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Artigos-->Há esquinas das quais a gente não gosta de se lembrar -- 10/11/2001 - 16:35 (José Pedro Antunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
CARTAS DOS PAQUISTÃO (21): Ulrich Ladurner prossegue com sua série para o DIE ZEIT online, de Hamburgo. Leia, neste site: "Islamabad-Blues", "O amor em tempos de guerra", "A guerrilha dos dólares do Paquistão", "A chave (ou: Para se compreender o Paquistão)" e "DEUS NEON (ou: como depois de uma revolução)".



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Há esquinas das quais a gente não gosta de se lembrar. Khiban Sir Saeed é uma delas. Mas nela vive e trabalha Rubina, e isso já empresta às coisas um ar diferente



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Por Ulrich Ladurner

Trad.: zé Pedro antunes

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Não consigo esquecer Rubina. É claro que era bonita, mas não apenas por isso. Foi o caminho que me levou até ela. Khiban Sir Saeed, uma parte da cidade de Rawalpindi, deixou Rubina gravada em minha memória.



De carro, atravessei Khiban Sir Saeed e vi cabanas de barro cobertas de palha. Delas, evolava uma fumaça grossa, e fumaça também se elevava dos montes de lixo que ardiam em várias esquinas. Por isso mesmo, o ar pesava feito chumbo sobre Khiban Sir Saeed, mais a fumaça expelida pelos carros e caminhões, pelos ônibus, que incessantemente trovejam por toda a extensão da rua. Tiras de plástico sobrevoavam a terra nua entre as cabanas, pendiam de arbustos crestados pelo sol, viajavam no vento da manhã, prosseguiam até a próxima touceira de grama, até a próxima colina – fosse um colorido bando pássaros artificiais. Cabras estropiadas pastavam entre as cabanas. Roçavam a terra enlameada com seus beiços. Pessoas carregavam bilhas com água ou sacos, e arrastavam cubos. Entravam nas cabanas e delas tornavam a sair. Por toda a parte, a azáfama diária. À margem da rua, em meio à poeira, alguns homens sentados. Diante deles, uma pá e um balde, encostados um no outro. Ferramentas de trabalho. Esperavam por alguém que lhes oferecesse serviço por algumas horas, dias talvez. Os homens eram todos afegãos, como a maior parte dos moradores da Khiban Sir Saeed; fugitivos que chegaram há apenas alguns meses, e alguns outros que já andam por aqui há bem vinte anos em busca de algum futuro. Quem poderia sabê-lo assim com tanta exatidão? Khiban Sir Saeed é um lugar de desenraizados.



A poucos metros de distância desses trabalhadores de aluguel, um cachorro caído sobre o asfalto. O sangue a lhe escorrer do focinho. O corpo a estremecer. A pele, reluzentemente escura à luz do sol. Fora atropelado por um caminhão que estava sendo descarregado. O dono do cachorro, ali ao lado, gritava para o motorista. Este não fazia senão permanecer distante, olhar cabisbaixo. Estarrecido, contemplava o sangue a escorrer pela sarjeta. Jovens curiosos iam de passagem e, atentos, observavam a lenta agonia do animal. Os trabalhadores de aluguel não lhe concediam o favor de uma atenção.



Desci do carro à frente de um edifício amplo, de vários andares. Crianças mendigas me rodearam: "Five Rupees! Please! Five Rupees!" De um salto, alcancei os primeiro degraus e cheguei à porta da entrada. O cenário, sombrio. Bem no fundo, onde as escadas conduziam aos andares superiores, alguém estava trabalhando. Ouviam-se marteladas abafadas. Segui em frente.

Pouco antes de ter acesso à escada, à minha esquerda, divisei uma abertura, uma espécie de beco no interior do prédio. Pela janela, que ficava no telhado, uma nesga de luz penetrava no recinto. Partículas de poeira turbilhonavam nessa réstia de sol. No chão, vários homens sentados. Profundamente inclinados sobre pequenas bigornas, eles martelavam. Ao redor deles, espalhados, sapatos de todos os tamanhos, de todas as cores. Era como se os homens tivessem sido empurrados para fora daquela massa de sapatos, como se estivessem sitiados. Notaram a minha presença e, todos ao mesmo tempo, me dirigiram seus olhares. Jovens fisionomias muito gastas. As mãos, pretas e ensebadas. Fazia silêncio agora. Abafado, só o ruído da rua chegava até nós. Como dava para se perceber, esperavam que eu dissesse alguma coisa. – “Afegãos?” – “Afegãos!” Faziam que sim, com a cabeça.



Ergui a mão para saúda-los. Responderam ao meu aceno. Subi a escada em direção ao primeiro andar. Ali ficava a escola na qual Rubina lecionava.



Também aqui imperava um clima sombrio. A força elétrica tinha acabado, mas o chão de pedra estava reluzente, não conseguindo alcança-lo a poeira da rua. E nenhum barulho também. Só as crianças se debatiam e escorregavam inquietas de um lado a outro de seus bancos. Estavam agitadas por causa da visita estrangeira. Rubina estava à porta de sua classe. Um gesto foi o convite para que eu entrasse. As crianças se puseram de pé. As garotas, vestido azul e véu branco na cabeça; os meninos, camisa branca e calça azul. Tinham idades variadas; havia grandes e pequenos, fisionomias sérias e divertidas, claros e escuros. Todos afegãos. Crianças que vieram ao mundo no Paquistão, ali do lado de fora, na suja Khiban Sir Saeed.



Rubina recostou-se à parede. Mantinha os braços cruzados. A cabeça recoberta por um véu muito fino e escuro. Uma banda mantinha os cabelos em ordem. Na orelha esquerda, cintilava um brinco de ouro com mínimas pérolas incrustradas. Era lisa a sua pele verde-oliva. Tinha dezessete anos. Ensinava inglês às crianças. “Como o senhor pode ver”, apontava para as alunas, “as meninas querem aprender alguma coisa. Querem ter uma educação!” Estava radiante. Podia-se ver o ar tremeluzir ao redor de sua cabeça. - “Onde aprendeu inglês, Rubina?” – “Aqui no Paquistão. Eu nasci no Paquistão!” - “Nunca viu o teu país?” “Não, nenhuma das crianças por aqui conhece o Afeganistão. Mas somos afegãos!”

Rubina sorria. Aspirou profundamente, para em seguida, de um só fôlego, dizer: “Aprendi inglês e computação, mas ainda quero aprender muitas coisas. Quero aprender tudo. Tudo!” Foram as palavras que irromperam de sua boca, como um desejo interior há muito acalentado. Tudo nela era vibração. Muito de leve apenas, mas dava para senti-lo.



As aulas haviam terminado. As crianças desciam as escadas cantarolando e gritando. Eu, no meio delas, rodeado e admirado como um raro exemplar da espécie humana. Rubina veio atrás de mim, por alguns metros. Fora, bramia a Khiban Sir Saeed. As crianças se separavam correndo em todas as direções. Em grupos pequenos, iam desaparecendo por entre os casebres. Saltavam por sobre a terra calcinada. Os uniformes escolares reluziam à luz do meio-dia.



Despedi-me de Rubina. Ela ajeitou o seu véu e desceu à rua. Passando pelos trabalhadores de aluguel, por suas pás e baldes, pelos montes de lixo incandescentes, pelas cabanas, pelas cabras, pelo infeliz cão preto. Nesse meio tempo, por certo já estaria sem vida.





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