Doutor Mário, eu não acredito que os meliantes irão tentar mais nada. O pessoal da casa é de confiança?
— Plenamente.
— Então, diz pra todos que tomem cuidado na rua e que nunca saiam sozinhos. Quando forem entrar, vai um até o portão e o outro fica a distância, lá na outra esquina. Se os bandidos chegarem junto, o que está fora dá o toque pra polícia. Está certo assim?
Mário julgou ingênua a propositura, mas refletiu que havia lógica no procedimento, concordando com tudo. Especialmente, ficou contente com a viatura naquele local, a qual, conforme palavra do policial, havia sido deslocada de um posto de gasolina. A vida das crianças era mais importante que uns trocados dos bolsos dos frentistas. Onde se viu? O posto tem até cofre de segurança eletrônica...
Despachada a visita oficial, tranqüilizada a esposa, dispôs-se o médico a escrever tudo quanto tinha ocorrido desde que Orivaldo fora internado. Não se esmerou nos dizeres nem pretendeu fazer libelo contra o crime organizado. Era depoimento contra o pai da criança, seu envolvimento com o tráfico no Andaraí de Cima e seu poderio junto aos seqüestradores. Revelava quem era Isabel, qual o papel de Raimunda e não se esquecia do Doutor Darci, sempre um passo à frente no conhecimento dos fatos.
Levou o dia todo a elaborar o relatório. Mas o tempo gasto na escrituração se economizou na impressão de duzentas cópias, pelo micro, onde brincava com os filhos, nas horas vagas. Até o prazer dos “games” havia perdido nos últimos meses.
Tarde da noite, adentrava o hospital, fazendo alarde de que o serviço estava sobrecarregando o banco de sangue. Queria doadores. Na verdade, precisava testar o esquema, a ver se estava montado e funcionando. Às duas da madrugada, várias pessoas sonolentas se apresentaram para a doação. Diziam-se parentes e amigos dos internados. Como o que é de graça não ofende, contavam com a indiferença dos funcionários.
Alfredo e Dráusio eram contrários ao expediente, mas não alcançaram suster a mão do médico. O remédio era orar com muito fervor, para que os resultados do plano não fossem desastrosos.
Na quarta-feira, estampavam as manchetes: “Três orelhas debaixo do travesseiro.” “Negra apavorada com três orelhas.” “Três orelhas sangrentas põem doutor de orelha em pé.”
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