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Contos-->Cidades e Mulheres -- 30/05/2002 - 14:36 (Dante Gatto) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
CIDADES E MULHERES


Era sempre a mesma coisa. Ele começava a falar das cidades e descambava falando das mulheres que passaram pela sua vida. “Cada cidade tem sua mulher correspondente”, me dizia. Não havia como interpor-lhe uma réplica. Por que desdize-lo? As histórias tinham sabor, deleite. “Havia a mulher perfeita que emanava as mesmas vibrações da cidade numa fluidez cósmica”. Eu nunca entendi muito bem isto. Parece loucura, não é? A gente tem de ir se acostumando com a idéia. Aliás, eu já experimentei as cores dos sentimentos. Lembro-me bem quando era criança e me aninhava solitário, abatido por alguma tristeza e com os olhos fechados era invadido por cores cambiantes. Quer saber, a tristeza é azul. Minha tristeza era azul, vários tons que se sucediam, se mesclavam, fugiam. Lembro-me: havia dias que eu podia… beijar o cheiro áspero das flores. Não estou exagerando. Não é loucura não. Rilke chegou a dançar o gosto da fruta provada.
“A cidade vai te entrando na alma”, ele me dizia, “uma poderosa e particularíssima combinação de efeitos, do ruído das ruas, do barulho das construções, prantos, gritos, imprecações… O vagido da fome e o tilintar do ouro se confundindo. E o cheiro do mato, pisado, que nasceu na reentrância da calçada, o brilho do fogo-fátuo…” Neste momento ele emergia num estado de transe e deslizava para um lirismo alucinado: “a cidade vai te entrando na alma e você não é mais você. Você está nela. Sonolência e êxtase te dominam. É quando te chega esta mulher, momento máximo que a cidade oferece”.
“Há cidades homens”, uma vez ele me contou, “mas são raras. Barra do Bugres parecia uma cidade homem. Era mulher, por fim. Jovem, de uma sexualidade indistinta. Olhando bem que a gente via as formas. No seu olhar um convite intenso. Ela abre as pernas, ao sentar-se, de uma maneira que em outra seria indecente. Você tem medo de tocar, apesar do convite. E fica olhando. Você gostaria de olhá-la mais de longe. Ela atende sem trocar palavra. Moleca. Diaba. E quando volta, parecendo cansada, com música na voz, aproxima-se mais. Você tem medo. O amor, às vezes, prescinde a proximidade e requisita espera. Ela repete o ritual numa dança mística e hipnótica e se aproxima mais, e mais, e mais… e quando vai embora você não consegue conjuminar que rumo tomou. Torpor, estupor, trauma, decúbito… Resta sonhar os signos do regresso, mas ela não voltará mais. É curioso que ela não volta enquanto você espera. Um dia, você a encontra por acidente numa rua qualquer e não há convite no seu olhar, sua voz e insipidamente adulta e, contraditoriamente, você a ama de uma maneira absurda. Um dia, quando você pensa já tê-la esquecido, ela aparece, com sua voz de criança e com sua dança mística. Não há o que fazer. Não há o que dizer”.
Ele então suspirava profundamente.
Nas primeiras vezes, eu cheguei a perguntar-lhe o que tudo isto tinha quer ver com a cidade. Ele me olhava com desdém, nestas ocasiões, e não falava nada. Ficava olhando para um ponto indefinido como se houvesse mais alguém escutando-lhe o insólito relato. Alguém que o compreendesse. Uma vez disse, dando de ombros: “as coisas são como são”.
Aliás, é bom que eu diga: isto não é ficção. É crônica. Aconteceu. Procuro reconstituir com o máximo de fidelidade possível.
A mulher correspondente a Tangará da Serra, não era tão jovem. Ele não gostava de ser inquirido a contar alguma coisa, me disse, quando eu lhe encomendei esta história. (Bem, pra mim é uma criança, linda e tímida e não cabe colocá-la na esfera das relações amorosas). “Pra tudo existe o momento oportuno”, dizia. “Cidades novas podem corresponder a mulheres vividas e vice-versa”. Afinal, ele se abriu: “Tangará da Serra foi chegando com seus sons, cheiros e fantasmas. Não foi rápido não. De repente você a vê por toda a parte, a ponto de se perguntar se é mais que uma. Esbarra nela no supermercado e sente um amargo prenúncio. O amor não sabe não doer. Ela é de uma timidez estranha, daquela que te cumprimenta com o olhar e passa apressada. É bom vê-la caminhar e tomar distância. Tudo parece respirar no seu ritmo. Uma vez, me pus tão absorto que fiquei alquebrado ao horizonte em que ela desapareceu. O que me acordou do êxtase foi uma brisa destas que estremece: era ela, vinda da direção oposta, desafiando o tempo, o espaço. São assim essas mulheres. Um dia você a pega num flerte. Ela não disfarça, mas continua infensa a toda gentileza. Você não se lembra de ter-lhe dado o endereço e eis que ela aparece à tua porta. Os móveis parecem conhecê-la, as paredes denunciam sua presença, aproximando-se como moldura. As coisas ficam vivas, adquirem cor, o ar tem cor para acentuar seus olhos cristalinos. O que se há de dizer. O que se há de fazer.”
Nestas circunstâncias, não adiante que ele não conta os detalhes e se irrita como se a imagem criada dissesse tudo. “É tudo o que importa”, dizia.
“Um dia, você a encontra num restaurante e tem um impulso de abraçá-la e beijá-la, mas ela está acompanhada de um sólido burguês, de botas de couro e braços cabeludos. A aura em torno dela é a mesma, mas você já não pode penetrá-la. O sentimento é indescritível… uma mágoa pesada e seca. Pesada e seca. Mas você não consegue não amá-la, não consegue culpá-la, nem esquecê-la. Ela voltará no ritmo da cidade.”
Eu fico pensando coisas do tipo cidade-adúltera (coisa horrível, não é?), fazendo relação entre a mulher e a cidade, mas não digo nada, porque sei que ele vai abominar a idéia é dirá coisas enigmáticas e vagas. Também não gosto desta idéia. Fico imaginando o que ele pensa: não se culpe a mulher, é a cidade. Não se culpe a cidade, são as incríveis contradições humanas. Toda a ordem racional dos valores humanos perdem sentido. Ora, as coisas são como são. Lembro-me que ele disse: “Tudo aquilo que necessita de explicação não vale a pena”.
Ele foi de mudança para Cáceres.

Dante Gatto
Professor da UNEMAT, Tangará da Serra
gattod@terra.com.br

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