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Contos-->42. O ETERNO REGRESSO -- 15/05/2002 - 04:36 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Aristides, quando encarnava, desejava retornar logo ao campo da espiritualidade. Não passava dos dez anos de vida adulta, ou seja, ao completar trinta ou trinta e cinco anos, dava um jeito de projetar-se de volta, a maior parte das vezes por sua própria conta e risco.

Aqui chegando, ia sofrer a desdita de permanecer no catre infecto e imundo do báratro e lá permanecia por certo tempo, até que, precípite, se arrependia do que havia produzido de errado no plano carnal e lá vinha solicitar o regresso ao mundo dos mortais.

Aristides era um eterno descontente. Nada estava bem. Um dia, finalmente, um bom amigo dos infelizes, ao procurá-lo para avaliar-lhe as condições perispirituais para retorno à Terra, aconselhou-o a não perder a última oportunidade que lhe seria dada dentro do milênio. O nosso herói preocupou-se de fato pois, ao dizer-lhe aquilo, o espírito socorrista lhe ensejou regalia única: o desfilar diante dos olhos das últimas vinte e duas encarnações desastradas.

Eis que Aristides regressa à carne após séria deliberação a respeito de sua permanência junto aos mortais. Não queria perder essa última oportunidade e arriscava-se em vida inteiramente imprevisível: era oficial da marinha mercante, mas tinha como missão fundar e manter extensa família. A profissão fora sugestão do guia, porque o tédio da postura como chefe de família poderia fazê-lo cansar, exaurindo-lhe a possibilidade de enfrentar os desassossegos de quem se sente pressionado pelas circunstâncias. Como marujo, espaireceria a mente, de modo a não propiciar-lhe a possibilidade da falta de novidade. Aristides, conscientemente, só aspirava a singrar os mares, conhecer outras paragens, enfrentar novas aventuras e escapar às garras da manemolência que a nostalgia do outro plano poderia imprimir-lhe ao desejo.

Após vinte e dois anos de navegação, quando era extensa a sua prole — doze filhos, sendo que o mais velho mal atingira a idade de dezoito anos —, seu navio naufragou às costas de pequena ilha desconhecida, tendo logrado apenas ele chegar vivo à praia, na companhia de inúmeros cadáveres que para lá foram arremessados. Seu primeiro cuidado foi verificar se haveria qualquer indígena ou colono para ajudarem-no com o sepultamento. Não encontrando ninguém, dispôs os corpos em cova rasa e assinalou o local com cruz. O esforço de atender a esse primeiro serviço deixou-o exaurido, mas Aristides se entusiasmou com a possibilidade de repetir o Robinson Crusoe, de Defoe. Não se comoveu com o trespasse de tantas pessoas, embora se tenha lembrado de orar-lhes pelas almas. Educado na religião católica, a única pessoa que o comoveu ao enterrar foi o jovem capelão que dava assistência a todos naquela viagem de longo curso.

Mas Aristides se empolgou com o novo trabalho e iniciou a vida ali sob o lema de que um dia chegaria ao término de seu destino.

Vinte longos anos se passaram do momento do desastre àquele da salvação. Durante esse tempo, tantas foram as tribulações do coitado que não teve sossego um único instante. Se, ao menos, lesse algo, poderíamos acreditar que pudesse voltar a ter os achaques costumeiros. No entanto, o isolamento obrigou-o a preocupar-se tanto com a sobrevivência que qualquer tendência espiritual inata acabou por ficar inteiramente obscurecida. Salvou-o o trabalho.

Conquanto se mantivesse só no plano físico, foi intensa a assistência no plano espiritual. Lembrava-se dos filhos, da dedicada esposa e agradecia-lhes a atenção de terem tal provação ao admitirem por pai e companheiro alguém que, sabidamente, poderia desertar do serviço. Tudo isto, contudo, se passava nas longas horas do mais pesado sono, pois, em vigília, Aristides só conseguia divisar na consciência a imperativa vontade de resistir. A dura vida no mar fizera dele, finalmente, um lutador, de modo que, quando foi resgatado por perdido navio que se desviara, inadvertido, da rota, se encontrava absolutamente em paz com o plano espiritual.

Eis Aristides de volta ao lar. Velho e alquebrado, portava consigo a debilidade daqueles que se esforçam fisicamente além da capacidade. Em condições normais, sua sobrevida não se daria para além de dois ou três anos junto à civilização, mas Aristides podia contar com assistência especial, já que era intuito dos instrutores fazerem-no, definitivamente, cumprir longa existência de resgate de tantas caminhadas indiferentes. Assim, pôde perceber o que ocorria com os amigos e irmãos, enquanto ligava e desligava os liames carnais: cresciam em experiência, acumulando recursos para o progresso que a todos aguarda.

Ao regressar ao seio da família, encontrou os filhos mais velhos estabelecidos na vida, com vários netos surpresos por terem diante de si vetusta e insuspeita figura de avô. O filho mais novo, que deixara com a idade de um ano, era aluno de certa faculdade de engenharia náutica e alguém que nada lhe dizia. A semelhança física era ponderável, mas intelectualmente, um desconhecido com aspirações de realização em campo similar, o que os aproximou para a realização final da vida de nosso herói.

Quanto à esposa, precisou refazer-se do susto do encontro, velha e acabada, irreconhecível, pois a aparência durante o transcurso da ausência havia recebido os impactos do sofrimento. Pretendentes tivera, como Penélope, mas a todos rejeitara, preferindo amargar a solidão afetiva com a esperança do retorno do marido, apesar de que tivesse a companhia marítima assegurado que o navio desaparecera, após dramático S.O.S. As buscas localizaram destroços e as investigações não apuraram qualquer sobrevivente. A deserção de Aristides fora camuflada pelo plano espiritual para o efeito combinado.

E, assim, podemos dizer que o velho marinheiro atracou em porto seguro para as últimas aventuras. Com o transcorrer do tempo, foi tendo oportunidade de conhecer um a um os filhos e respectivas famílias. Servia-lhe a fiel esposa de cicerone, para essa volta ao derredor das personalidades. É bem verdade que a inteligência e a intuição, de início, estavam absolutamente embotadas para a percepção das reais condições das criaturas, mas o longo afastamento das pessoas teve o condão de torná-lo ansiado pelo reencontro, de modo que punha reparo em aspectos novos no contacto com os indivíduos, que deixaria passar despercebidos se com eles tivesse convivido todo o tempo.

Açodava-se, agora, pois acreditava terem-lhe resumido a convivência a uns poucos anos. Não sabia que iria viver mais trinta longos anos a observar a sociedade de ângulo absolutamente novo: por meio do prisma espírita.

A história dessa conversão não tem nada de miraculoso. Na incerteza da morte dos parceiros, várias mulheres se uniram para consultar os espíritos a respeito do desaparecimento do navio. Impedidos de trazerem notícias precisas, os guias não deram informações que não fossem no campo da possibilidade de futuro reencontro. Algumas se enganaram com as palavras e se deixaram embalar pela falaciosa perspectiva de que iriam ter os maridos de volta tão logo fosse encontrado o navio. Outras, porém, admitiram a hipótese de que o reencontro só seria possível no plano espiritual. Houve quem buscasse socorro em casas mal administradas e, por isso, receberam falsas orientações. A esposa de Aristides, contudo, crente fervorosa de São Jorge, o santo destituído, manteve o culto aceso e jamais deixou de rogar pela sobrevivência do marido, embora todos os indícios fossem de que havia perecido com a tripulação. A alegria provocada pelo milagre da volta precisava ser agradecida sabiamente e nada mais justo do que levar o antigo católico à igreja e depois ao centro que prognosticara o reencontro e incentivara a fé em Deus.

Aberto para o conhecimento das novidades, a doutrina espírita entrou no roteiro da reaprendizagem da vida. O velho homem foi adquirindo confiança nos processos espirituais e, em vigília, conseguia manter-se desperto para todo tipo de influenciação, não fora apaniguado pelo longo período em que se vira afastado das más investidas, anacoreta forçado, onde não haveria glória alguma em sua perdição.

Regressou encarquilhado para o plano espiritual e, pela primeira vez, não foi, desde logo, arremessado às trevas. Precedido da esposa e de vários filhos, recebeu assistência condigna e pôde estabelecer plano de recuperação e de estudos que o levaria a cursos em diversas instituições educacionais. Hoje, sente-se feliz com a condição de irmão em fase de recondução à carne, tendo permanecido tranqüilo e reconhecido durante mais de quarenta anos no plano espiritual. Quem sabe, algum dia, nós cruzemos com ele os caminhos...

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