Ao retornar para casa, Mário estava extremamente preocupado. Não dera atenção à jovem e começava a verificar que poderia tê-la colocado em perigo. Era natural que devesse pensar assim, pois sabia quem era o pai de Orivaldo. Ou, ao menos, conhecia seu poder de fogo. Conversaria com Marlene. Quem sabe lhe sugerisse algo para reparar o erro.
De fato, ao expor a ela a conversa com a pretensa mãe, à qual prestou a esposa total atenção, foi logo advertido:
— Se a moça estava tão tensa, por certo queria a tua ajuda. Deixá-la naquele local vigiado, não poderá fazer as coisas melhorarem. A criança não foi abandonada? Então, o pai deve estar querendo vingança. Não teria sido...
— Que é que eu poderia ter feito? Você não sabe que tem gente atrás de mim? Gente que manda e desmanda no hospital. Até o Darci está com o rabo preso...
Marlene não sabia o que sugerir. Pensava em que a moça deveria ficar protegida.
— Se ela conseguir emprego no hospital, vai cair nas mãos do... marido?
— E eu lá sei! Amante, amásio, concubino... Não tenho idéia.
— Pois, se tivesses conversado melhor com ela, irias saber.
Marlene adivinhava o enredo rocambolesco e queria participar da trama.
— Pois achei imprudente ficar dando ouvido a uma pessoa que pretende a maternidade de uma criança superprotegida pela marginalidade...
— ...que te cabe fazer que sobreviva. Deixando a mãe lá, pode acontecer algo muito ruim para nós. Se ela raptar a criança, quem vai ser o maior responsável?
Mário refletiu que havia perigo também para si.
— Mas que fazer, santo Deus?
O ato de invocar a Deus estava impregnando-se-lhe na mente. Marlene é que não perdoou:
— Agora se lembra de Deus, mas ir à missa que é bom...
— Não vamos desviar o assunto. Se sabes o que fazer, diz logo.
Estava formando-se um plano audacioso na mente da mulher:
— Joana está muito sozinha, desde que Pedro morreu. E está ficando velha demais para tanto serviço. As crianças estão em idade de fazer bagunça. Há espaço lá fora para mais uma pessoa...
— Não estás querendo que... Empregada? Aqui? Aí, sim, que vai ser grande o risco. A família toda vai ficar envolvida.
— Mas teremos controle sobre os movimentos dela. Se está precisando mesmo do emprego...
— Eu acho que foi só desculpa. A roupa e os sapatos eram finos...
— Se for só desculpa, ela se manda e fim! Não custa tentar.
— Agora é tarde. Eu não pedi o endereço. Deve ter ido embora.
— Eu duvido. Eu acho que vais encontrar a moça a tua espera.
— Vamos dizer que sim. Que é que faço?
— Não leves para dentro do hospital.
— Mas eu tenho o que fazer.
— Volta mais cedo. Se ela estiver lá, vem com ela para casa para conversar.
— Você está louca! Isso eu não faço.
— Então, leva para longe de lá e pergunta tudo direitinho. Quem sabe a minha idéia seja aprovada.
Ao divisar Isabel, Mário compreendeu que Marlene poderia estar certa.
— Como é mesmo o teu nome?
— Isabel.
— Vem comigo!
Mário a colocou no carro e acionou o motor. Não tinha para onde ir, mas conversariam no veículo em movimento. Instintivamente, tomou o itinerário de casa.
— Como se chama o teu marido?
— Leandro.
— O que é que ele faz?
— Não sei.
— Como assim?
— Ele nunca foi meu marido. Vivemos quatro anos juntos. Mas ele nunca parava em casa. Eu não sei o que ele faz. Uma vez eu perguntei e ele me mandou calar a boca. Falou que o dinheiro era suficiente...
Isabel lembrava-se muito bem da conversa, quando Leandro a fez calar a boca, falando da zona de meretrício.
— E você, o que fazes?
— Estou desempregada.
— E o que fazias?
— Era doméstica.
— E a patroa não te deu carta de referência?
— Ela não queria me deixar sair. Mas eu tinha de recuperar o meu filho.
— Eu vou ser bem sincero. Não acho que a tua roupa, as tuas unhas, a tua bolsa sejam de empregadinha...
— Eu trabalhava para uma dona muito rica. Mas isso não tem importância. Se o senhor me ajudar, eu arrumo emprego no hospital.
Mário percebeu que Isabel, realmente, não conhecia o risco de ferir o traficante. Marlene tinha razão. Era preciso levar a jovem a perceber o perigo que corria. Deixaria isso por conta dela.
— Quer trabalhar em minha casa?
Isabel foi pega de surpresa. Ficou sem saber o que pensar. De cara, não gostou da idéia. Iria ficar longe do filho. Por outro lado, vislumbrou a possibilidade de acompanhar o tratamento. Para isso, deveria se submeter a trabalho que jamais fizera. Será que o médico não tinha família e estava com idéias? Arriscou uma pergunta, para ver se pescava alguma coisa das intenções:
— Por que essa proposta agora?
— Estamos precisando de mais uma pessoa para ajudar na arrumação das coisas. Minha mulher está se queixando de que a velha empregada não dá conta do serviço. Você faria companhia para ela, que enviuvou faz algum tempo, e ajudarias a cuidar da limpeza, que as crianças estão dando trabalho. Só que terias de morar lá.
— Quando começo?
— Se quiser, eu te levo para minha casa, que está muito tarde. Amanhã, vais buscar as tuas coisas. Com quem moras?
— Moro sozinha, num barraco, na Penha. Tenho poucas coisas. Deixo os móveis lá e aviso os vizinhos para tomarem conta. Vou poder alugar, para tirar mais algum.
Ficaram em silêncio os poucos minutos até a chegada.
Marlene não pareceu surpreendida com os dois. Apenas admirou a beleza plástica da mulata. Mário não a descrevera devidamente. Mordeu os lábios, para não demonstrar o sentimento de intranqüilidade que a dominou. Devia ter desconfiado, quando o marido disse que estava bem vestida. Cheirou logo que Isabel tinha trato com o próprio corpo. Pôs a pulga atrás da orelha.
— Muito prazer. Quer dizer que aceitas vir trabalhar aqui?
Isabel, sem se intimidar pela desenvoltura da mulher, compreendeu desde logo que ela estava a par de seu drama.
— O Doutor Mário foi muito gentil. Eu queria mesmo era o emprego no hospital...
— Vem comigo, querida. Vou te apresentar a Joana.
Nessa hora, Mário já estava dirigindo o carro de volta.