CUNHA PORÃ compõe-se de onze capítulos. Aconselho aos leitores que efetuem a leitura a partir do primeiro, seguindo seqüencialmente a ordem crescente, para que o entendimento do enredo não fique prejudicado.
* * *
CUNHAPORÃ - PARTE IV - QUANDO CHEGA O AMOR
J.B.Xavier
E luas à frente daquela orgia,
Ouviu-se na aldeia, já ao fim do dia
O ruído abafado de um calmo tropel.
E entrou pela taba, pasma, assustada,
Cansado e exausto de tal cavalgada,
Garboso guerreiro e seu belo corcel.
O espanto nos olhos tornou evidente
O susto que havia nos índios valentes,
Enquanto o corcel relinchava cansado.
Olhavam o homem que o controlava.
Seguro de si, o animal comandava.
Jamais tinham visto um índio montado.
“Quem sois? Que quereis?” - disse um, afobado.
“Eu sou Nhuamã , a chuva dos prados.
Procuro abrigo, e por certo o encontrei.”
“O Oyakã não está , pois foram à caça.
Mas ocas não faltam, repousa a carcaça,
Que à noite, ao fogo, vos acordarei.”
E à noite, então os homens sentaram
Em volta do lume e seus casos contaram.
E após todos terem seus casos contado,
Saiu o cacique de onde sentara.
Rompendo a noite com voz forte e clara,
Chamou o estranho que estava ao seu lado.
“Estranho, quem sois?” - bradou Ygarussú.
“Me dizem que vindes dos prados do sul...”
A taba calou em silêncio, agoniada.
“Abrigo vos peço até amanhã .
Sou Chuva dos Prados. Eu sou Nhuamã,
Cansado de luas de extensa jornada...”
“Sois vós Nhuamã , o cacique charrua,
Que monta o Vento nas noites de lua,
Que os prados cultuam, de todos temido?
Sois vós Nhuamã , o leal combatente,
Que a todos ampara, gentil e valente,
Que em guerras ainda jamais foi vencido?”
“Assim o dissestes, Grande Ygarussú !”
“Sois vós de quem falam os cantos do sul
trazendo-me os feitos heróicos e ternos?
E tuas mãos de veludo que afagam a flor,
São as mesmas que tocam os hinos de amor,
E as mesmas capazes de ir aos infernos?”
“Sois vós que hoje vem à minha aldeia,
Que a fama de bravo meu sangue incendeia,
E que afoito já quer partir amanhã ?
Sois vós que aqui vem pedindo-me abrigo?
Sois vós, que, afinal, terei por amigo?”
“Sim, Grande Chefe, eu sou Nhuamã !”
E disse o oyakã, erguendo seus braços:
“Olhai este homem e seus fortes traços,
Do qual sua força não quero aferir.
Olhai para quem a derrota esqueceu,
E que considero agora irmão meu.
Seu canto de guerra queremos ouvir!”
Com gestos seguros, nos ermos da noite,
Com voz trovejante, tal qual um açoite,
Cantou o seu canto o Grande Nhuamã.
Seus olhos, no entanto, do meio da arena,
Pousaram no olhar da suave morena,
Corando as faces de Cunhaporã.
* * *
“Eu venho de longe, de terras distantes.
Dos prados dourados,
Dos campos dobrados,
E tenho por taba os espaços gigantes.
Eu venho de longe, das terras da Lua,
Da grama molhada,
Do Sol, da geada,
E trago o orgulho de ser um charrua.
Lamento os mortos, doentes, feridos,
Nas guerras cruentas,
Batalhas sangrentas,
Mas muito me ufano de ter um amigo.
Não busco a morte, o estertor, a ferida,
Nos campos de guerra.
O que em mim se encerra
É a busca dos risos felizes da vida,
Os arcos trocamos por ávidas danças,
Cantigas e hinos.
E nossos meninos
Crescem felizes, eternas crianças.
Caçamos o potro selvagem nas serras,
Veloz como o vento.
Mas somos a um tempo
Amados na paz e temidos nas guerras.
Nós sempre nos pampas buscamos ficar”
- Falou Nhuamã -
“O próprio Tupã
Nos deu essa terra de belo luar...
Que vento é esse que sopra uivante
Ano após ano?
É o Minuano,
soprando a vida instante a instante.
Guerreiros valentes lutei e venci
Em nome da paz.
Meu corpo ainda traz
Medonhas lembranças que nunca esqueci.
Ali uma flecha, aqui uma lança, ali
O branco atirou.
Nhuamã, eis quem sou!
E apesar dos perigos, encontro-me aqui.
Caçando feliz ou lutando nas guerras
Em mil estertores,
Eu busco os amores
De olhos bonitos, em longínquas terras.
Tupã me guiou por caminhos escuros
Que Jassy iluminou.
E eis que aqui estou
Em meio à floresta de ares tão puros.
Se amo os espaços, que faço na selva
E nela me embrenho?
Tupis! aqui venho
Deixando as mais lindas coxilhas de relva.
Um dia, num lago, surgiu-me Yara
À luz de Jassy.
E então me senti
Possuído de amor nessa noite tão clara...
‘Tua amada te aguarda’ - Yara dissera.
‘Cavalga p’ro norte.
E cuidado com a Morte
Que em flecha ligeira decerto te espera.’
Quem é minha amada. senhora das águas?
Indaguei ansioso.
‘Não sê curioso,
Que junto com o amor te esperam as mágoas.’
Seu nome ao menos não podes dizer?
Insisti desafiante.
‘Ah! os amantes!
Por que tão mais cedo preferem sofrer?’
E o nome eu ouvi dos lábios serenos
Da deusa do lago.
Um nome que trago
Queimando-me a alma qual doces venenos.
Meu braço me ampara, senhora. Observe.”
E a flecha voou
E no alvo pousou.
‘Na selva teu braço de nada te serve.’
‘A selva é escura’ - falou com voz fria -
‘E em certos locais,
Apesar dos demais,
A treva até mesmo a Jassy desafia!
Parte, guerreiro, e cuidado com a súcia
Do grande arvoredo!
Não tema ter medo!
Na selva, guerreiro, o que vale é a astúcia.’
Confie em mim, minha deusa e senhora,
Farei minha sorte
Até mesmo com a morte!”
‘Cavalga, guerreiro, e parte agora!’
E, pois, eis-me aqui na solene aldeia
Dos bravos Tupis.
Os povos mais vis
Venci ! E eis-me aqui junto à vossa candeia.
Lutei nas florestas, calquei sob os pés
Guerreiros valentes,
Comedores de gente,
caigangues, xavantes e os vis aimorés.
Feliz, meu regresso trará mais vitórias
Ao meu amanhã.
Eu sou Nhuamã,
De futuro feliz e passado de glórias!”
FIM DA PARTE IV
* * *
|