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Contos-->Satanásia -- 29/04/2002 - 21:20 (Jactâncio Futrica) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Satanásia


Dona Atanásia contava então com 64 anos – alagoana, mulher de fibra, fazendeira, parideira, açodada em seus afazeres domésticos, religiosos e sociais, administradora extremosa, dona de uma determinação do caralho e, de resto, uma autêntica besta-fera pros empregados. Apesar da idade e da adiposidade, tinha ela uma vivacidade incansável, própria das pessoas afobadas.

Hoje, passados 75 anos de sua morte, sua figura permanece presente, como um legado ao folclore local, muito viva no imaginário do povo – às vezes até com atributos sobrenaturais. Naquela região de Alagoas onde viveu, quando se fala em ruindade, seu nome é sempre lembrado. “Fulano é uma Atanásia!”, costumam dizer os matutos destacando a ‘qualidade’ do elemento. Os cordelistas se referem a ela como Dona Diaba, Satanásia, Dona Coisa, Cabrunca de Micunhaém, e mais uma dúzia de alcunhas, quase todas relacionadas com o Cramunhão, o Coisa-Ruim.

Essa maldade fora do comum, que bem cedo lhe roubara o encanto faceiro de femeazinha comível, de outro lado lhe compensara fartamente com uma disposição tremenda para o mando!.. uma obstinação ferrenha em cada pequeno detalhe! A mulher parecia mesmo ter um formigueiro de lava-pés fervendo dentro do cu e um cacho de marimbondos na boca.

Seu marido, o coroné Gurmêncio da Câmara Taboada – tido como homem brabo – desde o dia de seu noivado fora sempre um fantoche da ambição dessa dona. Quando embeiçou-se por aquela moça, enfeitiçado por um lindo par de olhos verdes, nhozinho não sabia a víbora geniosa que estava ali, a manipuladora, a jogadora ousada, falaciosa, mal-intencionada, sabedora de astúcias só imagináveis numa mulher de trezentos anos de idade, ou seja, numa bruxa... Não sei se você já notou, mas as pessoas reconhecidamente pérfidas (daquelas a quem só falta um letreiro na testa), quando bonitas ou ricas ou de forte personalidade, fazem-se facilmente objeto de uma paixão de safadeza masoquista, já que o que não falta é babaca e puxa-saco neste mundo... e há também o fascínio perverso do nojo oculto, da atração pelo horrível – algo psicologicamente correlato ao tesão que temos em espremer espinhas e furúnculos... Pois bem, Dona Atanásia já fora moçoila formosa, com umas ancas bem fornidas e uns olhinhos selvagens que deixaram nhô Gurmêncio caidinho de dendém. Sua pele era de um tal frescor... suas nádegas, duas jacas túmidas e suculentas... Uma rapariga vinda do sertão, como de encomenda, no jeito pra se enfeitar uma cama!.. Só que em pouquíssimo tempo esta beleza azedou, o remelexo endureceu, o xaxado virou queixume, e o xodó, xiquexique. A feiúra interna era tão forte que aflorou pelos poros, e a cada dia a moça parecia mais feia, como que por obra de alguma praga bem rogada.

Mulher rançosa, embolorada de fidalguia, mui orgulhosa de suas origens, Atanásia descendia na verdade de uma antiga linhagem tapuia, de mamelucos sitiantes, paupérrimos, ordenhadores de cabra – todos portadores daquela maluquice religiosa que a seca produz: aquela tristeza tagarela, a devoção maníaca, as ladainhas, as convicções apocalípticas, a mania de penitência, de autoflagelo com chicotinhos cortantes e por aí vai... Quando se casou com um rebento da fina-flor da aristocracia da mandioca e da cana de açúcar, procurou forjar pra si, em sua própria mente, uma ascendência igualmente ilustre. Assim, acabou se convencendo de que seus ancestrais foram autênticos guerreiros... os criadores mitológicos da caatinga e dos cariris – algo do tipo. Seu pai, que alcançou a proeza de sobreviver até os 48 anos (morrendo de velhice), pra ela se transformou no “Senhor dos Espinhais” – seja lá o que isto signifique. Também ela nascera com um parafuso a menos na cabeça, fato identificável à primeira vista no seu zelo obsessivo por miudezas.

As pobres das empregadas tinham que manter todos os cantos da casa tinindo de limpeza e na mais perfeita ordem, já que nada era insignificante demais pra escapar à perscrutação insana da dona diaba. Lavadeiras, passadeiras e costureiras deviam entregar as roupas num apuro não menos que sublime, etéreo. Idem para as prendas ali fabricadas – cestas, redes, utensílios domésticos etc. Nunca se tinha sossego no casarão, pois era impossível saber qual seria o próximo fricote da patroa; qual infalível detalhezinho poria pra ferver aquela explosiva mistura de sangue caburé e lusitano... Caso encontrasse algum cristal levemente embaçado, ou uma toalha de mesa posta meio enviesada, um picumã, uma lanugem esquecida sob uma cama... qualquer coisa assim era motivo pruma interminável reprimenda; a humilhação moral – e não raro, física – aplicada com um requinte anormal.

Ela herdara o dom do improviso, a eloquência misteriosa do sertanejo, manifestada em seus avós na forma de rezadeiras desenfreadas, e nela, numa inspiração incansável pra passar esculachos sem nunca se repetir nem perder o tom. Um “sim senhora” que lhe soasse meio diferente podia ser motivo pruma explosão de cólera. Um riso inocente flagrado numa conversa de cozinha podia ser causa prum castigo descomunal. Risada era sinal de relaxamento ou zombeteria, e calhava que ela tinha uma cisma louca por conta de sua própria figura – feia, desajeitada, fora de prumo... Os empregados, todos negros ou mulatos, não deviam sorrir perto dela em hipótese alguma – isto era tido como uma irreverência insultuosa, inadmissível. Nem mesmo os agregados da família tinham refresco com ela. Era tudo levado a ferro e fogo! Andava-se pisando em ovos ali na sede da fazenda... Satanásia tinha mil olhos e estava em toda parte, prestes a despontar por detrás de qualquer parede com seu sadismo triunfante, sua língua de açoite e sua verve asiática na aplicação de corretivos... Sua severidade estava bem fudamentada na velha tradição escravagista. Naquela região, como em muitas outras, a abolição da escravatura ainda não significava muita coisa. Os negros haviam adquirido a liberdade de se assanhar um pouco mais no samba e na macumba... e olhe lá! O tronco e o pelourinho estavam em plena atividade ali no Engenho do Bacurau. Negro roubou rapadura? Máscara de latão nele! Não quer falar a verdade? Toma-lhe torniquete! Molecote relaxou no mandado? Ajoelha no caroço de milho, e fica quieto, não geme...

Havia uma criada especialíssima que servia como de negra-de-ganho da sinhá; a Tianinha, que era também rendeira. Nos domingos, era posta pra esmolar à porta da igreja; e em dias de festa no vilarejo, vendia o artesanato da fazenda: chapéus, cestas, esteiras, rendas, cachimbos, ‘poções do Amor’, pássaros... Quando não conseguia amealhar a quantia previamente estipulada por Satanásia, preferia prostituir-se a ter que suportar o infalível castigo das urtigas.

Os únicos que não sofriam os desmandos da celerada eram Natércio, o capataz, e o negro Barrigada, seu segundo braço-direiro. Este último era filho dum lendário monarca da senzala, um autêntico Ganga Zumba, que mantinha uma corte paralela com escravos particulares e amásias no seu mocambo, e que, ainda jovem, comprou sua alforria. Um causo à parte!..

Barrigada devia sua alcunha ao hábito de meter seus defuntos no ventre de alguma vaca velha e jogar aos peixes. Empanado pra piaba; sumia tudo. Afora isto, já havia enforcado dois ou três: contam que um era ladrão de cavalo; os outros, só melindre de nego abusado. De fato, ele punha e dispunha sem pedir licença a ninguém. Era mandingueiro perigoso; no rosto, uma inequívoca fisionomia de final-de-razão. Corria ainda uma crendice difusa de que ele teria o dom, a manha diabólica de desaparecer na frente de qualquer um e reaparecer duas léguas adiante... Certa vez, por ciúmes, aplicou uma novena num cortador de cana: atou-o ao cavalete, besuntou-lhe o dorso com melado e o deixou por nove dias à disposição dos insetos... despachando suas necessidades por ali mesmo. Só que a novena foi quebrada já no quarto dia; o sacana não resistiu... Mas, a despeito do terror que inspirava, a criadagem inteira mofava com a cara dele, na surdina: duas décadas atrás, havia tido um frisson amoroso com a patroa – paixão tórrida, escandalosa! A coisa passou, mas o rabo ficou.

#

Um dia, Atanásia flagrou uma das negras sentada em sua cama. Esta se encontrava exausta de tanto lustra-e-esfrega pelo casarão... Deu uma sentadinha, de leve, pra respirar... mas a inquisitorial madame – cujo costume era mover-se silenciosa como uma sombra – faz sua aparição repentina, como que surgida do nada. Eustáquia dá um pulo, temendo a reação da jabiraca diante de tão grave profanação; pousar a bunda na cama da augusta soberana! (Havia presenciado, na mesma semana, a Bebete, outra criada, ter os cabelos literalmente incendiados pela bruaca; só porque mencionara vagamente a idéia de abandonar a fazenda...)

De pé, ao lado da cama, a linda negra Eustáquia treme, medindo as conseqüências. Pois tinha jurado a si mesma passar o zinco na patroa caso esta abusasse novamente nas retaliações... Mas qual não foi sua surpresa vendo a calma da mulher, o sorriso compreensivo e maroto, cheio de cumplicidade... toda derrengada pro seu lado. “Talvez ainda reste um cantinho mole nesse coração.” – pensou Eustáquia, confiante na conversão da demoníaca criatura. Por um momento quase se esqueceu das juras que fizera por ocasião do último incidente: a diaba havia lhe enfeitado com uma peia e uma gargalheira com chocalhos, deixando-a assim por tantos dias quantos foram os copos que ela havia derrubado duma prateleira – onze, exatamente. Os malditos cristais da Cabrunca!

– Não se avexe não, meu chuchu! Se adeite e descanse um pouco; sou eu quem tá mandando. Tu é limpinha; pode se esticar, que eu quero vê tu sestiando aí mesmo... que nem um anjo... na minha cama mais do meu nhô. Tu merece! E, além do mais, dizem que faz bem pegar os ares de mocinha nova... Fortalece!.. Nada como uma nega sacudida, assim como tu, pra encher uma cama de calor, hem? ora se não!

– Mas nhá Tanásia, iô inda tem qui acabá dois quarto e perpará os bejim di côco po jantá...

– Deixa qu’eu mando a Divina ajudá Norberta lá na cozinha. O quarto até que tá ajeitado; amanhã tu arremata...

Ela engoliu direitinho, e em dez minutos já estava ressonando meigamente. Sonhou com o pai velhinho baforando seu cachimbo, sentado no banco de toco à porta do rancho: “Quando o mau fica bão, zi fia, é qui tá pió qui nunca...”

Dona Mofina não suporta a beleza do sorriso da negra – um tanto por inveja, outro tanto porque lhe achaca demais uma espécie de deboche recôndito que enxerga naqueles olhinhos espertos. Mesmo quando a outra lhe sorri humildemente, em reverência a um pedido seu, a neurótica velhota pressente ali uma espécie de deleite insubmisso e folgazão, uma zombadinha faceira, uma impertinência que a deixa perplexa e enraivecida, pois se trata de algo incapturável e, ainda assim, dolorosamente real. É como se a negra caçoasse no fundo: “Olhe bem a minha cara de preocupada, velha bisonha! Repare como eu sou gostosa e dengosa! Sou uma safadinha na cama; capaz de coisas que a senhora nem sonha, urubu cambaio, coisa seca!” – É algo assim que a veneranda Atanásia sente no sorriso da negra.

Eustáquia tem um dom espontâneo de leveza; tira tudo de letra, sem demonstrar fastio, ainda que exausta. E Satanásia exaspera-se por isto... A imposição irada de uma versus a imponência fácil e natural da outra. Sinhá Tazanada sabe que é patética; precisa manter a vigilância! Já Eustáquia não precisa fazer força alguma pra deslizar pela vida da melhor maneira que deus quizer; transpira uma serenidade e uma elegância que perturbam e causam um irresistível sentimento de inferioridade à patroa. Ante as exigências mais absurdas desta, ela costuma sorrir tranqüilamente e, obedecendo, sai gingando cheia de graça; os seios perfeitos dançando sob o vestido, parecendo ter vida própria... vaiando, tripudiando, folgando com a cara da véia.

Enquanto Eustáquia dorme, a megera saltita eletricamente dum lado pro outro, torcendo as mãozinhas de satisfação e ansiedade. É que ela achou a oportunidade ideal pra botar em prática uma armação que já vinha chocando há muito na idéia. Era o momento!.. A severidade carrancuda dá lugar então a um acesso de entusiasmo pueril. Uma senhora de 64 anos, aparentando 85, mostrando-se afogueada como um moleque que acaba de ganhar sua primeira bicicleta.

Pois bem, a armadilha já foi preparada. Satanásia quer porque quer ver a negra vexada; quer extirpar aquele sorriso sabido, e jogá-lo no chão; ela quer ver Eustáquia ‘véia’; quer engessar aquele remelexo... Pra isso, tem que arranjar um jeito de humilhá-la, ridicularizá-la exemplarmente – é o que ela pensa. Tronco, pelourinho, libambo, tudo isso é muito óbvio! Teria de ser algo mais ‘casual’ e espalhafatoso.

Depois da porta da cozinha, que dá pro terreiro, sai em linha reta uma escada estreita duns dois metros de altura, sem corrimão. A armadilha tá ali: uma tábua besuntada com gordura de porco foi colocada sobre os degraus, e ali em baixo, uma pilha de quarenta tachos, panelas e caçarolas – mais pra efeito cênico do que pra machucar (o tombo certamente ficará mais cômico com uma confusão de panelas batendo). Eustáquia deve fazer o papel duma bola de boliche; só tem que passar por ali correndo, sem tempo de recuar frente ao perigo.

– Eustáquia, acorda! Acorda pelo amor de Deus! Me socorre lá com Norberta! Corre lá no terreiro pra ver que desgraça, Santo Cristo do Jurumbeba! Corre, criatura, corre, santo deus, me ajuda! – a velha sem-vergonha gritava esbaforida. Tudo cena, lógico.

Alarmada pela gritaria, Eustáquia veio direto pra cilada, correndo precipitadamente, aflita pra poder ajudar. O escorregão foi feio. Ela rodou meio que em parafuso e desceu com tudo, indo se estatelar na pilha de panelas. Não fosse a prancha de madeira, teria estourado o coco na quina do degrau já na primeira quicada. Muito tonta, ela tenta entender o que tá acontecendo... Meia dúzia de criados, ali reunidos, gargalham de maneira estranha (foram obrigados a isto pela patroa). Ao mesmo tempo em que riem, entreolham-se de olhos arregalados, vendidos pelo estapafúrdio da situação. O pensamento é um só: “Dona Coisa acabou mesmo de ficar louca!”

Na soleira da cozinha, Satanásia – frenética em seu triunfo – fiscaliza a atuação dos atores, tentando reger o concerto de gargalhadas compulsórias. Do alto da escada, ela gesticula possessamente, ameaçando os empregados com o olhar. Por meio de sinais apenas, ela comanda: “Ei você aí, mais força! E você, aumente os agudos! Ei cabeça-seca!.. mais deboche, ponha essa língua pra fora! Ô crioulo sebento, pule e sacuda a cabeça... isto! Você aí, largue o cabo dessa enxada, grite, bata palmas! Segure a barriga, estrebuche, role no chão!..”

Eustáquia percebeu a armação, zonza como estava, sentada ali no chão, e entendeu claramente a gravidade do estado da patroa. Percebeu que Satanásia nesse dia não estava ficando nem mais nem menos louca: na verdade ela sempre fora a mesma. A lua é que sempre muda e, com ela, o tipo de piloura da bruaca... O sentimento de inveja e cobiça predominam num dado período; noutro, pode ser a mania de grandeza; noutro, a ostentação obsessiva é quem tem a vez; depois pode ser a beatice... ou a avareza... a futricagem... a mania de arrumação e limpeza etc... Mas quando a insânia é de revanchismo, aí ela perde a linha, a trela, as estribeiras, o assento, a carroça, o rebolado, o embalo, o cabaço e o fio da meada! Satanazievska passa então a se mostrar abertamente descontrolada, duma hora pra outra – psicotizada e obcecada por pequeninas maquinações dementes... Numa rápida retrospectiva, Eustáquia vislumbrou este caótico padrão de alterações de veneta da Atazanada. Dentre as diversas relações e manifestações possíveis da mesquinhez, o tipo que a acomete em ocasiões como esta é uma birrenta conjunção de ninharias imaginárias: honra pessoal, vingatividade, cisma, inveja, draminhas íntimos, disputas do ego etc – é esta a atual lua da Satanásia. Até ontem, o calculismo fanático; agora, este surto de peraltice mórbida; amanhã, ela pode muito bem acordar feliz e bem disposta, querendo vasculhar a sede da fazenda de cabo a rabo, com uma listinha na mão, pra ver se há algum objeto sumido ou fora de lugar... A única coisa que nunca muda é a malvadeza. Raposa muda de pelo, mas de costume, nunca!

#

Domingo de Ramos de 1920. A família já foi à missa no arraial. Estão todos ensopados do sangue do Cordeiro; radiantes com Boa Nova, novamente corroborada; ressurretos no mistério da Santíssima Trindade e do sacramento da Eucaristia. A cara de aperreada que Atazanada tem por costume fazer quando recebe a comunhão no altar é qualquer coisa de cortar o coração: parece que a lacraia tá sentindo todas as dores do Calvário!

Agora são 11 da manhã e o satanais já dominou novamente a alma da pia matrona. Tá fula da vida, a porra da muièzinha encruada!.. E lá vem ela, socando os calcanhares no chão, enquanto puxa a criada Genilda pela orelha, arrastando-a pelo corredor, aos gritos, até a sala. Ali, apontando prum castiçal posto fora de lugar, relincha, dando um banho de cuspe na jovem: “Tu é cega, nega disarvorada?! Tá pensando que aqui é que nem no teu rancho de taquara e bosta de boi, é?! Tudo que tu põe a mão fica torrrrrrrrrrrrrrrrr...” Êpa, a língua travou!.. Um mal súbito pipoca na carcaça da furibunda velhota: um calor intenso no topo do crânio... e ela cai dura pra trás. Genilda vibra de satisfação, sentindo que a coisa é grave. Sua vontade é de pular e comemorar, mas se contém e fica ali, saboreando a cena. Satanásia com a cara no chão, olhos abertos, tremendo os lábios... A outra dando passinhos estilizados de samba... Ela se agacha, olha pros lados, dá um beliscão na patroa pra checar os reflexos; depois uns cutucões debaixo das costelas... Positivo: a praga tá fora de combate, parece.

Genilda decide que não pode deixar escapar essa oportunidade pra dar um fim na curunga. Pois ela é negra hauçá de pai e mãe, ou seja, tem a rebelião em cada gota do sangue; cedo ou tarde ia aprontar, duma maneira ou outra... “Óia pa mim, diaba!” – ela sussura com voz áspera como se gritasse, junto ao rosto da velha – “Óia bem aqui, coisa ruim, óia! Bilu-bilu! O babado agora é otro, cacumbu! que qu’ocê me diz?!” E esbofeteia a cara da outra contra o soalho. – “Io sabia qui um dia as minha demanda havia de valê, fucinhenta! Os urixá infim mi justiçaro!”... Mostrando a língua, ela caçoa, vitoriosa enfim! Corre até a porta, excitada, pisando na pontinha dos pés. Ausculta o movimento no resto da casa... Nada!.. só o ar parado de domingo!.. Dá uma vibradinha e volta rápido pra completar o serviço. Primeiro chacoalha a cabeça da patroa pela orelha, a pele do rosto rangindo no imaculado chão de tábua corrida. Pensa em tudo o que passou nas mãos do estrupício e em como este mundo dá voltas; tem um acesso de hilaridade, vendo aquele orgulho senhoril, aquela velha expressão de sagacidade desalmada, o olhar terrífico de seca-pimenteira – tudo reduzido a um par de olhos vazios... o queixo caído... as fuças luzidias de saliva...

“E agora? Dou uma boa avacalhada na dona antes de dar cabo nela, ou a despacho logo e tá acabado?” – Genilda calcula... Por fim, achou mais seguro apressar o serviço e abrir mão de saborear mais detidamente o gostinho da desforra, na certeza de que no Inferno a velha haverá de pagar centavo por centavo toda a tristeza que causou, os anos de humilhação e exploração que impôs aos empregados, as vidas que destruiu, os suplícios e sevícias que ordenou. A execução será sumária....

Ela abre uma das cristaleiras; da prateleira inferior retira um caminho de mesa que ela mesmo estava bordando por ordem da diaba. Respira fundo, aguçando os sentidos... Enche então a boca da patroa com a linda prenda que ela própria encomendara. Umas flores em alto relevo, rebordadas, ela empurra pro fundo das narinas... Satanásia, asfixiada, começa a se mexer ineptamente, aos arrancos, a debater-se com espasmos cada vez mais intensos. A criada observa, com terrível satisfação, enquanto a dona esperneia – a cabeça e o sapato batucando no soalho; as taças tilintando freneticamente dentro das cristaleiras. Um espetáculo triste e patético do ponto de vista cristão, porém hilário pra negra adoradora de demônios nagôs. “Ispernéia, diaba!!!”

A agonia durou menos que dois minutos. Silêncio agora... Ouve-se o canto de um currupião que pula entre os galhos das pitangueiras. Feliz da vida, Genilda retira a toalha ensalivada da boca da mocréia. Certa de que morrera, sai gritando, fingindo-se apavorada. “Mi acode, mi acode alguém aí, pelo amor de Deus! Chama nhazinha lá no caramanchão! Manda chamá alguém, que a sinhá panhô umas convulução qui tá qui vai morrê! O negoço é fei, ai são-binidito!!”

Florineide larga as roupas no tanque e sai correndo, eufórica, pra espalhar a auspiciosa notícia. Ela tem bons motivos pra sentir-se animada. Solteirona hoje, aos 37 anos, com 20 fora impedida de se casar, já grávida, a mando da diaba, por um motivo descabido, e depois obrigada a abortar com chá de pemba-crispim. A calanga véia impôs sua vontade ao pai da moça, aterrorizando-o com insinuações estranhas... Rozembergue, o noivo, era um competente sapateiro no arraial. Não havia um só homem na região que não tivesse pelo menos uma das famosas sandálias de couro de jegue por ele fabricadas. Ameaçado de morte, logo tratou de arranjar outra morena... O argumento da Satanásia contra o casamento era absurdo. – “Mas paínho, num tem nada a vê o cu cum as carça, meu são jeromo!” – reclamava Florineide, com razão. Satanásia alegava que o avô do noivo, cachaceiro notório, nos idos de 1870 aplicara um golpe milionário em sua família, a ponto de fazê-los passar fome. Não fosse o sangue guerreiro e brilhantoso de seu pai, jamais teriam conseguido se reerguer. Ela não quis entrar nos detalhes do tal golpe, que na verdade foi o seguinte: o avô do sapateiro apareceu certo dia no poeirão de propriedade da família de Satanásia, fazendo-se de bobo; parou a pretexto de filar um cafezinho antes de seguir caminho. Só pra descontrair o ambiente, começou a fazer alguns truques com um par de imãs, iludindo perfeitamente seu Clovismar, pai da bruaca, matuto brabo, que jamais tinha visto uma coisa dessas. Um dos truques era fazer um dos imãs andar sozinho em cima duma placa fina de madeira, usando o outro imã pra conduzi-lo, secretamente, por debaixo da tábua. Com a mão que tava livre, o velhaco estalava os dedos chamando o imã, como a um cachorrinho obediente... Formidávi!!! Formidávi!!! – exclamava o mocorongo ante tal prodígio. Aí fecharam negócio: a cabrita Esmeralda, o xodó do seu Clovismar, em troca de um dos imãs (apenas um, pois o outro era segredo). Ele teria que carregá-lo no bolso da camisa por uma semana, até que este se afeiçoasse a ele e começasse a obedecê-lo normalmente, como ao antigo dono. Durante a semana seguinte, seu Clovismar, maravilhado, mal conseguia dormir. Foi a melhor época de sua vida, certamente. Ele passava horas inteiras namorando o lúdico magneto, sorrindo, sentindo-se o homem mais afortunado ali das bandas do Joazal Esturricado. Como achou que o bichinho devia ser fêmea, batizou-o de Lamparina. “Cá Lamparina, cá Lamparina! Cati, cati, cati!” Às vezes tinha a impressão de que o imã começava a se mexer levemente, mas não saía disso... Quando afinal começou a desconfiar de que havia sido enganado, caiu numa melancolia profunda. Não tivesse filhos pra criar, talvez tivesse entregado a alma de desgosto... Foi este o golpe milionário a que se referiu Satanásia pra impedir que Florineide se casasse com o sapateiro – filho do filho do infame vigarista.

Voltamos então a 1920, ao dia em que Dona Diaba beijou o chão. Apesar de tudo – da embolia cerebral, do tombo, das porradas, do sufocamento – a praga era tão ruim que não morreu. Pior pra ela, que ficou sem movimentos; perfeitamente lúcida – note bem, lúcida e alerta – mas quase totalmente paralisada. Tudo o que conseguia pronunciar era um custoso “inhên-inhên” e olhe lá. A cobra perdera a peçonha.

Por determinação da família, Satanásia ficou sob os cuidados diretos da Bebete e da Genilda, justamente as criadas mais sacanas. A matrona, outrora tão orgulhosa, teria agora a bunda lavada pelas negras... sim, elas jogavam uma agüinha pra tapear, depois socavam pimenta. A trancaia cagona ia a Lua e voltava, sem sair do lugar.

Desafortunásia viveria ainda mais três anos nesse estado, sendo alvo de tudo quanto é tipo de putaria, diariamente... Todas as criadas tiravam a sua casquinha e competiam alegremente entre si pra ver quem tirava o melhor sarro. Tapas, cascudos, peidos, petelecos, ‘telefone’; isso era o trivial. Mas Atanásia haveria de sentir na pele a proverbial inventividade e jocosidade do caboclo nordestino. E assim, novas e elaboradas invenções de mal-feito se sucediam umas às outras, infalivelmente.

Além da importunação física, havia também os métodos – ora mais, ora menos refinados – de tortura psíquica (ou tortura do orgulho). Exemplo: a endiabrada Bebete gostava de fazer estripulias com os cristais. Pra isso colocava Babanásia como espectadora compulsória, na cadeira de rodas, de frente pra fuderosa cristaleira. Diante de seus malditos e obsessivos cristais, ela teria que assistir as palhaçadas e provocações da negra... obrigada a amargar sua impotência diante de tão abominável profanação. A criada lavava a alma! Aquelas frágeis preciosidades, juntamente com a prataria, tinham lhe dado um trabalho medonho no decorrer dos últimos anos. Tempos atrás, ela costumava dizer que preferiria cavar um poço a ter que lustrar meia dúzia daquelas odiosas relíquias; porque – não importava a perfeição da limpeza – Satánasia só se dava por satisfeita quando a esfregação já havia durado um tempo vinte vezes superior ao limite da paciência humana.

E saltitava à volta da patroa, com tremeliques de zombaria, sacolejando-se e fazendo malabarismos com as peças. Vez ou outra, uma se espatifava no chão. Ela sabia que aquilo doía fundo na dona; tinha absoluta certeza de que, apesar da invalidez, a ruindade e a avareza ainda estavam intactas ali, indelevelmente entranhadas naquela carcaça... Arregalava os olhos e lambia a borda de copos e taças, cheia de trejeitos e gatimonhas. Esfregava uma compoteira nos beiços da Babanásia... “Isso deve di tê um gostinho dinisco de bão. Isprimenta! abre a caçapa, mamulenga!” Em meio aos aplausos e gaitadas, ela redobrava o tom, arrebatada pelo banzé que ela mesma causava. Desmanchava-se em caretas extremamente desrespeitosas, em frente ao nariz da anciã. E dava cada grito em suas orelhas!..

Pra se compreender uma crueldade assim festiva é preciso que não se perca de vista que a vítima não era uma pobre velhinha estrepada, mas a filha-da-putice em pessoa – a ocasião é que havia transformado o diabo num bode descadeirado. Seu sadismo inflexível, tenaz, implacável, sua picuinha aporrinhante, dia após dia, ano após ano, haviam produzido uma revolta incurável dentro daquela gente.

Com o passar do tempo as negras foram pegando tarimba na coisa. Aos poucos foram desenvolvendo, dentre outros pagodes, um teatrinho singular: Divina imitava Satanásia em seus ataques; grasnando, ralhando, ensaboando a Genilda ou a Bebete, que faziam o papel de criada desbocada e respondona, devassando a alma da patroa com diálogos improvisados, ridicularizando suas antigas manias, cacoetes, a vida íntima, os rituais de família com o marido bundão e os filhos lerdos, os longos palratórios com o vigário, a avareza... A velha cascavel ficava só olhando, admirada da incrível veia cômica das crioulas. E babava, rogando pragas em silêncio...

E tinha o Glinberval, o faz-tudo, encarregado de todos os consertos que se fizessem necessários em qualquer parte da fazenda. Cabra talentoso, inventivo, bolou artefatos de alto requinte pra incomodar a dona... Lançando mão de qualquer peça, objeto, planta ou bicho que encontrasse por perto, ele sempre aparecia com novos “aparelhinhos”... Logo após a aposentadoria da sinhá, fora incumbido pela família de enterrar todos os instrumentos de súplicio no fundo de um boqueirão, bem escondido. Só que, primeiro, recolheu algumas peças que julgou interessantes... Sua grande obra-prima era a “Caretonha”, uma espécie de coroa de ferro, em torno da qual, soldadas, se distribuíam seis pequenas roldanas com manivelinhas e travas. Dali saíam cabos de barbante com ganchos e grampos nas pontas. De aspecto futurista, tal ornamento era encaixado ao crânio da ‘rainha Caxerenga’; os encaixes, acoplados à pele e aos orifícios da cabeça, e aí, de acordo com a tração aplicada nas diversas manivelinhas, podia-se produzir uma infinidade de caretas na cara da mulher. Isto mesmo: caretas! Molecagem braba!

Tianinha era a maioral no assunto. Quando ia manivelar uma careta, pedia a todos que se virassem de costas. E começava a manejar a engenhoca, cruzando os fios, passando-os por uma série de pequenos ‘varais’ improvisados. Concluída a obra, cantarolava feliz: “Podem se virá-aaaa!” Tava feita a festa!.. A dona parecia um monstro humorista, se escancarando pra divertir a platéia.

Outro aparelhinho curioso era uma cabaça acoplada a uma cânula de borracha que era enfiada numa das narinas da velha. Abria-se então a portinhola no alto da cabaça (que estava recheada com formigas lava-pés) e gotejava-se ali um pouco de amônia ou querosene. Os pequenos demônios ficavam desatinados e tentavam escapulir pelo cano, indo se alojar nas ventas da bruaca, forçando caminho com seus minúsculos e peçonhentos ferrões. Nheeeinnhenheieeh!! – ponderava ela, cheia de razão.

Uma bricadeira muito em voga entre a criadagem, nos primeiros meses da invalidez, era o ‘Desmantelo’, que consitia em ver quem conseguiria colocar a pobre diaba na posição mais bizarra. As negras se mijavam de rir vendo a megera nas poses mais desconformes imagináveis: escancarada, retorcida, desconsertada, trançada, engalfinhada consigo mesma... sempre com aquela cara de pamonha extasiada...

Um dia, a perrengosa tava quietinha em sua cadeira predileta, tomando um pouco de ar num canto do pátio onde o sol ainda batia àquela hora. Adeodato, filho do capataz, zanzava por ali, aguardando a chegada de nhô Gurmêncio pra tratar duns assuntos. Pra passar o tempo, inventou de enfiar a mão da diaba inteirinha dentro da própria boca (dela, lógico). Ele e Norberta, sua cúmplice na brincadeira, bem que tentavam, mas as gargalhadas não deixavam; eles ficavam sem força. Quando parecia que iam conseguir, houve um estalo e o queixo da dona caiu, solto. O maxilar desencaixou. A cara da mulher ficou tão gozada que os dois não puderam conter um ataque de riso... “Norberta, sigure aqui.”, dizia o rapaz, posicionando a queixada da Babanásia. E pum! “Torna a sigurá.” Pum! Depois de várias porradas, a cara da mulher finalmente encaixou no lugar.

E foi nessa toada que dona Atanásia fruiu seu tenebroso ocaso por três anos inteiros; entrevada, mas fazendo aquela boa gente rir tanto, que merecia até ser beatificada.

24 de agosto de 1923, dia de São Bartolomeu, dia em que os demônios se soltam. Satanásia foi arrastada às profundezas... Foi uma tristeza! Um vazio fodido!

É isso aí. Anarriê, pliê, balancê. Adiê, Santa Atanásia!


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