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Erotico-->4. O DOUTOR MÁRIO -- 05/09/2002 - 07:45 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Especializado em atendimento de pronto-socorro, o Doutor Mário era espécie de factótum do hospital. Coração boníssimo, com mais de vinte anos de clínica, havia atendido a milhares de pessoas, com os miseráveis honorários oficiais. Atendia, também, em casa, onde tinha bem montado consultório, mas a clientela, embora selecionada, era diminuta. Por isso, não nadava em dinheiro.

Ao se deparar com Orivaldo, teve forte aperto no coração, como se conhecesse a criaturinha. A fisionomia era muito familiar e, se não fosse a inconsciência, iria magoar-se profundamente com os sintomas da dor.

— Mãe! Fica comigo, mãe! — repetia o inocente, delirando.

Até as enfermeiras, acostumadas a toda espécie de tragédia humana, se condoeram do rostinho marcado pelas feridas, do esqueleto saliente no tórax, das pernas só pele e ossos, do arfar opresso do peito, do volume desproporcional do ventre. Um pequenino monstro nosso Orivaldo, mas causava pena aos que entendiam o drama e a programação de terríveis sacrifícios que se seguiriam.

Em outros tempos, quando ingressara no nosocômio como titular, Mário era obrigado a selecionar os pacientes de quem trataria, não tendo condições de atender a todos. Determinou, por diversas vezes, quem iria sobreviver e quem iria morrer. Orivaldo, naqueles tempos, provavelmente estaria entre os últimos. Fazia, por compaixão, a escolha dos mais novos, mas, quando se tratava de chefes de família atropelados, intervinha em seu favor, para que a miséria não arrastasse os demais à prostituição ou ao crime. Com a construção de outras unidades hospitalares e com o cumprimento dos contratos da parte dos governos federal e estadual, era possível dar assistência a quase todos, já que os bandidos e traficantes de drogas eram imediatamente encaminhados para o hospital do Poder Judiciário, assim que livres do perigo iminente de morte.

Quando retirou o chumbo da perna do menino, avaliou o tamanho do projétil, sua imersão nas carnes, sem tocar o osso, e concluiu tratar-se de mero ricochete. O acidente com a arma não causara mais que ligeiro corte, com a expulsão sangüínea em conseqüência do rompimento da veia. O sangue causou a impressão de tragédia. O mais foi avaliação precipitada dos detetives.

Mas o Doutor Mário reconheceu o estado lamentável do pequeno e, apesar de materialista, citou Jesus:

— Só mesmo pelo Cristo irá salvar-se!

Costumava dar graças a Deus, rogar a Nossa Senhora, chamar pelos anjos da guarda ou invocar santos e orixás, para alcançar a simpatia (e a produtividade) das enfermeiras religiosas. Entretanto, a entonação daquele “Cristo” poderia cotejar-se com a das rezas dos sacerdotes durante a missa.

Passou a bala extraída para a segurança do hospital, recomendando que fosse encaminhada diretamente para o Instituto de Perícia, pois temia pelo desaparecimento da peça. Na verdade, o chumbo foi parar nas mãos de uma das atendentes da portaria, que entregou a policial cuja identificação ele mesmo registrou na ficha que deixou assinada.

Quando Mário ficou sabendo desse itinerário, adquiriu a certeza de que o Departamento de Exames Balísticos do Departamento de Investigações não iria receber o material.

— Haverá, um dia — pensava, descrente —, em que as leis serão cumpridas neste Rio de Janeiro?

Preparou-se para ser interrogado por juiz togado, pois percebeu que havia interesse demais em torno dos acontecimentos no morro. Soube da morte dos três policiais e atendeu a outros quatro, feridos por estilhaços da famigerada granada. As notícias veiculadas pelos jornais televisivos e as manchetes dos matutinos confirmariam as suspeitas. O acontecimento iria causar outros desenvolvimentos nas áreas policial e jurídica. Acostumado, contudo, a ser interrogado junto às barras dos tribunais como testemunha da Promotoria ou da Defensoria, não se perturbou com a repercussão do ferimento do pequenino paciente.

Em casa, com a esposa, inteirou-se das ondas de boatos que corriam pela vizinhança, já que morava às fraldas do morro, onde era constantemente assediado por malfeitores, para tratamentos irrecusáveis dentro da clandestinidade. Nunca recebera tostão pelo desempenho profissional nessas condições, mas, tacitamente, nesse toma-lá-dá-cá da marginalidade, estava imune de qualquer ameaça, protegido mesmo pelo pessoal da segurança dos chefes de quadrilha.

Diziam que morrera um dos líderes do tráfico. Que fora o corpo levado para o alto do morro, onde fora incinerado. Não se sabia quem era. O certo é que todos os nomes responderiam à chamada, na próxima reunião, que alguém assumiria a personalidade ausente, para que se confundisse a força policial.

— Você deve ter atendido aos policiais feridos...

— Como sempre.

— Dizem que um garoto foi assassinado na cama, pela polícia.

— Com certeza, não. Está muito mal, mas não por causa do ricochete. Espero que sobreviva, mas não irá contar a história, porque estava desacordado, depauperado, com febre de quarenta graus.

— Será que estamos falando do mesmo?

— Se fossem dois, o povo diria que tinham sido cinco...

— Eu vi na televisão a hora em que a granada explodiu. Ainda bem que não tinha mais ninguém em casa. Foi um alvoroço. Esses noticiários ao vivo deveriam ser censurados... Deus nos livre e guarde de isso acontecer diante de casa. As sirenes não pararam um minuto. Eram carros de polícia, bombeiros, ambulâncias... Acho que vão reproduzir a reportagem, no noticiário da noite.

— Estou muito cansado e amanhã vai ser um longo dia. Não quero ver mais sangue, que hoje a zona estava quente.

Marlene, a esposa, queria novidades. Ligou o aparelho. Haveria mais algum soldado ou investigador pronto para o necrotério? As comadres esperavam sempre confirmar as previsões dramáticas, a partir dos corpos que os rabecões recolhiam. Desta vez, a história era a favor dos narcotraficantes, pois, da parte da polícia, se dera baixa a três, pelo menos. Do lado dos bandidos, só um, mais o menino...

— Com seis anos de idade? Vamos dormir, querida, por favor.

Às três da madrugada, vieram buscá-lo. Havia gente do morro ferida...

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